2. O Processo Cooperativo no Direito Processual Civil Brasileiro
Antes de mais nada, observamos que nossa Constituição Federal (CF) oferece os elementos necessários para o desenvolvimento de um direito processual civil baseado no modelo cooperativo de processo. O Estado é constituído como um Estado Constitucional: um Estado Democrático de Direito (art.1º, caput), fundado na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), cujo objetivo é construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) (MITIDIERO, 2011, p. 80). Ainda, resguarda como garantia fundamental o direito ao contraditório (art. 5º, LV).
Não se pretende aqui esgotar todas as características de um processo cooperativo presentes em nosso Código de Processo Civil (CPC), mas evidenciar aspectos do processo civil brasileiro que o alinham à proposta metodológica do formalismo-valorativo.
O dever de lealdade é respaldado pelo art. 14 e incisos do nosso Código de Processo Civil. Por meio desse artigo atribui-se a todos o dever de agir lealmente em juízo, sempre presando pela boa-fé e pela busca da verdade real (MITIDIERO, 2011, p. 105/111).
Cai bem trazer aqui a lição de Didier Jr. (2010, p. 61), para quem o inciso II do art. 14 do CPC é uma cláusula geral e reflete a evolução do pensamento jurídico brasileiro. Para referido professor, o texto normativo citado, diante da atual realidade constitucional, trata-se da consagração do princípio da boa-fé no processo. Texto que à época da edição do Código era encarado apenas como uma proibição geral de comportamentos dolosos. Encontramos aí a positivação do princípio da boa-fé processual. Princípio valioso para a estruturação de um processo cooperativo.
Há ainda em nosso Código regras de proteção à boa-fé, concretizadoras do princípio, como as previstas nos arts. 17 e 18 do CPC (DIDIER JR., 2010, p. 61).
Tratando-se da valoração de provas, os arts. 130 e 131 do código guiam o juiz a assumir uma postura ativa (MITIDIERO, 2011, p. 111).
A norma abre caminho para que o juiz tenha uma atuação dinâmica e efetiva na busca da justiça (LOPES, 1984, apud PARCHEN). Assim, ele está autorizado a não se vincular apenas às provas trazidas pelas partes. Contudo, caso se atenha a prova que não foi submetida ao debate das partes, deve promovê-lo, disseminando a garantia do contraditório, ponto alto do processo cooperativo (DIDIER JR., 2010, p. 54/55).
Além desses princípios e bases de estruturação, as regras de cooperação também podem ser extraídas do nosso código de processo. Dos arts. 340, I, e 342 do CPC depreende-se o dever de esclarecimento (GOUVEA, 2011, p. 376).
Esses dispositivos propiciam que o juiz busque junto às partes esclarecimentos que o possibilite julgar adequadamente o processo, “até porque o juiz não pode recusar-se a esclarecer-se e decidir, propositalmente, com base na dúvida e incerteza” (GOUVEA, 2011, p. 376).
Somam-se ainda a esses artigos, reforçando a ideia da presença do dever de esclarecimento na atual ordem processual, o art. 339 (GOUVEA, 2011, p. 376).
Por sua vez, o dever de prevenção pode ser extraído do art. 284 do CPC, ao tratar da emenda à inicial (GOUVEA, 2011, p. 377).
Aqui a regra de cooperação do juiz com as partes configura-se como um direito subjetivo do autor, cujo descumprimento acarretará nulidade à sentença de indeferimento da petição inicial. Lúcio Grassi de Gouvea (2011, p. 377) afirma ainda que o CPC, entretanto, não concede o mesmo direito à parte ré, que se vê impossibilitada de emendar, corrigir ou completar a contestação.
Complementa (GOUVEA, 2011, p. 377): “e no que diz respeito aos dispositivos reguladores da alteração do pedido ou causa de pedir, nosso diploma legal tem ainda mecanismos bastante limitados”. Quanto a isso o código se atem às palavras do art. 294, apenas: “antes da citação, o autor poderá aditar o pedido, correndo à sua conta as custas acrescidas em razão dessa inciativa”.
Sobre o dever de consulta, sobretudo no que tange à prolação de decisões-surpresa, não há previsão legal expressa no direito brasileiro (GOUVEA, 2011, p. 382). Dessa forma, o órgão judicial está autorizado a revelar na decisão qualquer matéria de apreciação oficiosa sem levá-la ao prévio conhecimento das partes. Posição que vai de encontro aos preceitos do processo cooperativo.
Por outro lado, o dever de auxílio encontra amparo nos arts. 355, 360 e 440 do CPC (GOUVEA, 2011, p. 383).
Conforme Gouvea (2011, p. 383), estes são dispositivos que tendem a “impedir que a parte venha a ter contra si uma decisão por não ter conseguido obter documento ou informação imprescindíveis ao julgamento do processo”. Alinhados, portanto, à ideia da comunidade de trabalho proposta pelo processo cooperativo.
Vislumbramos assim que o atual Código de Processo Civil brasileiro, embora datado de 1973, é informado pelo princípio da cooperação. Fato que, entretanto, decorre muito mais da interpretação do CPC conforme a realidade constitucional que vigora desde 1988 do que de sua base metodológica original, orientada pela perspectiva conceitualista de processo.
A par disso, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei do Senado n. 166/2010, que trata do Novo Código de Processo Civil. Vejamos alguns dispositivos:
Art. 1º. O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.
(…)
Art. 4º. As partes têm direito de obter em prazo razoável a solução integral da lide, incluída a atividade satisfativa.
Art. 5º. Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
Art. 6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
Art. 7º. É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.
(…)
Art. 9º. Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que esta seja previamente ouvida.
(…)
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.
Apresentados esses dispositivos do novo código, percebemos que a lei brasileira caminha no sentido de adequar expressamente o ordenamento processual civil aos ditames do Estado Constitucional e ao que prescreve um modelo cooperativo de processo. O texto promove o que já ocorreu há anos, por exemplo, nos sistemas processuais alemão, austríaco, francês, português e italiano (MITIDIERO e NUNES, 2010).
Freitas (2006) argumenta que essa forma cooperativa de se trabalhar o processo poderia ser incentivada no direito brasileiro sem grandes afrontas ao ordenamento vigente, bastando uma “dedução da regulação legal atualmente em vigor e da própria ratio legis”. Entretanto, reformas legislativas, como a efetuada pelo parlamento brasileiro, são importantes para a intensificação da finalidade cooperativa que deve prevalecer no processo civil contemporâneo.
Oliveira (2010, p. 13), por sua vez, encontra no modelo cooperativo de processo solução para o enfrentamento da atual situação que vive o Poder Judiciário brasileiro, cada vez mais pressionado pelo aumento geométrico das causas que chegam ao sistema. Como forma de reverter esse cenário, discorre o autor:
É indispensável incrementar o diálogo entre a magistratura e a sociedade civil, e especialmente com a sua interface perante o Judiciário, os advogados. Também se revela essencial a adoção de um contraditório forte, que impeça o juiz de utilizar nas suas decisões qualquer matéria que não tenha sido previamente discutida pelas partes, mesmo as conhecíveis de ofício. Ademais, impõe-se que a Academia se preocupe com o surgimento de uma nova mentalidade, capaz de emprestar significado relevante aos direitos fundamentais – recolocando a técnica no seu papel meramente auxiliar. Por último, mas não menos importante, o agir ético de todos os participantes do processo, sem exceção, deve prevalecer no ambiente judicial.
Não obstante, antes de qualquer coisa é preciso uma mudança de mentalidade para que o processo cooperativo tenha êxito. É preciso uma alteração da cultura processual (MITIDIERO, 2009). Mitidiero e Nunes (2010) entendem que para o avanço desse modelo processual no Brasil é necessário que se deixe de lado a visão na qual advogados e juízes travam no processo uma batalha institucionalizada entre categorias profissionais, onde a força do juiz se transforma em prepotência e a atuação do advogado é exercício de esperteza.
Em destaque a lição de Miguel Teixeira de Souza (1997, apud FREITAS, 2006): “não pode ser esquecido que mesmo a mais perfeita das legislações processuais, não logrará obter qualquer êxito se as suas inovações e desideratos não forem acompanhados por uma mudança das mentalidades dos profissionais do foro”.
A disputa entre a advocacia e a magistratura, que gera protagonistas e promove a piora do sistema jurídico brasileiro, deve ser substituída por uma interação pautada na cordialidade e consideração, onde cada um assuma efetivamente responsabilidades técnicas e interdependência, facilitando o trabalho em conjunto (MITIDIERO e NUNES, 2010). Sem isso a alteração legislativa por si só não produzirá modificações no sistema processual civil brasileiro. Deve vir acompanhada de uma quebra de postura daqueles que diariamente lidam com o Direito Processual Civil.
Considerações Finais
O modelo cooperativo de processo surge como decorrência do advento do Estado Constitucional e das construções doutrinárias da metodologia do formalismo-valorativo.
É um modelo que traduz um processo assentado na cooperação/participação dos integrantes da relação processual. Um processo que busca assegurar direitos, especialmente direitos fundamentais. Um processo estruturado por pressupostos sociais (participação e diálogo), lógicos (argumentação e fundamentação) e éticos (boa-fé objetiva e busca pela verdade real). Um processo que tem por base principiológica os princípios da colaboração, do contraditório, do devido processo legal e da boa-fé objetiva. Um processo que para o seu funcionamento exige o cumprimento de regras básicas, que impõem deveres e responsabilidades aos seus integrantes: esclarecimento, consulta, prevenção e auxílio.
Certo é que o processo cooperativo é uma realidade a ser praticada em nosso ordenamento processual civil. A Constituição Federal brasileira dá sustentação para a sua implementação. Nosso atual Código de Processo Civil contém dispositivos que dão respaldo às regras de cooperação. E o novo Código também está fundado no princípio da cooperação.
Contudo, para o sucesso na aplicação desse modelo é necessário antes uma mudança de postura. Mudança de atitude daqueles que manejam o direito. Juízes, advogados, defensores, promotores, partes, é preciso que todos lancem um novo olhar sobre o processo civil, a fim de que ele verdadeiramente sirva ao que se destina: mais que um instrumento para efetivar o direito material e promover justiça, um local de locução e confronto de ideias, a serviço da paz social e da garantia de direitos, onde cada um tem responsabilidades e deveres, preservando a democracia e promovendo os direitos fundamentais.
Referências
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Nota
1 Segundo OLIVEIRA (2010, p. 23), “nessa perspectiva, o processo é visto, para além da técnica, como fenômeno cultural, produto do homem e não da natureza. Nele os valores constitucionais, principalmente o da efetividade e o da segurança, dão lugar a direitos fundamentais, com características de normas principiais. A técnica passa a segundo plano, consistindo em mero meio para atingir o valor. O fim último do processo já não é mais apenas a realização do direito material, mas concretização da justiça material, segundo as peculiaridades do caso. A lógica é argumentativa, problemática, da racionalidade prática. O juiz, mais do que ativo, deve ser cooperativo, como exigido por um modelo de democracia participativa e a nova lógica que informa a discussão judicial, ideias essas inseridas em um novo conceito, o de cidadania processual”.