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Dupla garantia na responsabilidade civil do Estado: garantia em função do servidor ou do administrado?

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Agenda 17/08/2017 às 09:30

II - PELA DUPLA GARANTIA: DESCONSTRUÇÃO DOS ARGUMENTOS DO STJ E AFIRMAÇÃO DA LINHA SEGUIDA PELO STF COMO CONSENTÂNEA COM O ORDENAMENTO VIGENTE

Neste capítulo do trabalho, buscaremos assentar a tese empregada pelo Supremo Tribunal Federal quando diz que não é possível que o particular acione diretamente o agente estatal na pretensão indenizatória, cabendo-lhe aforar o pedido em face do Estado que, nos casos de dolo ou culpa, atuará regressivamente contra o causador do dano.

2.1 - Um argumento histórico: os regimes de solidariedade e de regressividade previstos nas Constituições brasileiras

O panorama histórico das Constituições brasileiras revela que o tratamento dado à temática foi distinto, podendo-se estabelecer três sistemas bem definidos: um que orientou as Constituições de 1824 e 1891; outro, as Constituições de 1934 e 1937; e um terceiro, as Constituições de 1946 em diante.

Em linhas gerais, as Constituições de 1824 e 1891 estabeleceram que os funcionários públicos responderiam estritamente por abusos e omissões no exercício do cargo ou função, bem como pela indulgência ou negligência na apreciação dos atos dos inferiores hierárquicos (artigos 179, XXIX, e 82, respectivamente). Portanto, previa a responsabilidade exclusiva do funcionário público, havendo inclusive um Decreto que determinava a exclusão da União em decorrência de atos criminosos de seus funcionários, ainda que praticados no exercício do cargo, emprego, função ou desempenho de serviços públicos federais (Decreto n.º 24.216, de 9 de maio de 1934).

Por outro lado, as Constituições de 1934 e de 1937 estabeleceram o sistema da solidariedade, prevendo que “os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício de seus cargos” (art. 171 da Constituição de 1934). Note-se que o § 1º do aludido dispositivo previa a obrigatória citação do funcionário como litisconsorte na ação proposta contra a Fazenda Pública e fundada em lesão praticada por agente estatal. O art. 158 da Constituição de 1937 reproduziu o disposto no art. 171 da Constituição de 1934.

Já a partir da Constituição de 1946, o sistema adotado foi o da regressividade, ao passo em que os dispositivos passaram a contemplar o manejo da ação regressiva nos seguintes termos: 

Constituição de 1946

Art. 194 - As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. 

Parágrafo único - Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.

Constituição de 1967

Art. 105 - As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

Parágrafo único - Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.

EC n.º 1 de 1969

Art. 107 - As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros.

Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.

Essa diferenciação foi bem apanhada por Pontes de Miranda, conforme aborda J. Cretella Jr. em seus comentários à Constituição de 1988:

Pontes de Miranda elucida que, pelo princípio da responsabilidade em ação regressiva, da última Constituição, a de 1946, em vez do princípio da solidariedade, das Constituições de 34 e 37, os interesses do Estado passaram à segunda plana - não há litisconsórcio necessário, nem solidariedade, nem extensão subjetiva da eficácia executiva da sentença contra a Fazenda Nacional, Estadual ou Municipal, ou contra outra pessoa jurídica de direito público interno. Há, apenas, o direito de regresso (Comentários à Constituição de 1946, 2.ª ed., 1953, vol. 5, p. 263). O mesmo se pode dizer das Constituições de 1967 e de 1969, que adotaram, como a de 1946, o princípio da regressividade.

[...]

O princípio da regressividade das Constituições Federais (de 1946, de 1967 e de 1969) derrubou o princípio da solidariedade das Constituições Federais anteriores (de 1934 e 1937) [...].

Pois bem. Na lição de Barroso, “a Constituição merece uma apreciação destacada dentro do sistema, à vista do conjunto de peculiaridades que singularizam suas normas”. Para ele, “a superioridade jurídica, a supralegalidade, a supremacia da Constituição é a nota mais essencial do processo de interpretação constitucional”.  É isso o que confere caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento, “de forma tal que nenhum ato jurídico possa subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier seu sentido”. 

Desta forma, se é possível estabelecer uma alteração paradigmática no trato da matéria entre as Constituições, isso deve ser levado em consideração pelo intérprete e operador do Direito. Uma vez que o princípio da regressividade “derrubou” o princípio da solidariedade, utilizando a expressão de Cretella Jr., força compreender que não mais vige a solidariedade.

Sem delongar o ponto, parece evidente que era o regime da solidariedade que permitia ao lesado escolher contra quem irá mover o processo judicial, porquanto esse sistema contempla a concorrência de mais de um credor ou devedor numa mesma obrigação. Assim, outorga-se ao credor o direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum (utilizando os termos previstos nos artigos 264 e 275 do Código Civil).

Quando o sistema constitucional molda a atuação do Estado em regresso contra o agente estatal, fica transparente a ideia de que ao lesado cabe agir apenas em face do Estado, não diretamente contra o agente.

Então, a conclusão do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que não se prevê uma “demanda de curso forçado em face da Administração Pública” soa equivocada. Há, sim, curso forçado no acionamento em busca da responsabilidade civil do Estado, pois não há mais solidariedade na legitimação do Estado e do agente estatal.

2.2 - Um argumento orgânico: a que título age o agente estatal, senão em nome do Estado?

Para enfrentar o presente tópico, são essenciais as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello a respeito da ação do Estado. Antes, porém, uma advertência há de ser feita: o administrativista, no seu Curso, conclui que o particular pode ajuizar a demanda diretamente em face do agente estatal, cabendo a ele a decisão. Não concordamos com essa proposta, no entanto, é preciosa sua manifestação acerca da ação do Estado:

38. Como pessoa jurídica que é, o Estado, entidade real, porém abstrata (ser de razão), não tem vontade nem ação, no sentido de manifestação psicológica e vida anímica próprias. Estas, só os seres físicos as possuem. Tal fato não significa, entretanto, que lhe faltem vontade e ação, juridicamente falando. Dado que o Estado não possui, nem pode possuir, um querer e um agir psíquico e físico, por si próprio, como entidade lógica que é, sua vontade e sua ação se constituem na e pela atuação dos seres físicos prepostos à condição de seus agentes, na medida em que se apresentem revestidos desta qualidade.

39. Assim como o Direito constrói a realidade (jurídica) “pessoa jurídica”, também constrói para ela as realidades (jurídicas) vontade e ação, imputando o querer e o agir dos agentes à pessoa do Estado.

    A relação entre a vontade e a ação do Estado e de seus agentes é uma relação de imputação direta dos atos dos agentes ao Estado. Esta é precisamente a peculiaridade da chamada relação orgânica. O que o agente queira, em qualidade funcional - pouco importa se bem ou maldesempenhada -, entende-se que o Estado quis, ainda que haja querido mal. O que o agente nestas condições faça é o que o Estado fez. Nas relações não se considera tão só se o agente obrou (ou deixou de obrar) de modo conforme ou desconforme com o Direito, culposa ou dolosamente. Considera-se - isto, sim - se o Estado agiu (ou deixou de agir) bem ou mal.

    Em suma: não se bipartem Estado e agente (como se fossem representado e representante, mandante e mandatário), mas, pelo contrário, são considerados uma unidade. A relação orgânica, pois, entre o Estado e o agente não é uma relação externa, constituída exteriormente ao Estado, porém interna, ou seja, procedida na intimidade da pessoa estatal.

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Com efeito. A responsabilidade civil do Estado é, como a denominação do instituto já revela, uma responsabilidade do próprio Estado, cujos atos são praticados por seus agentes. A imputação da conduta recai sobre o Estado nos casos em que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. Com escusas pela tautologia, mas a responsabilidade civil do Estado é do Estado. 

Bulos aprecia de forma interessante este ponto, com base em Renato Alessi:

Por meio dos agentes públicos, o Estado encontra quem exprima sua vontade.

Como observou Renato Alessi, o Estado não é um ser personificado, a ponto de praticar ações por si mesmo, tomando decisões próprias. Como organismo lógico que é, precisa de seres físicos para vivificar o seu querer e o seu agir (Sistema instituzionale del diritto amministrativo, p. 80).

Por isso entendemos, com José Afonso da Silva, que a leitura da impessoalidade prevista no art. 37, caput, da CRFB, pode trazer a ideia de que o governo é impessoal, ou seja, a conduta do Estado não é “pessoalizada”. Todos agem em nome da Administração Pública, cabendo-lhe a imputação dos atos e provimentos administrativos:

    O princípio ou regra da impessoalidade da Administração Pública significa que os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica mas ao órgão ou entidade administrativa em nome do qual age o funcionário. Este é um mero agente da Administração Pública, de sorte que não é ele o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade estatal. Por conseguinte, o administrado não se confronta com o funcionário x ou y que expediu o ato, mas com a entidade cuja vontade foi manifestada por ele. É que a “primeira regra do estilo administrativo é a objetividade”, que está em estreita relação com a impessoalidade.

    Logo, as realizações administrativo-governamentais não são do funcionário ou autoridade, mas da entidade pública em nome de quem as produzira. A própria Constituição dá uma consequência expressa a essa regra, quando, no § 1º do art. 37, proíbe que constem nome, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos em publicidades de atos, programas, obras, serviços a campanhas dos órgãos públicos.

    Por isso é que a responsabilidade, para com terceiro, é sempre da Administração, como veremos logo mais.

    A personalização, ou seja, a individualização do funcionário, pode ser recomendável, quando atue não como expressão da vontade do Estado, mas como expressão de veleidade, capricho ou arbitrariedade pessoal. Então, como nota Gordillo, “o ataque ou impugnação concreta à pessoa do funcionário só é um meio direto de lograr que ela mesma ou seu superior corrija o fato ou omissão danosa”. A personalização vale assim para imputar ao funcionário uma falta e responsabilizá-lo perante a Administração Pública, a fim de que esta lhe imponha a punição cabível.

A ideia da impessoalidade apresentada foi endossada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, quando reproduz a lição de José Afonso da Silva acima apresentada (in Direito Administrativo, 25ª ed., São Paulo: Atlas, 2012, p. 68). Também Diógenes Gasparini refere em sua obra a ideia de impessoalidade ora analisada (in Direito administrativo. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 63).

É possível, neste sentido, fazer uma ligação entre o sentido de impessoalidade trazido por José Afonso da Silva e a atribuição jurídica a uma vontade e a uma ação ao Estado que Celso Antônio Bandeira de Mello refere, visto acima. De fato, não dotando o Estado de manifestação anímica e vida psicológica próprias, seus atos são exercidos por seus agentes, cujas consequências, quando exercidos no desempenho das funções estatais, revela a responsabilidade civil do Estado.

Sobre governo impessoal, valemo-nos da doutrina de André Ramos Tavares, citando Cármen Lúcia Antunes Rocha:

Estado de Direito e governo impessoal

Como afirma Cármen Lúcia Antunes Rocha, “O Direito dota de personalidade própria o Estado, que não assume a pessoalidade do governante”. O Estado de Direito ignora a pessoa que momentaneamente estiver no centro do poder. Apresenta características próprias, inconfundíveis com as características do detentor do poder.

[...]

Significado do princípio da impessoalidade

O princípio em epígrafe apresenta duas vertentes na análise de seu conteúdo.

[...]

De outra parte, o princípio da impessoalidade aplica-se internamente à Administração, para evitar que esta apresente-se com a marca pessoal do ocupante momentâneo do poder ou outra fórmula de identificação de sua pessoa. Nesse sentido, todos os atos praticados no exercício de função pública são imputáveis à Administração, e não à pessoa que o executa.

Para correlacionar a imputação das ações dos agentes, o Direito Administrativo passou por algumas teorias, inicialmente estabelecendo que os agentes eram mandatários do Estado (teoria do mandato). A seguir, sobreveio a teoria da representação, em que considerava os agentes representantes do Estado. Finalmente, com Otto Gierke, se apresentou a teoria do órgão, que traz a ideia de imputação da ação dos agentes à vontade jurídica da pessoa jurídica. Vejamos a evolução na relação órgão/pessoa, com apoio em José dos Santos Carvalho Filho:

Primitivamente se entendeu que os agentes eram mandatários do Estado (teoria do mandato). Não podia prosperar a teoria porque, despido de vontade, não poderia o Estado outorgar mandato.

Passou-se a considerar os agentes como representantes do Estado (teoria da representação). Acerbas foram as críticas a essa teoria. Primeiro, porque o Estado estaria sendo considerado como uma pessoa incapaz, que precisa da representação. Depois, porque se o dito representante exorbitasse de seus poderes, não se poderia atribuir responsabilidade ao Estado, este como representado. A solução seria, à evidência, iníqua e inconveniente.

Por inspiração do jurista alemão OTTO GIERKE, foi instituída a teoria do órgão, e segundo ela a vontade da pessoa jurídica deve ser atribuída aos órgãos que a compõem, sendo eles mesmos, os órgãos, compostos de agentes.

Na teoria do órgão, o que se destaca é o denominado princípio da imputação volitiva que, nas palavras de Carvalho Filho, “a vontade do órgão público é imputada à pessoa jurídica cuja estrutura pertence”, exatamente como exposto. Prossegue o autor, dizendo que “há, pois, uma relação jurídica externa, entre a pessoa jurídica e outras pessoas, e uma relação interna, que vincula o órgão à pessoa jurídica que pertence”.

Ou seja, pela imputação volitiva, ressoa coerente entender que a relação entre o Estado e o lesado é a relação externa, a qual não diz respeito ao órgão e o agente que executa as funções. A relação entre o órgão e a pessoa jurídica a que pertence é interna, fora do diâmetro jurídico entre o lesado e o Estado. Assim, de qualquer ângulo que se observe, não há como entender possível o lesado ajuizar a ação diretamente em face do agente, dado que este somente responderá perante a Administração, nos casos de comprovação de dolo ou culpa, em regresso (relação interna).

2.3 - Um argumento estrutural: a democracia republicana e a institucionalização da organização administrativa

Marçal Justen Filho faz uma abordagem interessante acerca da democracia republicana e os reflexos na Administração Pública. Ressalta uma natureza institucional, que, organizadamente, garanta a promoção de valores fundamentais. 

Certo que esse desiderato vai ser melhor alcançado se institucionalmente a Administração Pública tiver uma estrutura que permita aos seus agentes agir somente para a busca do interesse público. Isso era prejudicado enquanto adotada uma “concepção napoleônica” da Administração Pública, ou seja, um modelo estruturalmente hierarquizado, em que as decisões são centralizadas no escalão mais elevado, sem distribuição de responsabilidades e reconhecimento dos demais agentes. São suas palavras:

14.3 A democracia republicana: a proteção ao ocupante da função relevante

    A Administração Pública não é apenas um conjunto de pessoas. Ela tem natureza institucional, o que significa um conjunto de pessoas atuando de modo organizado, permanente e contínuo, segundo regras específicas e comprometidas com a promoção de valores fundamentais.

14.3.1 A concepção napoleônica da Administração Pública

    A organização administrativa dos agentes estatais é fortemente influenciada pelo modelo napoleônico, que organizou as atividades administrativas segundo uma feição militar. Isso se traduz numa estrutura piramidal hierarquizada, em que todas as decisões são centralizadas no escalão mais elevado.

Marçal defende a institucionalização da organização administrativa, já que a concepção anterior (“napoleônica”) se torna incompatível com a democracia e o risco de ineficiência. O autor traz como um dos elementos base do modelo institucionalizado o reconhecimento de garantias aos servidores públicos. Busca, com Max Weber, uma estrutura burocrática estável, que, assim, vai neutralizar as influências indevidas:

    A estruturação da atividade administrativa em carreiras estáveis, com o reconhecimento de garantias aos servidores públicos, reflete a diferenciação entre o corpo administrativo burocrático e os cargos de direção superior. Não é possível impor a todos os exercentes das funções administrativas uma vinculação subjetiva à vontade da autoridade superior.

    A estruturação hierárquica da organização administrativa não significa a necessidade de que o conteúdo de cada ato praticado pela autoridade inferior seja compatível com a vontade da autoridade superior. Cada agente administrativo é responsável pelos atos que praticar, sendo incabível reputar que a validade do ato praticado por um agente administrativo dependa da concordância com a vontade do superior hierárquico.

    Tal como apontado por Max Weber, a estrutura burocrática estável é condição inafastável para a legitimidade democrática do poder político. A democracia exige que as funções públicas sejam exercidas por pessoas físicas integradas de modo permanente nas instituições estatais, sujeitas a um regime jurídico que lhes imponha e assegure atuação orientada à realização do direito. Isso significa a neutralização de influências indevidas, provenientes seja dos poderosos, seja da própria massa popular.

A argumentação exposta é muito procedente. Se não estivermos diante de uma estrutura burocrática com estabilidade, a sujeição dos agentes a influências externas indevidas, advindas dos poderosos ou mesmo da massa popular, pode comprometer uma Administração Pública eficiente, uma boa Administração Pública.

Por boa administração entendemos, com Cirne Lima, aquela que prima pela “ausência de subjetividade”, o que reflete na busca eficiente da finalidade pública. Há uma correlação entre os princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência, com base na ética e probidade:

Como se pode observar, as três acepções [do princípio da impessoalidade] confluem para definir a correta atuação do Estado enquanto administrador, relativamente à sua indisponível finalidade objetiva, que vem a ser aquela expressa na legislação, ou seja, totalmente despida de qualquer inclinação, tendência ou preferência subjetiva, mesmo em benefício próprio, condição que induziu Cirne Lima a afirmar que a boa administração é a que prima pela “ausência de subjetividade” [...].

A autonomia deste princípio [da moralidade], que, como se alertou, não deve ser confundido com a moralidade tout court, tampouco com o conceito de moralidade média, pois decorre de seu sentido rigorosamente técnico, correlacionado aos conceitos administrativos. Com efeito, enquanto a moral comum é orientada por uma distinção puramente ética, entre o bem e o mal, a moral administrativa é orientada por uma diferença prática entre a boa e a má administração.

[...]

Como excelentemente expôs Antonio José Brandão, “tanto infringe a moralidade administrativa o administrador que, para atuar, foi determinado por fins imorais ou desonestos (‘moral comum’), como aquele que desprezou a ordem institucional e, embora movido pelo zelo profissional, invade a esfera reservada a outras funções, ou procura obter mera vantagem para o patrimônio confiado à sua guarda”. Em ambos os casos há imoralidade administrativa, porque o ato praticado se desviou de seu reto fim institucional. Em ambos, também, a ineficácia do ato não decorrerá diretamente da violação de qualquer regra da moral comum, mas, indiretamente, da violação do princípio da boa administração, que deve ser o inafastável suporte ético da atividade administrativa pública.

Temos, primeiro, que a expressão burocracia não traz de forma inexorável uma carga negativa, já que fazemos uso do seu conteúdo atrelado à organização. A burocracia, neste sentido, é o que garante a institucionalização da Administração Pública. Deste modo, também fazendo uso de uma expressão perigosa, cremos que uma certa “blindagem” do servidor público faz com que se sinta mais infenso à parcialidade, permitindo que aja livremente na consecução do bem comum, escopo maior da Administração Pública.

Até mesmo essa “blindagem” (as aspas não são em vão) deve ser entendida com cautela. Não há uma blindagem no sentido de amesquinhar a responsabilidade do agente que se porta com dolo ou culpa na criação de um mal ao administrado. 

Muito pelo contrário, será em regresso acionado, na manifestação de um poder-dever do órgão a que pertence. Esse proceder está positivado na Lei n.º 4.619/65, que dispõe sobre a ação regressiva em face do agente público federal, ditando que o Procurador da República (hoje deve ser lido, à luz da CRFB, Advogado da União) está obrigado a ajuizar a ação (art. 1º). Também assim reza o art. 122, § 2º, da Lei 8.112/1990.

A “blindagem” a que nos referimos é um dos vetores da dita dupla garantia pelo Supremo Tribunal Federal, abordada no item 1.2 do presente trabalho no voto do Min. Ayres Britto interpretando o art. 37, § 6º, da CRFB, que assegurar ao servidor estatal somente responder administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular, não diretamente ao administrado/lesado.

2.4 - Um argumento estrutural ilegítimo: “escolha” do lesado entre receber via precatório ou atingindo o patrimônio do agente - violação da regra do art. 100 da CRFB - crise de identidade do devedor diante da pluralidade de relações jurídicas (interna e externa)

Consoante exposto no item 1.1, o Min. Salomão, em seu voto, referiu que a opção pelo ajuizamento da ação de responsabilidade civil diretamente em face do agente estatal iria afastar o lesado de submeter-se ao sistema de precatório, beneficiando-o.

Ocorre que os pagamentos devidos pela Fazenda Pública, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão, conforme art. 100 da CRFB, exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios. Aqui voltamos a reiterar, com base no sistema da regressividade, presente nas Constituições brasileiras desde 1946, que não tem mais vigência o modelo da solidariedade.

Era, de fato, o modelo da solidariedade que permitia ao credor optar por qualquer um dos devedores acionar ou receber seu crédito. Essa sistemática, sim, poderia autorizar uma escolha entre receber via precatório (acionando o Estado) ou diretamente do agente estatal (comprovando sua culpa ou dolo).

O ponto nevrálgico é que não se pode aproveitar uma situação de crise econômica, que afeta algumas unidades da federação quanto ao pagamento de suas dívidas, para quebrar uma garantia prevista expressamente na Constituição da República e decorrente do atual sistema de distribuição de responsabilidades entre o agente estatal e o Estado (sistema da regressividade).

Isto é, sendo definida a existência de duas relações, uma interna (entre agente estatal e Estado, de regresso) e outra externa (entre Estado e administrado), há uma crise de identidade, perante o terceiro, daquele que realmente deve arcar com a indenização (perante ele, o Estado) e daquele que, internamente, caso comprovado culpa ou dolo, vai responder em regresso.

O argumento da situação calamitosa de algumas unidades da federação em relação ao pagamento de seus precatórios não é legítimo. Faz do agente estatal um instrumento para a consecução de um fim econômico do lesado visando a superar um déficit institucional da Administração Pública. A instrumentalização do ser humano põe em risco até mesmo a autonomia do agente estatal, ferindo sua dignidade, pilar da Constituição (art. 1º, III).

Para controlar o caos referente à crise dos precatórios, a própria CRFB dispõe do instituto da intervenção federal, nos termos do art. 34, inc. V, “a)”, que permite uma relativização da autonomia do Estado federado em busca do restabelecimento da ordem. 

Por outro lado, o fato de ser tímida a aplicação desse instituto pelo Supremo Tribunal Federal, que reiteradamente entende que não basta o simples inadimplemento do precatório devido à insuficiência transitória de recursos financeiros, sem omissão voluntária e intencional do ente federado, indeferindo os múltiplos pedidos de intervenção, não pode autorizar uma manobra jurídica que satisfaça o interesse econômico do lesado perante a Administração Pública.

Reiteramos a necessidade de preservação dos caracteres mínimos da instituição e da burocracia, naquele sentido positivo que propomos no item acima, com o escólio de Marçal Justen Filho e Max Weber. Arruinar disposições institucionais emanadas diretamente da CRFB para atender interesse econômico acaba por empregar odiosa utilidade do sistema, que corrompe a identidade do verdadeiro responsável civil. Lembremos: o agente age em nome do Estado (teoria do órgão), sendo sua conduta imputada ao Estado. Se o Estado é o responsável pelo dano, ele, por ser o devedor da obrigação, deve arcar com a indenização conforme o sistema previsto no art. 100 da CRFB.

2.5 - Conclusões parciais

O Supremo Tribunal Federal, guardião precípuo da Constituição, vem aplicando o correto entendimento da matéria, em detrimento das posições vistas no Superior Tribunal de Justiça.

Servem de auxílio os argumentos acima listados no sentido da necessária identificação do devedor e superação do regime de solidariedade, que não mais vige no ordenamento pátrio. Portanto, entendemos que age com total razão o STF ao proclamar, nas suas últimas decisões, que não se admite o ajuizamento direto em face do agente estatal em casos de responsabilidade civil do Estado, ainda que o lesado aponte a ele conduta dolosa ou culposa. 

No ponto, José Afonso da Silva é conclusivo:

A obrigação de indenizar é da pessoa jurídica a que pertence o agente. O prejudicado há que mover a ação de indenização contra a Fazenda Pública respectiva ou contra a pessoa jurídica privada prestadora de serviço público, não contra o agente causador do dano. O princípio da impessoalidade vale aqui também.

Contudo, apesar de acertada a decisão do Supremo, ela nos parece incompleta. Isso porque inadmitir o agente estatal no polo passivo da ação não significa o mesmo que rejeitar qualquer espécie de sua participação na ação indenizatória. Entendemos pela existência de interesse do agente estatal no sentido de colaborar de alguma forma com o Estado na defesa da imputação de ato contra si, até porque, na ação de regresso, é o agente que arcará, alfim, com o valor da indenização.

Por isso, no capítulo a seguir lançamos mão de uma ideia que contemple um processo justo, equânime, participativo, que legitime a ação regressiva sem violação a contraditório e ampla defesa, isso considerando a relação interna entre Estado e agente, que pode se desenvolver de forma autônoma no processo que contempla a relação externa entre Estado e lesado. É o que chamamos da busca pelo “giusto processo”.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANCHOTENE, Danilo Gomes. Dupla garantia na responsabilidade civil do Estado: garantia em função do servidor ou do administrado?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5160, 17 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37322. Acesso em: 22 dez. 2024.

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