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A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA ÀS TRANSEXUAIS FEMININAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

O presente artigo tem por escopo discutir a aplicabilidade dos mecanismos previstos na Lei n.11.340/2006 às transexuais que sejam vitimas de violência domestica e familiar.

 

A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA ÀS TRANSEXUAIS FEMININAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

 

Autores: Claudia Aoun Tannuri (Defensora Pública) e Daniel Jacomelli Hudler (Acadêmico de Direito- Estagiário da Defensoria Pública)

           

O presente artigo tem por escopo discutir a aplicabilidade dos mecanismos previstos na Lei n.11.340/2006 às transexuais que sejam vitimas de violência domestica e familiar.

 

1. A Lei Maria da Penha e seu significado

 

            Inicialmente, cumpre estabelecer um breve panorama sobre o contexto em que foi promulgada a Lei n.11.340/2006, bem como sobre o seu significado e sua importância para a proteção dos direitos humanos das mulheres.

 

Como é sabido, no âmbito do Direito das Familias aplica-se o principio da intervenção mínima, pelo qual se entende que a intervenção do Estado nas relações familiares somente deve ocorrer excepcionalmente, em situações extremas, como ultima ratio, uma vez que prevalece a regra geral da liberdade do individuo no âmbito da família.

 

Maior exemplo dessa atuação positiva excepcional do Estado encontra-se no parágrafo 8º do artigo 226 da Constituição Federal, que dispõe: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” Conquanto não haja referencia expressa, parece-nos que a preocupação central do constituinte foi a proteção às mulheres vitimas de violência domestica e familiar. Trata-se, inclusive, de uma interpretação sistemática, em cotejo com outros dispositivos constitucionais (artigo 5º, caput e inciso I; artigo 226, parágrafo 5º).

 

Além da previsão constitucional, o Brasil ratificou diversos instrumentos normativos de proteção aos direitos das mulheres no plano internacional, com destaque para a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher[1] e para a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher [2]. Apesar do arcabouço legislativo, bem como do compromisso assumido pelo Brasil perante a comunidade internacional enquanto signatário de tratados sobre o tema, a violência domestica e familiar contra a mulher não vinha recebendo do Estado brasileiro a atenção necessária à sua efetiva punição e à sua eliminação.

 

A situação somente mudou a partir da apresentação de denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela corajosa cidadã Maria da Penha Maia Fernandes, após as gravíssimas violações que sofreu por parte do próprio marido no âmbito domestico. A denuncia também foi subscrita pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM). Adveio de tal provocação o Relatório 54/2001, o qual apontou diversas falhas cometidas no caso em analise (tais como a ineficácia judicial, a impunidade e a impossibilidade de a vitima obter uma reparação) bem como emitiu recomendações ao Estado brasileiro, tais como a simplificação dos “procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual”.

 

O caso Maria da Penha trouxe à tona uma realidade dura e cruel de sofrimento e violações de direitos humanos por que passavam milhares de mulheres no país; tornou-se, assim, imperativa a adoção de mecanismos visando coibir a violência domestica e familiar contra a mulher. Foi nesse contexto que, em 7 de agosto de 2006 foi sancionada a Lei n. 11.340/06, a qual entrou em vigor em 22 de setembro de 2006.

 

Trata-se de diploma legal de extrema relevância, que constitui um verdadeiro marco no histórico de proteção dos direitos humanos do gênero feminino, e, por via de consequência, das famílias e da sociedade como um todo.

 

A Lei Maria da Penha prestigia os direitos fundamentais das mulheres, com importante destaque para o livre exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Disciplina mecanismos de caráter repressivo, preventivo e assistencial que têm por escopo coibir a violência praticada contra o gênero feminino, no âmbito da unidade domestica, da família ou de qualquer relação intima de afeto.

 

Inovou a lei ao trazer, de forma inédita em nosso ordenamento jurídico, o conceito de família (artigo 5º, inciso II), em consonância com o princípio constitucional da pluralidade de entidades familiares, incluindo no conceito inclusive as comunidades formadas por indivíduos aparentados por vontade expressa. Ademais, enaltece o elemento do afeto nas relações interpessoais (artigo 5º, inciso III). Nesse contexto, prevê a tutela jurídica das entidades familiares entre pessoas do mesmo sexo, (artigos 2º e 5º, parágrafo único), assim como as famílias paralelas e poliafetivas.

 

2. O gênero feminino como sujeito passivo da Lei Maria da Penha

 

            Feitas essas breves considerações, passa-se agora à analise do sujeito de proteção da Lei n.11.340/2006.

 

            A Lei Maria da Penha tem por objetivo coibir a violência de gênero, decorrente de uma posição de hipossuficiência física ou econômica no âmbito doméstico, a qual gera uma situação de opressão da vitima. Maria Amelia Teles e Monica de Melo entendem que a violência de gênero representa “uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da historia e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos.”[3]

 

E essa vitima, necessariamente, tem que ser mulher, ou seja, pertencer ao gênero feminino. Eventual prática de violência doméstica em que a vítima seja um homem poderá ser tipificada como lesões corporais, crime previsto no artigo 129, parágrafo 9º, do Código Penal; contudo, não enseja a aplicação dos dispositivos da Lei n.11.340/2006.

 

            Trata-se de um estatuto que visa à proteção diferenciada de um grupo socialmente vulnerável, em consonância com o princípio da isonomia e em atenção ao comando previsto no artigo 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal.

 

            Tal proteção destina-se à mulher, entendida como a pessoa pertencente ao gênero feminino. É por essa razão que, tanto a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (artigo 1º), como a Lei Maria da Penha (artigo 5º, caput), ao definirem a violência domestica e familiar contra a mulher, fazem referência ao termo “gênero”, e não ao termo “sexo”. Enquanto este apresenta natureza biológica e é determinado quando a pessoa nasce, aquele é definido ao longo da vida, sendo uma construção social, que identifica papéis de natureza cultural, e que levam à aquisição da masculinidade ou da feminilidade.[4]

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Neste tocante, relevante a compreensão trazida em 2006, por um grupo de especialistas internacionais[5] que, reunidos na Universidade Gadjah Mada, na cidade de Yogyakarta, Indonésia, estabeleceram princípios voltados à aplicação da legislação internacional de Direitos Humanos no que concerne à orientação sexual e à identidade de gênero – mais conhecidos como Princípios de Yogyakarta.

 

No referido diploma, tem-se que a orientação sexual é a capacidade de cada indivíduo atrair-se emocional, afetiva ou sexualmente por indivíduos de gênero distinto, do mesmo ou de mais de um gênero, assim como de manter relações íntimas e sexuais com essas pessoas; por sua vez, a identidade de gênero é definida como a experiência pessoal de gênero, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, englobando o sentimento em relação aos seus aspectos corporais e outras expressões de gênero, como a vestimenta, o modo de falar e maneirismos.

 

Vale enaltecer, ainda, que este documento internacional não limita o conceito de identidade de gênero aos aspectos extrínsecos ou secundários do sexo biológico, muito embora permita expressamente ao individuo a modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros.

 

Estabelecido o gênero feminino como sujeito de proteção da Lei n.11.340/2006, surge a seguinte indagação: teria a lei aplicabilidade às transexuais femininas, ou seja, que têm identidade sexual com o gênero feminino?

 

Antes de traçarmos a analise da questão, cumpre estabelecer algumas distinções terminológicas, para melhor compreensão da matéria.

 

3. Distinções entre o individuo homossexual, transexual, travesti e transgênero

 

A homossexualidade refere-se à característica ou qualidade de um ser (humano ou não) que sente atração físicaestética e/ou emocional por outro ser do mesmo sexo ou gênero. Na área médica, a homossexualidade era absurdamente considerada como doença (homossexualismo), o que perdurou oficialmente até o dia 17 de maio de 1990, com a retirada definitiva pela Assembleia Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) – data esta que foi, inclusive, eleita como Dia Internacional de Combate à Homofobia.

 

A seu turno, a transexualidade caracteriza-se, em suma, pelo desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, acompanhado geralmente do sentimento de mal estar ou de inadaptação em relação a seu próprio sexo anatômico, compreendendo uma necessidade íntima de adequação do aspecto físico àquele do gênero pelo qual se identifica psicologicamente. No Brasil, o tratamento médico dispensado ao transexual foi regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da Resolução n. 1955/2010, pelo qual se permite, entre outros procedimentos, a realização de cirurgia de transgenitalização – que , frisa-se, não afasta a incidência de outros procedimentos e tratamentos, a exemplo da hormonoterapia.

 

Já a travesti é a pessoa que se utiliza de vestimentas do sexo oposto, satisfazendo-se com aquela experiência temporária de pertencimento àquele gênero sem, contudo, buscar uma alteração sexual mais permanente.

 

Outra designação a ser comentada é a do transgênero. Em verdade, distingue-se do transexual na medida em que não possui necessariamente uma profunda insatisfação com o sexo morfológico, tampouco a pretensão de adequá-lo ao gênero oposto – muito embora possa apresentar traços de um ou de outro sexo. Essa denominação termina por ser a mais aceita para aqueles que não se enquadram (ou não se consideram) necessariamente homens ou mulheres.

 

Nesse sentido, oportuna a diferenciação traçada pelo psiquiatra Alexandre Saadeh: “Transexualismo é a real percepção que um indivíduo tem de que seu gênero (noção de ser homem ou mulher) não está adequado ao seu sexo anatômico (masculino ou feminino), e a busca eficaz e persistente de uma adequação física ao seu gênero psíquico. Trangênero é todo aquele que transita entre os gêneros sem necessariamente recorrer ao uso de hormônios ou de cirurgias transformadoras radicais. É importante diferenciar da homossexualidade, que diz respeito à orientação sexual e corresponde ao desejo por alguém do mesmo sexo/ gênero. Aqui estamos falando de desejo pelo igual. Já a transexualidade é a vivência sexual do transexualismo.” [6]

 

            Assim, observa-se que a transexual feminina pertence ao gênero feminino e busca de forma persistente a adequação a esse gênero, tanto do ponto de vista físico (por meio, por exemplo, de hormonoterapia e cirurgia de transgenitalização) como social (por meio da utilização de nome social, ou da alteração registral do prenome e do estado sexual). Contudo, independentemente de tais formas de adequação, a transexual pertence, e sempre pertenceu, ao gênero feminino; ou seja, ela é uma mulher[7], razão pela qual a ela se aplica integralmente a Lei n.11.340/2006, conforme a seguir será explicitado.

 

4. A aplicabilidade da Lei Maria da Penha às transexuais

 

            Como já afirmado, a transexual pertence ao gênero feminino, sendo este o seu sexo psicológico. Assim, em respeito à sua identidade de gênero, não há como lhe negar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha. De se frisar ainda que o artigo 2º, bem como o artigo 5º, parágrafo único, vedam qualquer forma de discriminação em razão da orientação sexual.

 

            Pode-se afirmar que as transexuais encontram-se em situação de dupla vulnerabilidade: por um lado, em virtude da discriminação pelo gênero, e de outro,  em razão da discriminação pela orientação sexual. Dessa forma, são vitimas de várias formas de violência, notadamente no âmbito domestico e familiar.

 

O respeito e o reconhecimento da identidade de gênero da pessoa por meio de ações efetivas do Estado são destacados pelos Princípios de Yogyakarta, ao prever o Direito ao Reconhecimento Perante a Lei, cabendo aos Estados “tomar todas as medidas legislativas, administrativas e de outros tipos que sejam necessárias para respeitar plenamente e reconhecer legalmente a identidade de gênero autodefinida por cada pessoa.”

 

            Afirma Maria Berenice Dias, relativamente ao sujeito passivo da Lei n.11.340/2006, que “há a exigência de uma qualidade especial: ser mulher. Assim, lésbicas, transexuais, travestis e transgêneros, que tenham identidade social com o sexo feminino estão sob a égide da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui violência domestica.” E prossegue, ressaltando, com propriedade, que “descabe deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher.”[8]

 

            Com base nesse entendimento, a juíza Ana Claudia Magalhães, da 1ª Vara Criminal de Anápolis, aplicou medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha ao parceiro de uma transexual feminina, que sofria maus tratos por parte do parceiro. Em sua decisão, a magistrada destacou a condição de mulher da vitima, notadamente porque é assim vista pela sociedade, o que torna ainda mais legitima da aplicação da lei. Salientou ainda: “Somados todos esses fatores, conferir à ofendida tratamento jurídico que não o dispensado às mulheres (nos casos em que a distinção estiver autorizada por lei), transmuda-se no cometimento de um terrível preconceito e discriminação inadmissível, posturas que a Lei Maria da Penha busca exatamente combater.”[9]

 

            Há também um precedente do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, em caso semelhante:

 

“Conflito negativo de competência. Violência doméstica e familiar. Homologação de auto de prisão em flagrante. Agressões praticadas pelo companheiro contra pessoa civilmente identificada como sendo do sexo masculino. Vitima submetida à cirurgia de adequação do sexo por ser hermafrodita. Adoção do sexo feminino. Presença de órgãos reprodutores femininos que lhe conferem a condição de mulher. Retificação do registro civil já requerida judicialmente. Possibilidade de aplicação, no caso concreto, da Lei n.11.340/06. Competência do juízo suscitante. Conflito improcedente.” (TJSC, CJ 2009.006461-6, j.14.08.2009, 3ª Câmara Criminal, rel.Des.Roberto Lucas Pacheco).

 

            Entretanto, respeitado o entendimento supracitado, cumpre tecer algumas considerações, no tocante à exigência da realização de cirurgia de transgenitalização e da alteração registral de prenome e estado sexual, posicionamento esse que também é adotado por parte da doutrina. Como já afirmado, trata-se de providencias que a transexual adota para melhor adequação física e social de seu gênero; entretanto, mesmo antes dessas providencias, e independentemente delas, a transexual feminina pertence ao gênero feminino. Ou seja, é mulher e sempre foi mulher, razão pela qual a ela se aplica, incondicionalmente, a Lei Maria da Penha.

 

            Não é o procedimento cirúrgico, ou a alteração registral, que tornará a transexual uma mulher; isso porque ela já é uma mulher, independentemente da presença da genitália masculina, que define unicamente o sexo biológico, e não o gênero da pessoa.

 

            Nesse tocante, Carolina Valença Ferraz e Glauber Salomão Leite afirmam que “o sexo jurídico pode ser objeto de uma escolha livre do individuo, baseada em sua identidade de gênero, como expressão da dignidade humana. Assim, se a pessoa se identifica com o gênero feminino, se ela se vê desta forma, apresentando-se socialmente como mulher, ainda que fisicamente a genitália seja masculina (por não ter havido a intervenção cirúrgica de transgenitalização), o direito deverá não apenas respeitar essa decisão pessoal como reconhecer a sua validade, conferindo-lhe eficácia, para que as informações registrais sejam adequadas a essa realidade pessoal e social.” Destacam ainda que “a proteção constitucional da dignidade pressupõe o reconhecimento da capacidade de autodeterminação, de autonomia, para que as decisões tomadas na esfera da liberdade individual sejam preservadas, de modo a assegurar o pleno desenvolvimento da personalidade humana.” E concluem: “Destarte, não vemos obstáculo ao reconhecimento jurídico da condição feminina a transexuais não cirurgiadas e a travestis, a partir de uma interpretação construtiva da legislação vigente, mediante a admissão da força normativa da Constituição Federal.”[10]

 

            Eventual exigência de previa realização da cirurgia de transgenitalização e das alterações registrais (procedimentos esses que costumam ser demorados e muitas vezes obstaculizados) é de todo desarrazoada, incompatível e em desacordo com os objetivos da Lei Maria da Penha. Trata-se de diploma legal cujo escopo é coibir e pôr termo a uma situação de violência no âmbito doméstico ou familiar, punindo o agressor e protegendo a ofendida, o que, indiscutivelmente, deve ocorrer de forma urgente e incondicional.

 

            Alice Bianchini, em comentário sobre a questão, afirma: “Deve ser mencionado ainda que, para o amparo da Lei, não se faz necessária a mudança de nome, com alteração de registro de identidade.”[11]

 

            Assim, o entendimento que mais se coaduna com os objetivos da Lei Maria da Penha é o de sua integral e incondicional aplicabilidade às transexuais femininas, independentemente da prévia realização de cirurgia de transgenitalização ou da alteração registral de prenome e de estado sexual.

 

5. Considerações finais

 

            Em atenção ao comando constitucional contido no parágrafo 8º do artigo 226, bem como às disposições da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), foi editada a Lei n. 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, verdadeiro marco do histórico de lutas contra a violência de gênero, praticada no âmbito domestico.

 

            Como bem ressalta Tamara Amoroso Gonçalves, “o desvelamento das relações de gênero apontou caminhos para a conversão das necessidades de mulheres em direitos. Tendo em vista que o ambiente doméstico foi entendido, por muito tempo, como o espaço de não interferência estatal por excelência, a noção tradicional de direitos humanos- de direitos a serem protegidos no espaço público, garantias dos cidadãos oponíveis e seus Estados- não contempla adequadamente os direitos das mulheres. Estas, ao serem historicamente confinadas nos espaços privados, acabaram vivendo mais (mas não apenas) violências na esfera doméstica (o que tem a ver com o lugar de onde estas mulheres falam de seus problemas) e não na esfera pública.”[12]

 

            Como diploma legal assistencial e protetivo das mulheres, entendidas como todas aquelas pertencentes ao gênero feminino (e não somente ao sexo feminino), a Lei Maria da Penha deve ser aplicada às transexuais femininas que tenham sido vitimas de violência doméstica e familiar, as quais se encontram em evidente situação de vulnerabilidade social. Tal entendimento vem ao encontro dos princípios da dignidade humana e da igualdade, sendo que, a própria Lei n.11.340/2006, em seu artigo 2º, traz vedação expressa a qualquer tratamento discriminatório em virtude da orientação sexual.

 

            Independentemente de qualquer adequação física, cirúrgica ou registral, a transexual feminina é, e sempre foi, mulher; essa é a sua identidade de gênero, que deve ser reconhecida e respeitada pelo Estado, de modo a permitir o pleno desenvolvimento de sua personalidade e a sua realização pessoal.

           

 

               

 

  

 

 

 

 

 


[1]Também conhecida como CEDAW, foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1979; no Brasil, foi aprovada na integra pelo Congresso Nacional em 1994 e promulgada pelo Presidente da Republica por meio do Decreto n.4.377/2002.

[2] Também conhecida como Convenção de Belém do Pará, foi adotada pela Assembleia Geral da OEA em 6 de junho de 1994; no Brasil, foi aprovada pelo Congresso Nacional em 1995 e promulgada pelo Presidente da Republica por meio do Decreto n.1.973/1996.

[3] TELES, Maria Amélia de Almeida. MELO, Monica. O que é a violência contra a mulher. São Paulo:Brasiliense, 2002.

[4] GOMES, Alcir de Matos. Discurso jurídico, mulher e ideologia: uma análise da “Lei Maria da Penha”. São Paulo: Cristal Indústria Gráfica, 2012, p.88.

[5] Na ocasião, reuniram-se 29 especialistas em Direitos Humanos relacionados à temática oriundos de 25 países, incluindo o Brasil, coordenados pela Comissão Internacional de Juristas e pelo Serviço Internacional de Direitos Humanos.

[6] SAADEH, Alexandre. Crianças e adolescentes transexuais, uma realidade na saúde. Jornal da FFM, Publicação bimestral da Fundação Faculdade de Medicina, ano XII – n. 70 – nov/dez 2013. Disponível em: <http://extranet.ffm.br/wfcontent/subportals/Imprensa/Jornal/Jornal70.pdf>. Acesso em: 27 mai. 2014.

[7] A título exemplificativo dessa compreensão, cite-se o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, elaborado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, que, entre suas linhas de ação no tocante à saúde integral das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos, prevê a “incorporação dos princípios da política nacional de atenção integral à saúde da mulher na diferentes políticas e ações implementadas pelo Ministério da Saúde, promovendo e ampliando a atenção integral à saúde das mulheres em todas as suas especificidades, em especial: negras, indígenas, quilombolas, lésbicas, bissexuais, transexuais, em situação de prisão, do campo e da floresta, com deficiência, em situação de rua, com sofrimento psíquico, e os diferentes ciclos de vida da mulher, com ênfase nos processos de climatério e envelhecimento.”

[8] DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 3ª edição. São Paulo: RT, 2012, pp.61/62.

[9] Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-out-12/lei-maria-penha-aplicada-ex-companheiro-transexual>. Acesso em 03.ago.2014

[10] FERRAZ, Carolina Valença. LEITE, Glauber Salomão. A pessoa transgênera e o reconhecimento do direito de ser mulher: promoção da dignidade humana e garantia do desenvolvimento pessoal. In Manual dos Direitos da Mulher, org. FERRAZ, Carolina Valença. LEITE, George Salomão. LEITE, Glauber Salomão. LEITE, Glauco Salomão. São Paulo: Saraiva, 2013, p.233.

[11] BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha: Lei n.11.340/2006: Aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero. São Paulo: Saraiva, 2013, p.54.

[12] GONÇALVES, Tamara Amoroso. Direitos Humanos das Mulheres e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2013, pp.100/101.

Sobre os autores
Daniel Jacomelli Hudler

Acadêmico de Direito em São Paulo (SP). Estagiário da Defensoria Pública.

Claudia Aoun Tannuri

Defensora Pública do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

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