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Da escravidão legalizada ao trabalho escravo ilegal

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Agenda 21/02/2015 às 14:45

Em decorrência da ilegalidade da escravidão, surgiu a exploração escrava contemporânea no campo e nas cidades.

Resumo: No Brasil, a exploração degradante do trabalho humano passou por um período de legalidade – o período escravista – à ilegalidade que a Lei Áurea, de 1888, conferiu ao ato de não respeitar os Direitos da Pessoa Humana em relação à mão de obra tornou-se uma espécie de utopia na sociedade brasileira. Não obstante, o que se verifica nessa relação exploratória é que o processo legal não foi capaz de romper com o costume escravista arraigado no seio da sociedade brasileira. Medidas governamentais, legislativas e da sociedade civis procuram diminuir ou, mesmo, findar com o trabalho análogo ao escravo, entretanto, o que se verifica, na realidade, é um contínuo desdobramento dos fatos ocorridos no período escravista e legal. Portanto, a configuração de um costume e de uma tradição supera os atos legislativos e coercitivos implantados em um país essencialmente desigual.

Palavras-chave: Escravo, Exploração, Mão de obra costume.

Sumário: 1. O sistema escravagista brasileiro: breve abordagem histórica. 2. Da escravidão legalizada ao trabalho escravo ilegal. 2.1. O bloqueio internacional e a escravidão no Brasil. 2.2. O não cumprimento dos acordos internacionais em favor da ordem escravista. Início da ilegalidade. 2.3. Modificação do regime legislativo no Brasil escravista. 2.4. A resistência do cativo que antecipou os atos institucionais. 2.5. A dicotomia entre a economia e a escravidão. 2.6. A manutenção da prática exploratória alicerçada pela miséria dos recém libertos. 3. O trabalho compulsório no Brasil conteporâneo. 3.1. Novas considerações sobre o trabalho análogo ao escravo no mundo contemporâneo. 4. Considerações finais. Referência bibliográfica.


1. O SISTEMA ESCRAVAGISTA BRASILEIRO: BREVE ABORDAGEM HISTÓRICA.

A superexploraçãoi da força humana deixou fortes marcas no processo de desenvolvimento econômico mundial e, especialmente, no processo de colonização do território brasileiro, tendo sido a válvula propulsora para o incremento da economia no período colonial.

No Brasil, a escravidão se perpetuou durante o século XVI, período em que era território pertencente à Coroa Portuguesa, até o dia 13 de maio de 1888, com a promulgação da Lei Áurea.

Em um primeiro momento, usaram-se os nativos ameríndios como trabalhadores “coisificados”, essenciais para o desbravamento do território brasileiro. Apesar de se presenciar, naquele momento, a fase considerada como aurora dos tempos modernos, a comercialização e exploração do trabalho escravo era essencial para obtenção de lucros, vez que não havia pagamento de salário ou qualquer outro benefício de natureza pecuniária para o trabalhador.

A escravização indígena sofreu forte resistência, sobretudo por interesses dos religiosos católicos, principalmente, os membros da Companhia de Jesus - os Jesuítas - que tinham a missão de formar novos cristãos entre os nativos. Outra dificuldade do europeu na escravização do nativo, foram às diversas formas de resistência dessa população, entre elas, a guerra, a recusa ao trabalho compulsório, entre outro meios de oposição.

Entretanto, essa resistência do indígena, além, das epidemias, praticamente extinguiu os povos originários do território colonizado pelos lusitanos, os índios foram em grande parte dizimados e reduzidos a um número ínfimo de indivíduos, quando comparado à quantidade de habitantes nos primeiros anos de ocupação europeia nas Américas.2

Existiu, por parte do africano, sujeito , também, “coisificado”, enorme resistência; entretanto, o nativo tinha melhores condições de lutar contra sua escravização, pois se encontravam em um território conhecido, próximo ao seu povo e, ainda, desfrutavam, com apresentado anteriormente, de um certo apoio das missões religiosas.

Os negros escravizados, por seu turno, estavam em um lugar desconhecido, deslocados de sua cultura e, principalmente, não recebiam o apoio, que naquele momento era dispensado aos indígenas por parte dos Jesuítas.

As leis contrárias ao escravismo indígena tiveram seu marco inicial nos anos de 15703. Entretanto, não contemplava todas as tribos, pois os aimorés foram, especificamente, excluídos da referida proibição4. No período que antecedeu tais leis, escravizavam-se índios em decorrência das “guerras justas”5, ou seja, batalhas defensivas ou como punição pela prática antropofágica; além dos escravos indígenas comprados em tribos vencedoras das batalhas tribais, que iriam impor os rituais antropofágicos aos vencidos. E em meados de 1758 a Coroa portuguesa determinou a libertação definitiva dos indígenas6.

Com a definitiva exclusão legal do trabalho compulsório dos índios, intensificou-se o tráfico de negros oriundos do continente africano. Vale ressaltar que esse tráfico variou de intensidade ao longo do tempo; “estima-se que entre 1550 e 1855 entraram pelos portos brasileiros 4 milhões de escravos, na sua maioria jovens do sexo masculino”7.

Com a lógica do exclusivo colonial ou pacto colonial percebeu-se que o comércio de africanos era algo extremamente rentável; primeiro, porque existia o lucro da comercialização direta, ou seja, da venda do negro com mercadoria; segundo, pela maior facilidade de utilizar esse escravo na plantação canavieira, uma vez que nas colônias portuguesas de Guiné Bissau e na Costa da Mina, por exemplo, os negros já realizavam o plantio da cana de açúcar8.

Apesar de não contar com o apoio das missões religiosas, os povos africanos e afrodescendentes resistiram ao julgo escravista. Cita-se, como exemplo, o principal foco de resistência negra, no Brasil, do século XVII: o Quilombo dos Palmares, que reproduziu uma organização social semelhante às africanas.

O Palmares, como era conhecido, sobreviveu por quase cem anos, vindo a sucumbir, em 1695, quando foram derrotados pelas tropas do bandeirante Domingo Jorge Velho9.

Mesmo com essa resistência, é primordial avaliar que, nos primeiros anos de colonização, os negros tiveram poucas chances de se organizarem e rebelarem-se contra as barbaridades que sofriam, pois, aos negros, não foram garantidas nenhum tipo de flexibilização legal em relação ao seu trabalho, como por exemplo, as leis que garantiram aos indígenas certos direitos. O africano escravizado era uma simples mercadoria; portanto, todo ato desumano era completamente amparado pela legislação da época.

As condições de vida desses escravos eram as mais desumanas possíveis, já no translado para o Brasil, segundo relatos10, os negros, eram colocados como mercadorias amontoadas nos porões dos navios negreiros, os tumbeiros, que estavam infestados de insetos e sujeira; durante o percurso muitos africanos não resistiam aos maus-tratos e faleciam nesses porões, os cadáveres, muitas vezes, não eram retirados das masmorras dos navios negreiros; apodrecendo, assim, junto aos que resistiam no percurso dos portos Africanos até o Brasil11

Já em terras brasileiras, esses escravos, eram vendidos em espécies de feiras e levados para fazendas canavieiras, no primeiro momento, e posteriormente, para as plantações de café, na região do Vale do Paraíba, além de serem utilizados nas minas de ouro e diamantes na região de Vila Rica e do Tijuco12, nessas fazendas ou minas, eles eram alojados como animais nas senzalas.

Além disso, o castigo físico era uma prática comum; entre os castigos podemos citar, por exemplo, as chibatadas nos troncos, normalmente praticada contra negros rebeldes; as marcações com ferro em brasa, a qual indicava que aquele negro já havia tentado fugir; o ferro em brasa também indicava o proprietário privada a qual aquele negro estava vinculado e; podemos falar de todo tipo de tortura cultural, pois esses povos não podiam nem recorrer aos seus sentimentos religiosos, ou seja, suas práticas tribais de adoração, que naquele momento garantiam-lhes o mínimo de reconforto, ao menos espiritual.13

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Não obstante, a partir do século XIX, movimentos sociais contrários ao procedimento de trabalho compulsório, impostos aos negros, começaram a se destacar por todo Império.

Na segunda metade do século XIX, surgiu o movimento abolicionista, que defendia a abolição da escravidão no Brasil. Joaquim Nabuco foi um dos principais abolicionistas deste período.

A região Sul do Brasil passou a empregar trabalhadores assalariados, brasileiros e imigrantes estrangeiros, a partir de 1870. Na região Norte, as usinas de açúcar substituíram os primitivos engenhos, fato que possibilitou o uso de um número menor de escravos.

Para diminuir os prejuízos financeiros aos proprietários rurais e donos de escravos, o governo brasileiro imperial, adotou uma postura gradativa no processo abolicionista. A primeira etapa desse processo foi tomada em 1850, com a extinção do tráfico de escravos no Brasil.

Vinte e um anos mais tarde, em de 28 de setembro de 1871, foi promulgada a Lei do Ventre-Livre, essa lei tornava livres os filhos de escravos que nascessem a partir dessa data. No ano de 1885, foi promulgada a lei Saraiva-Cotegipe (também conhecida como Lei dos Sexagenários) que beneficiava os negros com mais de 65 anos de idade. Foi somente em 13 de maio de 1888, através da Lei Áurea, que a liberdade total e definitiva, finalmente, foi alcançada pelos negros no Brasil. Essa lei, assinada pela Princesa Isabel (filha de D. Pedro II), abolia de vez a escravidão em nosso país14.


2. DA ESCRAVIDÃO LEGALIZADA AO TRABALHO ESCRAVO ILEGAL

Conforme nos foi apresentado ao longo da primeira parte dessa análise histórica, sociológica e jurídica sobre o trabalho análogo ao escravo, no território brasileiro, ficou claro que essa prática não foi homogênea e os atores desse processo – escravos, senhores de engenhos, fazendeiros, favoráveis e contrários ao escravismo e os movimentos políticos – se diversificaram substancialmente conforme a região e o tipo de escravidão que era exercida naquele momento.

A promulgação da Lei Áurea, como será demonstrado no decorrer do presente artigo, não foi capaz de estancar imediatamente a exploração que o homem negro e, posteriormente, o indivíduo carente sofreu ao longo da história jurídica do Brasil. Não obstante, poderemos observar a ineficácia do aparato legislativo em relação ao Direito Trabalhista e, principalmente, em relação aos Direitos da Pessoa Humana.

2.1. O BLOQUEIO INTERNACIONAL E A ESCRAVIDÃO NO BRASIL

Não obstante, muitas vezes, a diversificação e a flexibilização do trabalho compulsório, foi imposta ao Brasil por outros países, por exemplo, com os acordos internacionais assinados com a Inglaterra.

Uma prova incontestável dessa imposição foi quando o Brasil se viu obrigado a assinar um tratado, em 1826, com a Inglaterra, que após três anos de sua ratificação determinava proibição do tráfico negreiro pelo Atlântico15.

Nesse tratado o país inglês ainda se reservou ao direito de inspecionar, em alto-mar e aplicar sanções aos traficantes que descumprissem os dispositivos legais do tratado. Esse acordo entrou em vigor no mês três, de 1827, portanto, a partir de março de 1830 deveria iniciar sua eficácia.

Já em 1831, outro tratado, a chamada “Lei para inglês ver”, foi assinada com a Coroa Inglesa, era uma tentativa de ampliação da eficácia do acordo de 1826, em que, todo negro que adentrasse em território brasileiro seria considerado livre, nesse período houve um declínio no comércio negreiro16.

2.2. O NÃO CUMPRIMENTO DOS ACORDOS INTERNACIONAIS EM FAVOR DA ORDEM ESCRAVISTA – INÍCIO DA ILEGALIDADE

As leis e tratados internacionais, não são suficientes para romper com a tradição e isso ficou claro, pois, após alguns meses de diminuição na chegada dos “tumbeiros” (navios negreiros), que temendo a força da frota inglesa, reduzirão o tráfico; porém, pelas facilidades, lucratividade e, principalmente, dificuldade de fiscalização de uma costa de dimensões continentais, novamente, apesar das leis e tratados, retoma-se o comércio humano, sendo nesse momento de maneira ilegal.

Com esses revezes que se observou em relação aos tratados e a inércia do governo brasileiro, o parlamento inglês aprovou a Lei conhecida pelo nome de seu criador, “Bill Aberdeen” em 1846, nessa lei, todo navio que estivesse transportando negros da costa africana para o Brasil seria considerado uma embarcação pirata e, portanto, teria julgamento na Inglaterra com toda pureza das Leis inglesas, dessa vez a Lei teve eficácia e de cerca de 54 mil negros que entraram no Brasil em 1849, teve-se um decréscimo considerável em que nos anos de 1851 o número era de aproximadamente de 3300 negros africanos traficados para o Brasil e em 1850 já praticamente não mais havia o tráfico.

2.3. MODIFICAÇÃO DO REGIME LEGISLATIVO NO BRASIL ESCRAVISTA

Percebe-se que as Leis emancipacionistas tiveram um caráter “etapista” –gradual e progressivo – em um processo legislativo que se iniciou com o estancamento da entrada de escravos com as Leis e os tratados ingleses e prosseguiu em um regime gradual, com a Lei de 1871, que libertava os nascituros, chamada Lei do Ventre Livre. Já em 1885, a Lei dos Sexagenários, garantia o fim do regime escravo para aquele indivíduo que atingisse a idade de sessenta e cinco anos.

Logo, esse aprofundamento na legislação abolicionista, além das fugas generalizadas, das alforrias espontâneas e das possibilidades legais em que os negros poderiam formar pecúlios a fim de indenizar os seus proprietários, ou seja, com a Lei do pecúlio, de 1871, no seu parágrafo 2o, obrigava o senhor de escravo, após receber a indenização, alforriar aquele indivíduo17.

Percebe-se, portanto, que a última Lei abolicionista, apenas, antecipou um cenário já posto e irreversível, em 8 de maio de 1888, a Alteza Princesa Imperial, encaminha, em nome do Imperador o projeto intitulado de Lei Áurea, esse projeto foi apreciado pelo deputado e abolicionista Joaquim Nabuco e posto em votação sobre forte apelo popular.

Em discurso inflamado e sobre aplausos o então deputado imperial Joaquim Nabuco proferiu estas palavras:

”Peço à Câmera tenham tolerância para esta manifestação que o povo brasileiro acaba de fazer dentro do recinto. (Aclamações. Aplausos). Não houve dia igual nos nossos anais. (Aclamações. Aplausos). Não houve momento igual da nossa nacionalidade...”18

Esse discurso refletiu o sentimento da corte e de boa parte da sociedade, isso fica clarividente com a fala da Princesa, na 3a sessão da 20a legislatura da Assembleia- Geral, em 3 de maio de 1888. O qual indicava a disposição imperial de encaminhar a proposta de abolição.

“(...) pelo influxo de sentimento nacional e das liberdades particulares, em honra do Brasil, adiantou-se pacificamente, de tal modo que é hoje aspiração aclamada por todas as classes, com admiráveis exemplo de abnegação da parte dos proprietários (...)”19

Nada obstante, o discurso imperial não refletia de maneira fiel a verdadeira realidade daquele momento, pois no próprio parlamento houve manifestação contrária a Lei n. 3.353. de 13 de maio de 1888, conhecida como Lei Áurea, por exemplo, o deputado escravagista, Andrade Figueira, disse, na tribuna da Câmera, que não reconhecia aquela euforia, como sendo de toda população, ele colocava em dúvida a idoneidade da impressa, dos populares e até dos próprios donos de escravos.20

2.4. A RESISTÊNCIA DO CATIVO QUE ANTECIPOU OS ATOS INSTITUCIONAIS

Apesar de progressivo, como foi apresentado no tópico anterior, o processo abolicionista foi extremamente violento, primeiramente, com as próprias manifestações daqueles que eram feitos escravos, pois os negros resistiram de diversas maneiras ao deplorável modo de vida em que eram submetidos.

Podemos considerar que os livros didáticos que tratam desses aspectos históricos do Direito em nosso território, foram em certa medida, silenciosos, pois deram um vulto maior ao Quilombo dos Palmares, como meio de resistência. Entretanto, tentaremos demonstrar que a comunidade africana, feita escrava, no Brasil, resistiu de maneira heroica aos maus-tratos.

Primeiramente, iremos tratar dos suicídios como forma de resistência, reportando alguns documentos da época:

“Porto feliz – No mês de setembro, na fazenda de Francisco Aguiar e Silva, o pardo Salvador e sua mulher de nome Romana, escravos da mesma fazenda, suicidaram-se lançando-se em um tanque. O respectivo Delegado procedeu a auto de corpo de delito nos cadáveres, e das indagações que fez nada pode colher acerca dos motivos que influíram para semelhante ato de desespero” 21

“Capivari – No dia 3 de outubro de 1884, deu-se na cadeia desta cidade o seguinte fato: Estavam dois pretos de nomes Paulo e Alexandre ali recolhidos, quando, pelas 4 e 1/2 horas da manhã ouviu a sentinela um barulho na prisão, e em seguida gritos de socorro, ao que imediatamente os guardas entraram na mesma, onde encontraram Paulo caído com a cabeça fraturada, e Alexandre tentando degolar-se com uma lata, depósito de cigarros./ Perguntado qual o motivo que o levara a cometer aquele atentado, respondeu que entre ambos havia um pacto, que era: matar ele a Paulo, e depois suicidar-se, para não voltarem à fazenda do seu senhor./ A autoridade dirigiu-se à respectiva cadeia, e procedeu a auto de corpo delito e inquérito que remeteu ao juiz competente./ Alexandre faleceu quatro horas depois.”22

Esses dois documentos retratam de maneira, relativamente, fiel o sentimento dos cativos africanos e descendentes. Além do suicídio, os negros praticavam o aborto e o infanticídio, como forma de resistência, pois os filhos de escravos, também, eram propriedades dos senhores, proprietários de seus pais.

“...Além disso, os filhos dos escravos acham-se incluídos juntos com seus pais, por isso que pertencentes à mesma classe. E, é doloroso acrescentá-lo, usa-se dos meios da mais baixa espécie a fim de impedir o nascimento de crianças, sendo que o infanticídio não é de forma alguma raro”23

Outra forma de resistência a considerar-se eram as fugas, que no período escravista brasileiro configurou-se o modo de resistência mais utilizado pelo cativo.

Entretanto, existia uma verdadeira indústria de recuperação dos fugitivos, fomentavam-se grupos de recuperadores - os Capitais do Mato.

“Esse horror à escravidão chega a tal ponto que os negros, para escapar a ela, matam não só a si próprios como também os filhos. As mulheres negras têm fama de ser excelentes mães, e tive a oportunidade de ver sempre confirmada essa fama em todas as ocasiões; não obstante, essa mesma afeição que têm pelos filhos leva-as a cometer infanticídio. Muitas delas, principalmente as negras minas, repelem violentamente a idéia de ter filhos, empregando vários meios para matar a criança ainda no ventre, evitando assim – conforme declaram – a desgraça de por mais escravos no mundo...”24

(Fonte: Robert Walsh. Notícias do Brasil(1828-1829). Belo Horizonte-Itatiaia, São Paulo-EDUSP, 1985. Vol.2, p.162.)

Logo, eram pagas recompensas para aqueles que capturavam os fugitivos, sendo feito anúncios em meios de comunicação para informar os nomes, proprietários e valores dessa recompensa.

Percebe-se, portanto, que manter-se liberto por meio da fuga era uma tarefa dificílima, para o negro, pois além da repressão e buscas anunciadas nos jornais, temos que considerar a questão do estigma da cor de pele e, mesmo, como esse indivíduo iria se sustentar em um ambiente totalmente desfavorável e opressor.

“Fugiu do sr. Mateus da Costa Pinto, de Pindamonhangaba, o seu escravo de nome Pedro, pedreiro e trabalhador da roça, preto, de estatura baixa, corpo regular, bons dentes, fronte elevada, testa larga, beiçudo, com pequena parte lateral de uma das orelhas cortadas, e muito prosa, costuma dar-se por escravo do sr. Leitão de Jacaraí. Quem o apreender ou der notícias certa a seu se nhor, ou nesta cidade ao sr. dr. Diogo de Mendonça será gratificado”.25

“100$000. Gratifica-se com a quantia supra a quem apreender e levar ao abaixo assinato, em Tatuí, o escravo Jorge, cujo sinais são: alto, magro, nariz grande, assinalado com bexigas, boa dentadura, pouca barba, testa alta, pescoso fino e comprido; tem andar descançado e toca sanfona com perfeição. Consta que anda com carta de liberdade.”26

(Fonte: A Província de São Paulo, 15.03.1876.)

Além desses tipos de resistências, pode-se falar da manutenção, mesmo que precária, das práticas culturais, as quais os negros não abandonaram como, por exemplo, a capoeira.

Essa prática cultural era mais regular, não no sentido de legalidade, no Rio de Janeiro, do século XIX, do que em outras cidades dominadas por africanos e crioulos, como Salvador, Porto Alegre, Recife e São Luiz.

Percebe-se, portanto, que a capoeira era uma prática urbana, em um momento histórico de formação das “cidades negras”27, espécies de guetos na periferia das cidades mais populosas.

Na literatura brasileira poderemos nos remeter ao clássico do escritor José de Alencar, O Cortiço; como forma de exemplificar essas formações simples de moradia, hoje, espalhadas por toda território brasileiro, ou seja, as nossas favelas ou vilas.

Outra forma de manutenção cultural de resistência, foi a incorporação das práticas religiosas africanas sob a máscara da religião Católica, pois tais práticas eram proibidas e, portanto, o cativo e mesmo os libertos burlavam essa proibição, realizando ritos cristão aos olhos dos senhores; entretanto, na verdade, eles por meio do sincretismo religioso recriaram a sua religião, hoje, denominadas religiões afro- brasileiras

Nesse terreno religioso, o cativo encontrava consolo e força, pois aquilo que era sua raiz cultural e a crença cristã alimentavam a alma e dava uma relativa esperança de dias melhores.

Não obstante, nesse mesmo terreno, a cosmogonia africana não diferênciava o que era bom ou mal, pois, para eles, o universo ou espaço natural deveria ser de equilíbrio e, portanto, a magia , dita negra, tinha um papel primordial de reequilíbrio, porque, no sentimento do negro cativo, essa seria a única maneira de atigir ou lutar contra os seus senhores.

Naquela época, quando alguma coisa de errado ocorria na “casa grande”28, por exemplo, uma infermidade, a sensala realizava uma espécie de festa, com seus tambores e cânticos, mas encobertos pelas imagens Católicas, daí que surgiu a religião Umbandista e o Canomblé.29

2.5. A DICOTOMIA ENTRE A ECONOMIA E A ESCRAVIDÃO

Após essa pequena demonstração da resistência negra, propriamente dita, poderemos retornar aos debates sobre a abolição, na sociedade brasileira do século XIX. Lembremos que o movimento abolicionista não era homogêneo e nem tão pouco absoluto em todas as camadas sociais.

Isso porque, a mão de obra escrava tornou-se o mecanismo propulsor da economia brasileira, seja nas plantações de café, nos canaviais, na mineração ou nas zonas urbanas - com escravo de ganho; portanto, a abolição, para o setor econômico, representava um risco extremamente real de perda de receita e até mesmo de falência de muitos senhores.

Entretanto, o processo de abolição gradativa, como o realizado pelo Brasil Imperial, deveria conter de certo modo essa preocupação dos proprietários de escravos.

É evidente que, naquele momento, boa parte da população já estava ciente que a escravidão não mais seria uma realidade legal no país, porém, temos que analisar o contexto histórico de liberalismo, o qual em sua essência garantiria o direito à propriedade privada30.

Logo, o sentimento de propriedade, talvez, tenha sido o principal empasse entre os abolicionistas e os escravagistas. Esse choque se refletiu de várias maneiras no cotidiano da época.

Por exemplo, por um lado, tivemos os chamados panfletos abolicionistas, que eram publicados nos jornais da época.

“Em Ouro Preto, o jornal A Província de Minas publica, no dia dois de outubro de 1881, uma poesia, de autoria de Bernardo Guimarães, lembrando o 1o decenário da Lei 28 de setembro de 1871, proposta pelo Visconde do Rio Branco:”31

Quebrou-se a tremenda algema Que o pulso do homem prendia; E resolveu-se um problema,

Que tanto horror infundia

Esta data gloriosa

Em letras de ouro grava:

-Em nossa pátria formosa

Não nasce mais prole escrava!...

Graças ao sábio monarcha, Nobre, puro, intelligente, Da aliança, santa arca,

Do Brazil chefe eminente

Esta data gloriosa

Em letras de ouro grava:

-Em nossa pátria formosa

Não nasce mais prole escrava!...

Também sincera homenagem Rendemos ao grande vulto Que abolio a escravatura

E merece o nosso culto. Esta data gloriosa

Em letras de ouro grava:

-Em nossa pátria formosa

Não nasce mais prole escrava!...

A esse nome querido Deve o Brazil gratidão; No solo da pátria livre Abolio a escravidão!... Esta data gloriosa

Em letras de ouro grava:

-Em nossa pátria formosa

Não nasce mais prole escrava!...32

Além desses panfletos abolicionistas, pode-se citar, alguns heróis anônimos organizados, que lutaram contra o escravismo no século XIX, por exemplo, os Caifazes33, que eram uma organização secreta com sede na confraria dos homens negros da Igreja Nossa Senhora dos Remédios, em São Paulo; Antônio Bento, filho de um farmacêutico, nascido em São Paulo, em 1841. Bento frequentara a Faculdade de Direito e depois de formado fora juiz de paz e juiz municipal.

Antônio Bento, nos cargos que ocupou, procurou sempre defender os escravos seguindo os passos de Luiz Gama. Essa confraria era composta por membros da sociedade das mais diversas esferas: negociantes como Abílio Soares e Costa Moreira; farmacêuticos como Luis Labre e João Cândido Martins; advogados, jornalistas, operários, cocheiros, artesãos, e estudantes da Faculdade de Direito, brancos, negros e mulatos.

Os caifazes denunciavam pela imprensa os horrores da escravidão; defendiam na Justiça, a causa dos escravos; faziam atos públicos em favor da sua emancipação; coletavam dinheiro para alforrias e protegia escravos fugidos.

Suas atividades não paravam aí; perseguiam também aos capitães do mato, sabotavam ações policiais e denunciavam os abusos cometidos pelos senhores, expondo-os à condenação pública.

Procuravam, ainda por intermédio da imprensa e da propaganda, manter a população constantemente mobilizada.34

Por outro lado, existiam, também, as publicações escravistas e os discursos nas tribunas políticas da época. Por exemplo, os clássicos discursos de José de Alencar em 1871, na Câmera dos Deputados.

Desde 1867 que o poder conspira, fatigando a relutância dos estadistas chamados ao Governo, embotando a resistência dos Partidos; desde 1867 que se prepara, nas sombras, este golpe de estado, que há de firmar no País o absolutismo, ou antes, desmascará-lo (ALENCAR, 1977 p.231).35

O que se observava era apenas o progresso contínuo, suave e natural da revolução íntima que desde muito se opera no Brasil e que tende a realizar a emancipação pelo melhoramento dos costumes, pela generosidade do caráter brasileiro, pela nossa civilização, que pulula com uma força imensa. Era o desenvolvimento dessa regeneração moral que dentro em pouco extinguiria a escravidão, independente dos esforços do Governo e das declarações dos propagandistas.36

Percebe-se que no discurso escravista, conservador e liberal ainda baseava-se na pretensa superioridade do homem civilizado, europeu e de costumes refinados, que seria o autentico tutor do negro, escravo, não civilizado e menos gente; nesse discurso, a arrogância dos escravistas mostra-se em uma perspectiva, extremamente, cruel, pois para essa parcela da sociedade o negro só se tornaria gente se estivesse sobre a guarda do branco, como escravo, porque, assim, poderia aprender a ser gente.

Além disso, a face arrogante do escravista mostrava-se ao percebermos a sutileza de suas declarações, que, por exemplo, insinuava os benefícios que os escravos tinham, em ser escravos, ou seja, os escravistas alegavam uma prática, até mesmo, caridosa frente ao negro, rude, menos gente e inferior.

Nos recortes apresentados, favoráveis e contrários ao escravismo, podemos perceber a dimensão desses debates, até porque, a sociedade brasileira desenvolveu-se em uma lógica agroexportadora, de produtos de baixo valor agregado e, portanto, a lucratividade adivinha, em boa medida, do não pagamento da mão de obra, ou seja, da exploração do trabalho escravo.

Nesse contexto, o negro escravo ou liberto sofreu uma grande pressão da sociedade, que os acusava de uma possível falência generalizada, isso fica provado ao observar os discursos dos escravista, que exigiam o pagamento de indenizações, por parte dos negros ou do governo imperial

2.6. A MANUTENÇÃO DA PRÁTICA EXPLORATÓRIA ALICERÇADA PELA MISÉRIA DOS RECÉM LIBERTOS

Após a consolidação do processo abolicionista e mesmo durante o percurso desse movimento, surgiram nas localidades mais populosas, ou seja, nos centros urbanos, as chamadas “Cidades Negras37”; alusão feita pelo historiador, Carlos Eugênio Líbano, que se constituíam em amontoados de moradias, normalmente, insalubres e em locais de difícil acesso.

Esse panorama, das moradias dos menos abastados, já sinalizava a completa marginalização que esses homens recém libertos continuariam a sofrer; o mesmo acorreria nas zonas rurais, por uma lado, muitos negros se quer deixaram as fazendas em que eram escravo, pois no abrigo dos seus senhores teriam no mínimo a alimentação e a estadia garantida; por outro lado, os negros libertos que deixavam as fazendas, principalmente, na região cafeeira não encontrava trabalho e acabavam por migrarem para as cidades, engrossando o número de mendigos, pedintes e, inevitavelmente, muitos indo para a criminalidade.

Essa constatação histórica pode ser considerada a maior mazela daquela sociedade escravocrata, que reflete a desigualdade social promovida naquele tempo e perpetuada em nosso país na atualidade.

Seria extremamente romântico se imaginássemos que a exploração do trabalhador como escravo findasse com uma Lei ou conjunto de Leis, primeiramente, pela dificuldade de fiscalização em um território de proporções continentais e, além disso, pelo costume enraizado, tanto na sociedade branca, como, também, nos povos negros. Logo, aquilo que era legal do ponto de vista legislativo, tornou-se prática costumeira, mas ilegal.

Sobre o autor
Hudson Alexandre Mendes Soares

Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, tendo como principais eixos de estudo o Direito Constitucional, a Filosofia do Direito e a Filosofia Política. Bolsista CNPq (2014-2015), sendo orientado pelo prof. dr. Thomas da Rosa de Bustamante - Iniciação científica com foco a filosofia política e jurídica de Jeremy Waldron, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES, Hudson Alexandre Mendes. Da escravidão legalizada ao trabalho escravo ilegal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4252, 21 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36508. Acesso em: 2 nov. 2024.

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