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Dupla garantia na responsabilidade civil do Estado: garantia em função do servidor ou do administrado?

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Agenda 17/08/2017 às 09:30

Trata da controvérsia sobre a composição do polo passivo da ação judicial de responsabilidade civil do Estado. É possível que o lesado acione diretamente o agente que imputa ser causador do dano?

INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil do Estado compreende o dever de reparação de danos causados pela ação estatal, seja comissiva ou omissiva. A Constituição define o modo pelo qual o Estado reage em relação ao administrado nas situações em que, por sua conduta estatal, cause dano. 

O modo de reação, conforme experiências históricas registradas na evolução da sociedade, já perpassou por mais de um sistema de responsabilidade, vislumbrando-se a fase da irresponsabilidade, lapidada nos estados absolutistas (“The king can do no wrong”) até o sistema da responsabilidade objetiva, vista em grande escala nos contextos atuais, em que não é necessário comprovação de dolo ou culpa na conduta estatal, bastando ao lesado a demonstração do dano e do nexo de causalidade.

Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB), o artigo 37, § 6º, dispõe que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Deveras, o dispositivo acima mencionado é a base do regime adotado atualmente no Brasil acerca da responsabilidade civil do Estado, consagrando a teoria objetiva com base na Teoria do Risco Administrativo como regra, o que desperta amplo espaço de discussão pelos operadores do Direito, desde o campo material (até que ponto há o direito de ser indenizado) ao processual (como e contra quem a ação judicial deve ser proposta).

É de acordo com o sistema processual que o administrado poderá socorrer-se ao Judiciário, sendo o processo, portanto, instrumento do direito material, como destaca Cassio Scarpinella Bueno.

Uma das discussões atinentes a esse tópico está ligada à legitimidade passiva dos pedidos de reparação civil por atos ou omissões do Estado. Certo que o Estado se manifesta por seus agentes, é necessário verificar se o administrado, uma vez se sentindo atingido, poderá agir em face do Estado, enquanto pessoa jurídica de direito público ou privado prestadora de serviços públicos, ou atuar diretamente em face do agente.

Essa distinção caminha por institutos típicos do Direito Administrativo, devendo ser aquilatado a que título os agentes agem em relação ao Estado e perante terceiros. Sinaliza-se, desde logo, como exemplo, o princípio da impessoalidade, consagrado no artigo 37, caput, da CRFB, com a leitura que recebeu do constitucionalista José Afonso da Silva, com base em Agustín Gordillo, trabalhado por setor importante da doutrina administrativa capitaneado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Adota-se um sentido além do que acarreta no tratamento impessoal dos administrados, abordando, por outro lado, o viés da atuação da própria Administração, pontuando que a ação dos agentes estatais deve ser imputável ao órgão em nome de quem atuam e não ao próprio agente, consagrando, com isso, a Teoria da Imputação ou Teoria do Órgão.

A problemática ganha espaço quando se abre a possibilidade de o lesado agir contra Estado, contra o agente ou contra ambos, importando aferir se esses mecanismos de ação estão à disposição, ou seja, se há uma liberdade de escolha pelo administrado em acionar diretamente o agente ou a Administração Pública. 

Isso porque a leitura do disposto no citado artigo 37, § 6º, da CRFB, permitiu mais de uma conclusão, podendo sintetizá-las nas seguintes alternativas: (a) o lesado escolhe entre ajuizar em face do Estado ou do agente; (b) o lesado pode ajuizar somente em face do agente, permitindo-se ao Estado porventura postular a intervenção do agente na relação jurídica processual; ou (c) o lesado pode demandar diretamente o agente, sem a participação do Estado no processo.

Afinal, há somente uma leitura do dispositivo válida que exclua as outras? A composição do polo passivo da ação de responsabilização civil do Estado está a critério do lesado? Pode se inferir que o agente tem uma espécie de blindagem de ser acionado somente em regresso pelo Estado?

A relevância dos problemas acima formulados se revela no compromisso com a própria segurança jurídica. Quanto mais consagrada e linear for a forma de fazer-se justiça,  entendida esta como dar a resposta adequada ao problema submetido a exame, mais crédito o sistema trará aos jurisdicionados e administrados. 

Por outro lado, permitir que um tema de tamanha importância guarde indefinições em pontos tão básicos como a composição do polo passivo da relação jurídica acarreta sérios prejuízos tanto na atuação do Poder Judiciário, que se vê confuso no modo como levar o trâmite processual, como do próprio agente estatal, que pode sentir-se temido no seu mister a possíveis exposições ao figurar diretamente no polo passivo de uma demanda indenizatória em decorrência do exercício da função.

A resposta aos problemas formulados não pode ser indiferente a institutos consagrados do Direito Administrativo, tal como a Teoria da Imputação ou Teoria do Órgão. Também assim, soa necessário garantir ao agente uma liberdade no seu agir, evitando os temores que o exercício da sua função possa causar aos administrados. 

Essa liberdade para agir favorece a consecução dos interesses públicos em detrimento de algum interesse privado promíscuo que possa ser resultado de uma conduta assediadora erigida por ameaças de responsabilização direta do agente. Supõe-se, diante disso, que a leitura do disposto no art. 37, § 6º, da CRFB, contempla uma proteção ao agente de ser acionado em regresso pelo Estado, somente nesta via.

Para a concretização do trabalho ensejado, tendo em vista os objetivos descritos acima, visa-se a buscar amparo bibliográfico em selecionado setor especializado da doutrina, trazendo o que cada um defende e as principais controvérsias da matéria. Para tanto, o método de abordagem será o dedutivo, ou seja, o exame das evidências, análises e a obtenção da síntese.

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A hipótese é confirmativa, enquanto o processo é investigativo. 

Do ponto de vista da natureza, a metodologia utilizada é pesquisa aplicada, pois objetiva gerar conhecimentos para aplicação prática dirigida à solução de problemas específicos. Sobre a forma de abordagem, é uma pesquisa de cunho qualitativo, uma vez que aborda a doutrina e a jurisprudência. A pesquisa qualitativa consequentemente é descritiva, já que também é foco a descrição do modo como a norma se aplica aos casos concretos que envolvem o tema abordado.


I - SENSO COMUM: O TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL DO TEMA

O exame da jurisprudência brasileira atual revela a existência de posicionamentos diametralmente opostos entre as Cortes Superiores. 

De um lado, o Supremo Tribunal Federal, ultimamente em decisões monocráticas, com base em um leading case da Primeira Turma, vem entendendo ser ilegítima a inclusão do agente estatal no polo passivo da ação indenizatória, aduzindo que a Constituição revela uma garantia também em seu nome no sentido de ser acionado apenas em regresso. 

Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça recentemente vem se posicionando no sentido de que o lesado pode livremente escolher em face de quem ajuizará a ação indenizatória, podendo fazê-lo diretamente em face do agente estatal, recebendo desta maneira benefícios especialmente no que diz respeito ao pagamento de eventual indenização fora do sistema de precatórios, que hoje funcionam em alguns Estados da federação como mera declaração vazia de direitos.

Inicie-se, então, pela descrição dos argumentos que, em suma, as Cortes fazem uso para assentar seus entendimentos.

1.1 - Superior Tribunal de Justiça: o Recurso Especial 1.325.862 como paradigma do entendimento de liberdade de escolha pelo administrado quanto ao polo passivo

O Recurso Especial (REsp) número 1.325.862/PR, julgado em 05/09/2013 pela Quarta Turma (DJe 10/12/2013), teve por Relator o Ministro Luis Felipe Salomão. Seu julgamento reacendeu as discussões em relação ao tema proposto, quando entendeu que o administrado pode livremente ajuizar a ação reparatória em face do agente estatal. Constou da ementa do julgado, no que interessa ao presente trabalho:

RESPONSABILIDADE CIVIL. [...] AÇÃO INDENIZATÓRIA AJUIZADA EM FACE DA SERVENTUÁRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA. [...] 

1. O art. 37, § 6º, da CF/1988 prevê uma garantia para o administrado de buscar a recomposição dos danos sofridos diretamente da pessoa jurídica que, em princípio, é mais solvente que o servidor, independentemente de demonstração de culpa do agente público. Vale dizer, a Constituição, nesse particular, simplesmente impõe ônus maior ao Estado decorrente do risco administrativo; não prevê, porém, uma demanda de curso forçado em face da Administração Pública quando o particular livremente dispõe do bônus contraposto. Tampouco confere ao agente público imunidade de não ser demandado diretamente por seus atos, o qual, aliás, se ficar comprovado dolo ou culpa, responderá de outra forma, em regresso, perante a Administração. 

2. Assim, há de se franquear ao particular a possibilidade de ajuizar a ação diretamente contra o servidor, suposto causador do dano, contra o Estado ou contra ambos, se assim desejar. A avaliação quanto ao ajuizamento da ação contra o servidor público ou contra o Estado deve ser decisão do suposto lesado. Se, por um lado, o particular abre mão do sistema de responsabilidade objetiva do Estado, por outro também não se sujeita ao regime de precatórios. Doutrina e precedentes do STF e do STJ. [...]

(REsp 1325862/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/09/2013, DJe 10/12/2013)

O pano de fundo do caso julgado é desinfluente para a discussão da tese aqui proposta. Apenas contextualizando a situação submetida ao crivo do STJ, um Procurador do Estado ajuizou ação de indenização por danos morais em face de uma Escrivã de Cartório Judicial. No primeiro grau de jurisdição, o pedido indenizatório foi julgado improcedente, cuja sentença foi mantida em grau de apelação pelo correspondente Tribunal de Justiça.

O Relator Ministro Salomão, ao enfrentar a questão da legitimidade passiva, reconheceu que a questão controvertida divide a jurisprudência. Ressaltou que a jurisprudência do Supremo “sempre foi linear em admitir a ação direta do lesado em face do servidor público”. Apontou conhecer o precedente do STF que afasta a legitimidade passiva do agente público (Recurso Extraordinário número 327.904), mas o considerou isolado e com situação fática bastante peculiar (ato de agente político de cunho essencialmente político).

Prosseguindo o trato da problemática, o Ministro Relator fez a leitura do art. 37, § 6º, da CRFB, no sentido de que prevê “uma garantia para o administrado de buscar a recomposição dos danos sofridos diretamente da pessoa jurídica que, em princípio, é mais solvente que o servidor, independentemente de demonstração de culpa do agente público”. Disse, ademais, que o dispositivo não prevê uma demanda de curso forçado em face da Administração Pública, nem mesmo confere ao agente público imunidade de não ser demandado diretamente por seus atos, tanto que, caso fique comprovado dolo ou culpa, deverá responder em regresso perante a Administração.

Para o Ministro, quando a Constituição pretendeu “blindar” os agentes públicos o fez de modo explícito, cujo conteúdo excepcional deve ser interpretado restritivamente, como na imunidade parlamentar por opiniões, palavras e votos (art. 53). Indicou o disposto no art. 9º da Lei de Abuso de Autoridade (Lei n.º 4.898/1965), que prevê a possibilidade de ação direta do particular em face do servidor.

Na sequência, seu voto cita doutrina dos eminentes autores Celso Antônio Bandeira de Mello e de Rui Stoco, além de outros precedentes do STJ, concluindo:

    Assim, a avaliação quanto ao ajuizamento da ação contra o servidor público ou contra o Estado deve ser decisão do suposto lesado. Se, por um lado, o particular abre mão do sistema de responsabilidade objetiva do Estado, por outro também não se sujeita ao regime de precatórios, os quais, como é de cursivo conhecimento, não são rigorosamente adimplidos em algumas unidades da Federação.

    Destarte, com a licença do entendimento diverso, não tenho dúvidas em afirmar a legitimidade passiva do servidor público para responder diretamente pelo dano gerado por atos praticados no exercício de sua função pública, sendo que, evidentemente, o dolo ou culpa, a ilicitude ou a própria existência de dano indenizável são questões meritórias.

Em julgamentos anteriores também foi esse o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, como se vê do REsp 731.746/SE, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/08/2008, DJe 04/05/2009; e REsp 759.272/GO, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/08/2005, DJ 19/06/2006, p. 138.

1.2 - Supremo Tribunal Federal: o Recurso Extraordinário 327.904 como “leading case” a favor da dupla garantia

O Recurso Extraordinário (RE) 327.904, do qual foi Relator o Ministro Carlos Britto, julgado pela Primeira Turma em 15/08/2006 (DJ 08/09/2006), vem sendo utilizado pelo Pretório Excelso como precedente que representa o entendimento do Supremo na questão da legitimidade passiva da ação indenizatória que cuida da responsabilidade civil do Estado.

Contextualizando a situação fática que ensejou a atuação do STF, apenas para fins de conhecimento, porquanto somente a tese discutida interessa ao presente trabalho, um ex-Prefeito editou Decreto de Intervenção em face de hospital e maternidade de propriedade de uma senhora, o que resultou prejuízos financeiros à entidade beneficente e justificou a propositura da ação indenizatória.

No primeiro grau de jurisdição, o processo foi extinto sem resolução do mérito ante o reconhecimento da ilegitimidade passiva do ex-Prefeito, o que foi mantido em grau de apelação. O Recurso Extraordinário foi interposto com a alegação de desrespeito ao art. 37, § 6º, da CRFB.

A argumentação do Ministro Ayres Britto é enfática, sendo oportuno transcrevê-la:

    9. À luz do dispositivo transcrito [art. 37, § 6º, da CRFB], a conclusão que a chego é única: somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns.

    10. Quanto à questão da ação regressiva, uma coisa é assegurar ao ente público (ou quem lhe faça as vezes) o direito de se ressarcir perante o servidor praticante de ato lesivo a outrem, nos casos de dolo ou de culpa; coisa bem diferente é querer imputar à pessoa física do próprio agente estatal, de forma direta e imediata, a responsabilidade civil pelo suposto dano a terceiros.

    11. Com efeito, se o eventual prejuízo ocorreu por força de um atuar tipicamente administrativo, como no caso presente, não vejo como extrair do § 6º do art. 37 da Lei das Leis a responsabilidade “per saltum” da pessoa natural do agente. Tal responsabilidade, se cabível, dar-se-á apenas em caráter de ressarcimento ao Erário (ação regressiva, portanto), depois de provada a culpa ou o dolo do servidor público, ou de quem lhe faça as vezes. Vale dizer: ação regressiva é ação de “volta” ou de “retorno” contra aquele agente que praticou ato juridicamente imputável ao Estado, mas causador de dano a terceiro. Logo, trata-se de ação de ressarcimento, a pressupor, lógico, a recuperação de um desembolso. Donde a clara ilação de que não pode fazer uso de uma ação de regresso aquele que não fez a “viagem financeira de ida”; ou seja, em prol de quem não pagou a ninguém, mas, ao contrário, quer receber de alguém e pela vez primeira.

    12. Vê-se, então, que o § 6º do art. 37 da Constituição Federal consagra uma dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente, perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular.

É possível dizer que este entendimento é o proclamado pelo Supremo considerando algumas decisões anteriores ao RE 327.904, como, por exemplo: RE 228977, Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Segunda Turma, julgado em 05/03/2002, DJ 12-04-2002; AI 167659 AgR, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 18/06/1996, DJ 14-11-1996; e AI 550296, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, julgado em 09/01/2006, publicado em DJ 09/02/2006.

O fato é que o julgamento supra transcrito se tornou referência no trato da matéria pelo STF, sendo mencionado como razões de decidir em inúmeros casos julgados sequentemente. Neste sentido: AI 552366 AgR, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 06/10/2009, DJe-204 PUBLIC 29-10-2009; RE 549126, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, julgado em 09/08/2011, DJe-173 PUBLIC 09/09/2011; RE 551156 AgR, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 10/03/2009, DJe-064 PUBLIC 03-04-2009; AI 406.615, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, decisão monocrática de 20/11/2009, publicada no DJE n.º 233, divulgado em 11/12/2009; RE 470996 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 18/08/2009, DJe-171 PUBLIC 11-09-2009; RE 235025, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, julgado em 26/10/2010, publicado em DJe-222 PUBLIC 19/11/2010; RE 601104, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 26/08/2009, publicado em DJe-173 PUBLIC 15/09/2009; e RE 344133, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 09/09/2008, DJe-216 PUBLIC 14-11-2008.

1.3 - Panorama atual: insegurança jurídica, o mito da “última palavra” e o dever de diálogo efetivamente crítico entre os tribunais com vistas à estabilização da matéria

Os elementos jurisprudenciais apresentados indicam a existência de forte controvérsia entre o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. Considerando que o espectro de atuação de ambas as Cortes é distinto, nos termos dos artigos 102 e 105 da CRFB, é possível (e comum) que situações semelhantes acabem tendo desfechos distintos, notadamente quando a decisão do STJ não é enfrentada pelo STF. Este cenário compromete a segurança jurídica.

De todo modo, não há como negar que a discussão acerca do tema tem por fundamento o disposto no art. 37, § 6º, da CRFB, que, como dito, é o dispositivo norteador da responsabilidade civil do Estado no sistema brasileiro. Como a guarda da Constituição compete precipuamente ao Supremo Tribunal Federal, é natural dar a este Colegiado maior ênfase no modo como a jurisprudência brasileira trata da matéria. Reflexamente, seria natural também que os demais tribunais, com vistas à estabilização da matéria, promovessem um tratamento adequado da celeuma, seguindo a posição do STF ou criticamente a rebatendo, o que não é visto na prática atual.

Não se está a dizer que o Supremo Tribunal Federal dê a “última palavra”. Aqui vêm de molde os argumentos de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto, arrimados na ideia de pluralização do universo de intérpretes, que tem em Peter Häberle um importante expoente da tese da “sociedade aberta dos intérpretes da constituição”:

    A literatura jurídica mais tradicional concebe a interpretação constitucional como tarefa eminentemente judicial, com destaque para o papel das cortes constitucionais e das supremas cortes. Não discordamos do papel proeminente do Poder Judiciário nesse campo, nem tampouco da posição privilegiada ocupada pelos tribunais constitucionais na matéria. Assiste-se hoje, no mundo inteiro e também no Brasil, um fenômeno de judicialização da política, que tem na interpretação constitucional realizada pelas cortes o seu eixo principal. Aliás, o texto constitucional brasileiro é claro, ao estabelecer que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição” (art. 103). Não é por outra razão que damos grande destaque neste livro à interpretação constitucional que provém do STF.

    Sem embargo, é um erro grave pretender que o Poder Judiciário ou o Supremo Tribunal Federal seja o intérprete exclusivo da Constituição. Na verdade, a atividade interpretativa se processa, em grande parte, por meio de um diálogo permanente entre corte constitucional, outros órgãos do Judiciário, Parlamento, governo, comunidade de cidadãos, entidades da sociedade civil e academia. Há também interpretação constitucional fora dos processos judiciais, como, por exemplo, na atividade desempenhada na esfera pública informal. A interpretação constitucional é, na verdade, obra do que Peter Häberle denominou “sociedade aberta dos intérpretes da constituição.

    [...] não é verdade que, na prática, o Supremo Tribunal Federal dê sempre a última palavra sobre a interpretação constitucional, pelo simples fato de que não há última palavra em muitos casos. As decisões do STF podem, por exemplo, provocar reações contrárias na sociedade e nos outros poderes, levando a própria Corte a rever a sua posição inicial sobre um determinado assunto. Há diversos mecanismos de reação contra decisões dos Tribunais Constitucionais, que vão da aprovação de emenda constitucional em sentido contrário, à mobilização em favor da nomeação de novos ministros com visão diferente sobre o tema. Há formas de reação mais ou menos legítimas.

O que se busca é demonstrar que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, quando menciona ser baseado em precedentes do STF (para dar-lhe maior legitimidade), acaba incorrendo em equívoco, uma vez que o Supremo está consolidado no sentido contrário ao exposto pelo STJ, consoante item 1.2 supra.

Além disso, o entendimento do STF nos parece meritoriamente acertado e de acordo com a norma do disposto no art. 37, § 6º, da CRFB, como será demonstrado no capítulo seguinte, em que enfrentamos os argumentos do STJ com o intuito de firmar a tese da dupla garantia.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANCHOTENE, Danilo Gomes. Dupla garantia na responsabilidade civil do Estado: garantia em função do servidor ou do administrado?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5160, 17 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37322. Acesso em: 16 nov. 2024.

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