Sumário: 1) Introdução; 2) Os fundamentos da criminalização das OCs; 3) os prêmios ou benefícios legais; 4) o modelo brasileiro de colaboração premiada; 5) decisão judicial sobre o pedido de colaboração; 6) a vinculação do juízo aos termos do acordo; 7) a necessidade de assegurar a imparcialidade do julgador; 8) a participação da defesa no regime da colaboração premiada; 9) critérios para valoração da prova; 10) consequências do descumprimento do acordo; Conclusão.
1) Introdução
A criação de mecanismos de sanção premial[1] a colaboradores em crimes de alta gravidade, como os econômico-financeiros, lavagem de dinheiro, crimes contra a administração pública, sequestro, latrocínio, terrorismo, narcotráfico, tráfico de pessoas etc, é uma tendência generalizada em diversos países, parte das estratégias na investigação e repressão a esse tipo de criminalidade, para a qual o vigente modelo de reação, com os seus meios de respostas pensados para a criminalidade ordinária, parecem ineficazes e inadequados[2].
Um dos mais importantes mecanismos para enfrentar esse fenômeno criminoso é o da colaboração premiada. A Lei brasileira nº 12.850/2013, “Lei de Combate ao Crime Organizado”, trouxe regulamentação inovadora em relação à delação premiada prevista para crimes graves, visando colmatar lacunas que colocavam em risco a segurança jurídica dos acusados e a eficácia da persecução penal.
O acordo de colaboração premiada é um ato jurídico da maior relevância, por meio do qual um possível criminoso se dispõe a fornecer informações às autoridades encarregadas de investigar e promover a ação penal pública em crimes graves, em troca de benefícios pessoais de caráter penal. O legislador, ciente dos riscos inerentes a esse tipo de pacto, o cercou de regras cogentes e o submeteu ao controle judicial de legalidade estrita, tanto sob o aspecto formal quanto material.
O propósito desse artigo é analisar o significado e alcance das regras procedimentais e do controle judicial sobre o instituto da colaboração premiada. Não é nossa intenção abordar em profundidade aspectos de política criminal, mas apenas fazer análise sobre a aplicação do direito positivado, à luz do princípio constitucional do devido processo legal.
2) Os fundamentos da criminalização das Organizações Criminosas[3]
Antes de abordar o tema específico deste artigo, convém apontar sumariamente os fundamentos da criminalização dessa figura, questão importante para a explicação da regulamentação dessa técnica de produção de prova, chamada colaboração premiada.
Tal como diz Silva Sanches, a organização criminosa é um sistema social em que as relações entre os elementos do sistema (basicamente pessoas) se acham funcionalmente organizadas para obter fins delitivos[4]. Desse ponto de vista se conceitua OC como um sistema de injusto que apresenta uma dimensão institucional e, mais concretamente, de instituição antissocial, que não se constitui como a soma das suas partes (membros), configurando uma realidade independente dela[5].
Esse sistema de injusto[6], per se, vulnera bens jurídicos como a segurança geral e a paz pública[7]. O caráter associal da organização, desvalorada penalmente por ser desestabilizadora da sociedade, é a forma da conduta antijurídica[8].
A explicação da punição da OC não deriva, segundo Polaino-Orts, do injusto dos delitos fim, isto é, aqueles que se pretendam praticar, mas consiste na lesão atual de segurança, não no perigo futuro para alguns bens jurídicos, os protegidos no delito fim, cujo princípio de realização nem sequer é exigido pelo legislador[9].
Assim, sendo a OC uma associação disfuncional, isto é, um sistema de injusto que desestabiliza a estrutura social, todo sujeito que se associe com os membros dessa agrupação, convertendo-se desse modo em membro dela, está se arrogando uma esfera de organização delitiva que excede em muito simples pensamentos. Daí duas consequências claras na dinâmica delitiva dos delitos de organização: por um lado, a conduta objetiva de filiação a uma organização criminosa deixa de ser neutral para ter um significado objetivo de organização delitiva; e por outro lado, os fins delitivos com que se reúnem os sujeitos deixam de ser meros pensamentos de cometer delitos futuros, isto é, deixam de ser periculosidade não só hipotética senão prescindível, para converter-se em projeções atuais de uma gestão incorreta e perigosa do papel que lhes incumbe como cidadãos respeitosos das normas em seu conjunto[10].
Sanchez Garcia de Paz, especialista na matéria, disserta que a soma de forças, o planejamento racional, a divisão de tarefas e a profissionalização dos membros da OC fundamentam claramente um maior perigo para os bens jurídicos que se pode estimar relevantes, ainda que este comportamento esteja afastado deles. E sustenta que a comissão de delitos em sede de OC provoca um debilitamento das possibilidades de defesa da vítima e um asseguramento do resultado delitivo. Em suma: tem muito mais possibilidades de êxito a extorsão, a ameaça ou o sequestro etc, praticada por uma OC que o levado a cabo por um indivíduo[11].
O reconhecimento da OC como crime autônomo levou o legislador a introduzir regras objetivas, tanto de direito material, quanto de procedimento, para viabilizar o estímulo à colaboração para a investigação e repressão dos crimes, por parte de suspeitos e/ou acusados de serem integrantes ou partícipes de crimes praticados.
Examinemos as principais regras e aspectos desse mecanismo.
3) Os prêmios ou benefícios legais
Sob o vocábulo colaboração premiada a lei premia investigados e/ou acusados cujas informações permitam ao Estado alcançar um ou mais dos resultados previstos no art. 4º da referida lei, durante a persecução penal. Ao prever a possibilidade de perdão judicial, redução em até 2/3 (dois terços) da pena privativa de liberdade ou sua substituição por restritiva de direitos, para quem tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, amplia-se a chamada delação premiada, que recompensava a confissão e a delação de implicados nos fatos criminosos.
A opção legislativa foi a de não vincular diretamente o prêmio à confissão ou delação do colaborador, orientando-se, antes, por condicioná-lo a qualquer forma de colaboração que leve aos resultados necessários. Assim, muito embora a identificação dos demais coautores e partícipes da OC e das infrações penais por eles praticadas seja um dos resultados (art. 4º, I), o prêmio depende fundamentalmente dos resultados proporcionados pelas informações, que podem ou não incluir confissão e delação - do colaborador[12].
Assim, ainda que o colaborador não tenha delatado diretamente a outrem, se sua colaboração foi importante para a identificação de coautores ou partícipes ou para outros resultados, parece possível a premiação.
Além de benefícios que pressupõem processo criminal contra o colaborador, a lei instituiu, no §4º do mesmo artigo 4º, o chamado acordo de imunidade, já previsto no art. 26, item 3, da Convenção de Palermo e no art. 37 da Convenção de Mérida[13], por meio do qual o MP deixa de oferecer a denúncia contra o colaborador em caso de cooperação substancial na persecução penal. É um avanço significativo, que confere ao MP a disponibilidade da ação penal, rompendo com a obrigatoriedade até então existente, de oferecer denúncia contra o colaborador para que só ao final do processo ele pudesse fruir benefícios penais.
A vedação prevista na lei para o acordo de imunidade, em caso de ser o colaborador o líder da organização criminosa, visa impedir que líderes de OC, prevalecendo-se de seu poder, domínio estrutural (informações, meios materiais e humanos), sejam eximidos de responsabilidade penal, enquanto subordinados ou cúmplices delatados suportariam as sanções penais, contrariando a finalidade legal de desarticular e reprimir as OCs., nelas incluídas as suas lideranças como alvos prioritários. A segunda exigência, isto é, se o pretenso colaborador for o primeiro a prestar efetiva colaboração, visa encorajar a que integrantes ou partícipes atuem prontamente, entregando às autoridades competentes informações substanciais, que permitam descobrir crimes desconhecidos ou em andamento, levando a resultados a que não se chegariam sem essa colaboração[14].
A previsão do § 3º do art. 4º, de suspensão do prazo para o oferecimento de denúncia em relação ao colaborador, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração, com a suspensão do respectivo prazo prescricional, é essencial à racionalidade do sistema e à segurança jurídica, destinado ao acompanhamento e averiguação das informações, por parte das autoridades, a fim de certificar a sua veracidade e a relevância, evitando atuação fraudulenta de falsos colaboradores.
A interpretação sistemática dos §§ 1º ao 4º do art. 4º induz à conclusão de que o MP deve requerer a suspensão do prazo ao juízo para, só após o cumprimento do acordo por parte do colaborador, se for o caso, pronunciar-se pela concessão do benefício, pois a não suspensão do processo forçosamente teria como efeito negativo o curso do prazo de prescrição contra o Estado.
A decisão de não oferecer denúncia, previsto no art. 4º, § 4º da Lei, é questão entregue à liberdade de formação da opinião jurídica do MP. Mas, cuidando-se de decisão vinculada a duas condições legais, a promoção do arquivamento pelo MP deve ser fundamentada e submeter-se ao controle judicial, aplicando-se o disposto no art. 28 do CPP – como norma geral de aplicação subsidiária – caso o Juiz discorde do arquivamento. Por certo que a qualificação de líder depende do resultado das investigações e pode variar em graus, conforme a natureza e espécie de OC. e do papel do agente na sua estrutura funcional, havendo casos em que a liderança é oculta ou compartilhada, v. g., em células autônomas ou associadas[15].
De qualquer modo, líderes de organização criminosa – que não devem ser confundidos com chefes supremos – embora não possam ser beneficiados com o acordo de imunidade, podem obter o perdão judicial, redução de pena privativa de liberdade em até 2/3 (dois terços) ou a substituição da pena por restritiva de direitos. Sempre, é claro, observadas as condições previstas no § 1º do art. 4º da Lei.
Observe que os benefícios – prêmios – previstos na lei vão desde substituição de pena privativa de liberdade por restritivas de direito; reduções de pena, em caso de condenação; e, mudança de regime de cumprimento de pena, até o perdão judicial ou a própria imunidade, os quais dependem do alcance dos resultados previstos no art. 4º da Lei e das peculiaridades do caso concreto.
4) O modelo brasileiro de colaboração premiada
A admissão de formas de colaboração com a Justiça tem dado origem a dois modelos básicos no direito comparado: 1) no primeiro modelo, o arrependido entra em cena como testemunha do juízo e é obrigado a depor como condição para não ser acusado (grant of immunity), expondo-se a uma situação de perigo especial, e assim outorga-se-lhe a condição de testemunha protegida. É o modelo que se pode encontrar nos países anglo-saxões, como Estados Unidos, os da Grã-Bretanha e também na Polônia, desde 1998; 2) no segundo modelo, o arrependido intervém fundamentalmente na fase de instrução do procedimento (investigação), colaborando com as autoridades de persecução penal no esclarecimento dos fatos e no descobrimento dos culpados, conduta premiada geralmente de modo facultativo pelo juiz, com diminuição ou, inclusive, uma exclusão da pena. Como não tem necessariamente que aparecer perante o tribunal como testemunha, nem sempre há um programa de proteção para ela; é o modelo adotado na Alemanha, Suíça, Áustria, Holanda e também no Direito espanhol. Na Itália encontram-se elementos de ambos os modelos[16].
O sistema brasileiro, conforme pode-se constatar no art. 4º, §§ 9º e 12 da lei, assemelha-se ao primeiro modelo, pois nele o colaborador é ouvido tanto na fase de investigação como em juízo, sob o compromisso legal de dizer a verdade, renunciando ao silêncio, como se fora testemunha e, nessa condição, é titular do direito de proteção. No nosso direito está afastada, portanto, a possibilidade de colaboração premiada oculta, à revelia da defesa[17].
O colaborador não tem direito ao anonimato, mas apenas à preservação de seu nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais, não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito (art. 5º, II e V da Lei 12.850/2013). Embora ele tenha os direitos de ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes, participar das audiências sem contato visual com os outros acusados e cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados, não tem o direito de se ocultar ou de se eximir de inquirições por parte da defesa de investigados e/ou acusados, estando igualmente obrigado a dizer a verdade em relação às perguntas defensivas[18].
A lei optou por excluir o julgador das tratativas e da formalização do acordo entre as partes (art. 4º, § 6º, da lei), assegurando autonomia às autoridades encarregadas da investigação e da ação penal pública – as legitimadas para a proposta –, reservando ao Juiz de Direito apenas competência de controle a posteriori, reafirmando a posição tradicional do juiz como terceiro imparcial na relação jurídico processual. Instituiu-se, então, um duplo controle: do MP sobre as tratativas da polícia com o investigado e do juízo sobre a proposta formalizada.
O art. 4º § 1º, da lei prevê: § 1o Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração, a apontar que se cuida de decisão submetida à criteriosa análise, não apenas quanto aos requisitos objetivos, mas também quanto à personalidade do colaborador.
O investigado não tem direito subjetivo à colaboração premiada. Trata-se de medida disponibilizada ao Estado, que por meio de seus agentes qualificados, o Delegado de Polícia e o membro do Ministério Público, em regime de interação, podem, sopesando os diversos fatores referidos na lei e as necessidades decorrentes das investigações[19], propor acordo com um ou mais dos envolvidos, se verificarem que poderão prestar colaboração relevante para o alcance de uma ou mais das finalidades previstas no art. 4º, I a V, da Lei[20].
Sem embargo, o investigado ou o acusado que não tenha aceitado acordo inicial pode fazê-lo no curso das investigações ou do processo criminal. Essa é a interpretação que resulta da análise combinada dos artigos 3º, 4º, §§ 2º e 5º da Lei 12.850/2013, por meio da qual se identifica a clara finalidade de estímulo ao arrependimento, à desistência e à colaboração do integrante de OC, em todos os momentos da persecução penal.
Se a lei prevê a possibilidade de concessão de perdão judicial em favor do colaborador a qualquer tempo, ainda que esse benefício não tenha sido previsto no acordo já homologado (art. 4º, § 2º), admitindo a possibilidade de redução de pena ou a progressão de regime[21], até mesmo depois da sentença condenatória, não faria sentido impedir que o investigado ou acusado que, por algum motivo, não quis ou não pôde firmar o termo anteriormente – basta lembrar a possibilidade de coação –, se tornasse colaborador no curso do processo penal, se as informações que se propõe a dar são novas e relevantes para o alcance dos objetivos previstos no art. 4º da Lei[22].
A única condição para isso, a meu ver, é que o acordo seja submetido a prévio controle judicial, pois a opção do legislador foi a de condicionar qualquer benefício a acordo formalizado e homologado, de modo a impedir acordos extra-autos. E, claro, o acordo e as informações novas no curso do processo devem ser submetidas ao crivo da defesa dos demais acusados em respeito ao princípio do contraditório, suspendendo-se o processo e o prazo prescricional.