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Normas de justiça em Hans Kelsen

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Agenda 07/04/2015 às 13:02

3 Normas de justiça

Vista a concepção kelseniana dos juízos de valor, particularmente do valor justiça, abre-se o caminho para abordar as mais importantes das muitas normas de justiça que Kelsen aponta como possivelmente válidas, ao mesmo tempo em que indica por que, a seu ver, nenhuma delas possui o caráter absoluto que se lhes atribui.

Na classificação de Kelsen (2011), há dois grandes tipos de normas de justiça: as do tipo metafísico, e as do tipo racional.

As normas de justiça do tipo metafísico são aquelas que não podem ser compreendidas pelo ser humano por meio da razão ou da experiência, sendo necessário pressupor a existência de uma esfera transcendente da qual as normas desse tipo provenham.

As normas do tipo racional, por outro lado, prescindem de uma instância transcendente, podendo ser pensadas empiricamente e entendidas pela razão, à qual as normas de justiça seriam imanentes.

Passa-se, pois, a considerar os dois tipos separadamente.

3.1 Normas do tipo metafísico

3.1.1 A justiça platônica

Deve-se a Platão o “dualismo típico de toda a metafísica: o dualismo que distingue entre uma esfera empírica e uma esfera transcendente” (KELSEN, 2011, p. 68), que em última instância faz germinar a teoria idealista do direito, a qual confronta um direito ideal, oriundo de uma esfera transcendente, com o direito real, posto pelo ser humano.

Na seara da ética, o dualismo platônico reside fundamentalmente na oposição entre bem e mal. Nota-se que tal oposição metafísica é concebida de maneira semelhante à oposição que há, na Axiologia, entre um valor e um desvalor. “Se o bem deve ser objeto da cognição, então a cognição deve também reconhecer o mal; e isso é verdade na filosofia platônica”, observa Kelsen (2001, p. 82).

Na concepção dualista que domina a maior parte do pensamento platônico, apenas o dever-ser possui existência real, de forma que apenas o bem existe, enquanto o mal não é um ser no mundo real, mas meramente a ausência de bem, o seu desvalor, sem existência em si mesmo. O mundo sensorial e empírico, em oposição ao mundo real das Ideias e do dever-ser, não é o mundo verdadeiro, mas apenas aparência de existência.

Nesse mundo sensorial, tudo varia conforme as circunstâncias e os pontos de vista, mas, para Platão, todas as percepções do mundo sensível às quais as pessoas se apegam e denominam “verdade” não passam de opinião (dóxa), apenas uma fluida ilusão da verdade, distante de ser o verdadeiro conhecimento (epistéme). “Entre os dois mundos em que se divide todo o universo, entre os domínios da dóxa e da epistéme, Platão pressupõe uma oposição implacável”, relata Kelsen (2001, p. 84).

As ideias de Platão representam “valores que devem, na verdade, ser realizados no mundo dos sentidos, mas que jamais podem aí ser plenamente realizados” (KELSEN, 2011, p. 62). Dispondo-as em um paralelo com a teoria kelseniana, pode-se dizer que as ideias retiram a sua validade de uma “norma fundamental” transcendente, que é a ideia do Bem absoluto, a qual “desempenha na filosofia de Platão o mesmo papel que a ideia de Deus na teologia de qualquer religião” (ibidem).

Kelsen indica que a ideia do bem contém em si a ideia da Justiça – e que Platão buscou, em quase todos os seus diálogos, responder à questão “o que é o Bem/a Justiça?”, sem conseguir chegar a um resultado definitivo pela via racional:

 

Platão remete repetidas vezes a um específico método de pensamento abstrato liberto de todas as representações sensíveis, a chamada dialética, que – segundo ele afirma – dá àquele que o domina a capacidade de apreender a Ideia. Todavia, ele próprio não emprega este método nos seus diálogos nem tampouco nos comunica os resultados desta dialética. (KELSEN, 2011, p. 63)

 

No diálogo Górgias, escrito provavelmente após a viagem de Platão à Sicília – fato determinante em sua vida e obra, pois o colocou em contato com o pitagorismo, “um guia ao qual permaneceu fiel durante todo o resto da vida” (KELSEN, 2001, p. 97) –, encontra-se uma doutrina de justiça que consiste na retribuição.

 

As principais teses morais dessa obra [Górgias] são que é melhor sofrer a injustiça que cometê-la, e que é melhor submeter-se à punição jurídica que escapar dela. A prova final dessas teses não repousa na demonstração um tanto duvidosa de Sócrates, a principal figura também nesse diálogo; depende antes do esplêndido mito que Platão relata na conclusão, no qual descreve como os bons serão recompensados e os maus são punidos no outro mundo.  (KELSEN, 2001, p. 98)

 

Kelsen (ibidem) observa que Platão, até seu último diálogo (As Leis), permaneceu fiel à concepção que vincula a retribuição à justiça. No final da obra central de Platão, A República, um ressuscitado narra o que sua alma viu no outro mundo, repetindo o leitmotiv de Górgias da justiça divina como retribuição.

Dessa forma, constata-se uma relação entre a doutrina da justiça e a doutrina da alma, e, portanto, a doutrina das Ideias. A justiça platônica depende do pressuposto da existência da alma antes do nascimento e depois da morte, conforme Kelsen (2001, p. 99):

A crença na concretização da justiça no outro mundo compele à concepção de uma existência futura da alma; a necessidade de uma cognição da natureza da justiça conduz à concepção de uma preexistência de alma, à teoria do conhecimento como reminiscência do que foi visto pela alma no outro mundo, antes de seu nascimento neste mundo.

 

Na doutrina das Ideias, o bem é substância da justiça, e com ela identificável. No entanto, critica Kelsen (2001, p. 103 e 2011, p. 63), Platão jamais ofereceu uma resposta definitiva ao que seria o bem em si, tratando, em A República, apenas do fruto do bem, sua sombra no mundo sensível, não alcançando a essência própria do bem, que se encontra além de todo conhecimento.

A conclusão de Kelsen (2001, p. 105) dirige-se a considerar a justiça platônica como uma experiência religiosa: “A conclusão final da sabedoria platônica, a resposta oferecida à questão formulada vezes e vezes ao longo dos diálogos, ou seja, a questão da natureza da justiça, é esta: trata-se de um mistério divino.”

Baseado nisso, Kelsen (2001, p. 106) afirma o seu posicionamento sobre a relatividade da justiça nas linhas:

 

Os sofistas haviam negado a existência de uma justiça absoluta; Sócrates afirmara-a apaixonada e dogmaticamente, mas foi finalmente obrigado a confessar que não sabia o que ela realmente era. Platão declara que se pode obter esse conhecimento por meio de sua filosofia; mas diz também que o resultado será inexprimível, que a questão permanecerá por responder, na verdade, que a questão não é sequer admissível. Assim, o caminho que devia conduzir do relativismo racionalista ao absoluto metafísico termina no misticismo religioso.

 

3.1.2 A justiça divina

Anteriormente aos ensinamentos de Jesus Cristo, a justiça divina das escrituras sagradas significava retribuição. Kelsen (2001) explana que muitos povos, inclusive o hebreu, interpretavam então a natureza segundo o princípio da retribuição, de forma que a morte, a doença, as dores do parto, a necessidade do labor, a má colheita, catástrofes, entre outros fenômenos naturais prejudiciais ao ser humano eram vistos como retribuição divina pelos pecados cometidos, enquanto os eventos desejáveis eram vistos como recompensas.

No Pentateuco encontram-se descrições nas quais o deus israelita prescreve punições para malfeitores (Genesis 19, 23 e seguintes; Levítico 10, 1 e seguintes; Êxodo 21,28; etc.) e recompensas para os virtuosos (Genesis 22,16 e seguintes; Números 25, 6 e seguintes; Deuteronômio 11,13 e seguintes; etc.)

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No entender de Kelsen, o princípio de retribuição que constitui a justiça do deus israelita – aplicada, no entanto, por homens – é também lei de talião, pois a justiça da retribuição é primeiramente punição, e apenas ultimamente recompensa:

 

Como em quase todas as religiões, a punição e a recompensa não têm a mesma importância. A punição está em primeiro plano, a recompensa em último, nesse sistema de justiça, especialmente se tiver de se aplicada, não diretamente por Deus, de maneira transcendental, mas por homens, na forma de sanções socialmente organizadas. Que a justiça como retribuição signifique em primeiro lugar punição é a consequência do fato de ser a ameaça de punição por conduta indesejável – não a promessa de recompensa pela conduta contrária – a técnica específica do Direito positivo; e a ideia de justiça sempre reflete mais ou menos a realidade social tal como manifestada no Direito positivo. Portanto, o princípio da retribuição é apresentado também como jus talionis. (KELSEN, 2001, p. 43)

 

Kelsen conclui, pois, que o Antigo Testamento é dominado pela justiça do “igual por igual”.

Diferentemente, Jesus Cristo estabelece um princípio de retribuição que repudia o talião, na forma em que prescreve não retribuir o mal com o mal, mas com o bem. No ensinamento do Cristo, a nova justiça, que consiste no amor de Deus, significa amar os inimigos em lugar de devolver-lhes as injúrias por eles cometidas.

Ademais, Jesus nega ao ser humano o direito de julgar o semelhante. Escreve Kelsen (2001, p. 53) que “o conflito mais evidente entre o ensinamento de Jesus e a Lei judaica está no mandamento de não mais julgar outras pessoas (Mateus 7,1 ss.; Lucas 6,36 s.)”, de forma que a punição de um malfeitor aplicada por outra pessoa – um juiz – sob as normas socialmente vigentes não é condizente com a norma de justiça proferida por Jesus.

A nova justiça de Jesus é expressa, principalmente, no discurso do Sermão da Montanha (Mateus 4,23 e seguintes). Para Kelsen, a revolucionária doutrina do Cristo recusa-se a reconhecer o direito positivo, uma vez que seu princípio de justiça consiste no amor de Deus, não na retribuição, enquanto que “é a essência do Direito positivo resistir ao prejuízo, reagir ao prejuízo do delito com o prejuízo da sanção (...). É a técnica específica do Direito infligir ao malfeitor o mal da punição” (KELSEN, 2001, p. 45).

“Se não há mais retribuição”, escreve Kelsen (2001, p. 54), “então o Direito positivo não é mais aplicável.” E considera (2001, p. 46):

 

Do ponto de vista da razão humana, a doutrina de Jesus não é uma solução do problema da justiça na condição de problema de uma técnica social para a regulamentação das relações humanas; é antes a dissolução desse problema. Pois implica a solicitação de abandonar o desejo de justiça tal como concebido pelo homem.

 

É pertinente observar que, na interpretação de Kelsen, o “reino de Deus” proclamado por Jesus Cristo nos Evangelhos não se trata originalmente de um reino transcendental e espiritualizado, mas de um ideal de realização da justiça no mundo terreno. A leitura kelseniana da passagem em que Jesus diz a Pilatos: “Meu reino não é deste mundo” (João 18,36) entende que o reino se origina no céu, mas é estabelecido na terra, não com isto significando que o reino está além deste mundo.

 

Não pode haver dúvida de que o Reino de Deus, tal como escrito nos Evangelhos Sinópticos, era imaginado, em conformidade com a tradição judaica, como uma comunidade terrena de homens vivendo fisicamente. (...) A espiritualização do Reino de Deus é o resultado de um processo intelectual que se realizou, sob a influência de necessidades políticas e da especulação filosófica, apenas depois da morte de Jesus. A restauração messiânica do reino davídico era incompatível com o Império Romano. Portanto, é perfeitamente compreensível a tendência a reinterpretar essa ideologia, de maneira a torná-la politicamente aceitável às autoridades estabelecidas. (KELSEN, 2001, p. 66-67)

 

Se por um lado Kelsen considera revolucionária a visão de Jesus, segundo a qual haverá a ressurreição do corpo e o reino de Deus será a justiça realizada na terra, por outro considera conservador o ideal do apóstolo Paulo de realização da justiça em um mundo transcendental, anotando que esse ideal “alimenta o homem, que sofre a injustiça neste mundo, com a esperança de que os que lhe infligem o mal serão punidos após a morte. Portanto, não é necessário fazer nada contra eles neste mundo” (KELSEN, 2001, p. 77).

Observe-se que Kelsen não vê como origem da espiritualização do reino de Deus apenas a conveniência política em relação ao establishment do Império Romano, mas também a “tendência geral dos sentimentos religiosos de Paulo, sua inclinação para o irracionalismo e o misticismo” (KELSEN, 2001, p. 78).

Tal inclinação é o que leva Kelsen a afirmar que a doutrina de Paulo, “que é a base da teologia cristã da justiça” (KELSEN, 2001, p. 80), e segundo a qual a justiça divina é um segredo da fé (KELSEN, 2011, p. 65), não oferece resposta à questão “o que é justiça?”

Assim como a justiça platônica postula que os homens devem ser tratados conforme a ideia transcendente do bem, diz Kelsen (2011), a concepção da justiça divina afirma que os homens devem proceder conforme a transcendente vontade de Deus, igualmente absoluta e tão inacessível ao conhecimento humano quanto a ideia platônica do bem.

Portanto, se Deus é absoluto, eterno e imutável, sua justiça também há de ser. No entanto, “atribuir justiça à divindade para tornar a religião aplicável às relações humanas implica certa tendência para racionalizar algo que por sua própria natureza é irracional – o ser transcendental” (KELSEN, 2001, p. 27). Aquilo que é incompatível com o pensamento racional não é necessariamente incompatível com a fé religiosa, uma vez que contradições como a teodicéia seriam de fato contradições apenas para a limitada razão humana, mas não para a absoluta razão divina, de acordo com a teologia de Paulo pregada na Primeira Epístola aos Coríntios.

Para Kelsen, no entanto, tal forma de justiça leva em última instância a uma tautologia em razão de partir da – e conduzir à – noção de insondabilidade e incompreensibilidade da justiça divina:

 

Se a ideia de justiça divina deve ser aplicada à vida social dos homens (...), a teologia deve tentar partir de seu ponto inicial, a incompreensibilidade da justiça absoluta, para uma posição menos rígida – a suposição da vontade de Deus, embora incompreensível pela sua própria natureza, pode, não obstante, ser compreendida pelo homem de uma ou de outra maneira. A incoerência dessa posição torna inevitável que este torneio de pensamento deva, por fim, retornar ao ponto de partida. Como Deus existe, a justiça absoluta existe, e, assim, como se deve acreditar na existência de Deus, embora não seja capaz de compreender sua natureza, o homem deve acreditar na existência da justiça absoluta, embora não possa saber o que ela realmente significa. A justiça é um mistério – um dos muitos mistérios – da fé. (KELSEN, 2001, p. 28)

 

3.2 Normas do tipo racional

3.2.1 A justiça aristotélica

A doutrina da justiça de Aristóteles encontra seu centro no Livro V da obra Ética a Nicômaco. Naquele texto, “Aristóteles primeiro distingue a justiça em um sentido geral e a justiça em um sentido particular. Existem, sustenta ele, dois conceitos de justiça: a legitimidade e a igualdade.” (KELSEN, 2001, p. 124)

A legitimidade é, pois, um conceito mais amplo, e a igualdade um mais restrito, contido no conceito de legitimidade.

Kelsen (2001) entende que dentro da legitimidade aristotélica – a qual equivale ao total da virtude – está compreendida a conformidade com o direito positivo. Em outras palavras, a lei é idêntica à justiça. Embora Aristóteles utilize conceitos diferentes para tratar de justiça (díkaion) e direito (nóminon), afirma que todos os pronunciamentos do direito visam à felicidade geral, ou da classe dominante, carregando em si a legitimidade e com ela se equiparando, pois “justo” refere-se a qualquer coisa que produz e preserva a felicidade da comunidade política. Tal concepção “equivale a uma glorificação incondicional do Direito positivo” (KELSEN, 2001, p. 125).

No que concerne à justiça como igualdade, ela é subdividida por Aristóteles em dois tipos: a justiça distributiva, que consiste na repartição dos bens da comunidade entre seus membros, e a justiça corretiva, calcada na solução dos litígios e na punição dos malfeitores.

Aristóteles expressa a justiça distributiva em uma fórmula matemática, na qual expressa que, se ao indivíduo A corresponde o direito a, e ao indivíduo B corresponde o direito b, a justiça ocorre quando a razão entre o merecimento de A e de B for igual à razão entre o direito de a e de b.

De acordo com Kelsen (2001, p. 127), “a definição aristotélica de justiça distributiva nada mais é que uma formulação matemática do conhecido princípio suum cuique, a cada um o seu, ou a cada um o que lhe é devido”. No entanto, Hans Kelsen (2011, p. 18) acusa a fórmula suum cuique – e, por extensão, a fórmula da justiça distributiva – de resultar em tautologia, por pressupor a validade de uma ordem normativa que determine o que é efetivamente devido a cada um, servindo apenas para legitimar o direito positivo em quais sejam os direitos que ele prescreva como devidos, mas não para determinar, ela própria, o que é devido a todos.

 

A fórmula matemática da justiça distributiva de Aristóteles será aplicável apenas caso se pressuponha que o Direito positivo decide a questão de quais direitos devem ser conferidos aos cidadãos e quais diferenças entre eles devem ser relevantes. Como postulado, significa apenas que o direito positivo será aplicado em conformidade com o seu próprio significado. (KELSEN, 2001, p. 127)

 

Kelsen observa, ainda:

 

Contudo, não existem na natureza dois indivíduos que sejam realmente iguais, já que sempre há uma diferença quanto a sexo, raça, idade, saúde, riqueza e assim por diante. Não existe igualdade na natureza. Tampouco há igualdade na sociedade. A igualdade como categoria social, a afirmação de que dois indivíduos são socialmente iguais, não significa que não existem diferenças entre esses indivíduos, mas que certas diferenças que realmente existem, como, por exemplo, diferenças referentes a idade, raça, riqueza, são consideradas irrelevantes. A questão decisiva quanto à igualdade social é: que diferenças são irrelevantes? Para essa questão, a fórmula matemática da justiça distributiva de Aristóteles não tem nenhuma resposta. Tampouco para a outra questão essencial quanto aos direitos que o legislador deve conferir a cada indivíduo para ser justo. (KELSEN, 2001, p. 126)

 

Sobre a justiça na modalidade corretiva, “não é a igualdade de duas razões, é a igualdade de duas coisas, especialmente de duas perdas ou dois ganhos” (KELSEN, 2001, p. 128), de maneira que, por exemplo, a um serviço deve corresponder um contra-serviço equivalente em retribuição, bem como a um crime deverá haver uma pena equivalente. Afirma Aristóteles que, para realizar essa justiça, o juiz deve igualar a perda ou o ganho das duas partes. Em outras palavras – quais sejam, as de Kelsen (2001, p. 129) – deve o juiz “encontrar a metade da mesma maneira que um geômetra divide uma dada linha em duas partes iguais”.        

Mais uma vez, Hans Kelsen (2001, p. 129-130) interpõe a mesma crítica que interpusera ao princípio suum cuique:

 

A metáfora [do geômetra] não é uma solução do problema do serviço de retribuição justo e da punição justa. É apenas outra maneira de apresentar o problema. (...)

A questão decisiva, o que é o mal e o que é o bem, não é respondida por essa fórmula; tampouco a questão quanto ao que é “semelhante” ou igual. (...) As diferentes ordens jurídicas diferem muito na determinação do delito assim como das sanções, mas todas correspondem ao princípio da retribuição, que está na base da técnica social que chamamos Direito.

 

Essa concepção de conduta reta como meio-termo é denominada teoria do mesótes, segundo a qual a virtude é um meio-termo entre dois vícios. No âmbito da justiça, a conduta justa seria um meio-termo entre provocar a injustiça e sofrer a injustiça, na concepção aristotélica. Para Kelsen (2001, p. 131), a aplicação da fórmula do mesótes ao problema da justiça carece de coerência:

 

Cometer injustiça e sofrer injustiça não são dois graus diferentes de um mesmo e único substrato, não são nem mesmo dois fatos diferentes entre os quais se possa situar um terceiro fato. Um homem cometer injustiça implica o outro homem sofrer injustiça. Um não pode ser separado do outro. Dizer que a justiça é um meio termo entre cometer e sofrer injustiça é uma expressão figurada do julgamento de que a justiça não é injustiça, nem a injustiça que é cometida nem a injustiça que é sofrida, as quais, porém, são ambas a mesma e única injustiça.

 

Ademais, a respeito da metáfora do geômetra que divide uma linha em duas partes iguais, encontrando no centro a justiça, Kelsen (2011) observa que um geômetra só pode dividir uma linha em duas partes iguais caso tenha previamente como dados os dois pontos extremos. Dessa forma, o mesótes só é aplicável caso já se tenha como pressupostos os vícios e as virtudes já previamente determinados pelo conhecimento, para que se lhes possa dar o ponto médio.

Com efeito, Kelsen (2011, p. 30) afirma que Aristóteles “pressupõe o conhecimento dos vícios como conhecimento de algo per si evidente e pressupõe como vício ou defeito aquilo que a moral tradicional do seu tempo cataloga como tal”. Em vista disso, para Kelsen, a fórmula do mesótes possui função conservadora, pois apenas vem confirmar como sendo bom aquilo que a ordem social estabelecida considera como bom.

3.2.2 O imperativo categórico kantiano

“Age sempre de tal modo que a máxima do teu agir possa por ti ser querida como lei universal”, declara Immanuel Kant (apud KELSEN, 2011, p. 21) em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Esse postulado é o denominado imperativo categórico, o qual “não é propriamente pensado como uma norma de justiça, mas como um princípio geral e supremo da moral no qual está contido o princípio da justiça” (KELSEN, ibdem).

David Schnaid (2004, p. 180) indica que, para Kant, “o homem age com consciência do dever, que lhe é imanente, e com esta base Kant reformula a Lei Moral, ou Imperativo Categórico”.

Sobre esse imperativo, que consiste em um poder querer sobre determinada conduta – isto é, a possibilidade de desejar que a máxima se torne universal –, Kelsen (2011) considera que ele não conduz a uma atuação necessariamente boa, pois um indivíduo tem a possibilidade de desejar que qualquer máxima de seu agir, independentemente de ser esta favorável ou atentatória à moral, se transforme em uma lei universal.

Primeiramente, Kelsen rebate o exemplo de Kant segundo o qual ninguém poderia desejar que uma máxima que prescreva o suicídio para escapar dos sofrimentos da vida se tornasse uma lei universal. De acordo com Kant, uma tal máxima entraria em contradição consigo mesma, pois seria contrária ao princípio essencial do próprio dever – o imperativo categórico –, que é incitar a promoção da vida. Para Kelsen (2011, p. 22-23), por outro lado, querer que essa máxima se torne universal não entra em contradição com um princípio absoluto do dever, mas apenas com a lei moral pressuposta por Kant.

Em seguida, Kelsen (2011, p. 23) desafia outro exemplo kantiano:

 

Uma outra máxima cuja compatibilidade com o imperativo categórico é analisada por Kant é aquela de se fazer uma promessa com a intenção de não cumpri-la. Imediatamente intuímos, diz Kant, que não poderíamos querer desta máxima que ela se transformasse numa lei universal, “pois segundo uma tal lei não haveria nenhuma promessa”. Mas por que haveria um homem mau de não poder querer uma tal situação? Se ele quer que a sua máxima seja uma lei universal, a sua vontade pode ser julgada como má desde que pressuponhamos a norma moral que diz que devemos cumprir as nossas promessas, mas não pode ser considerada como impossível.

 

Em suma, a partir desses e de outros exemplos semelhantes, Kelsen alega que as normas que Kant considera como autocontraditórias por serem incompatíveis com o princípio supremo de todo o dever não são incongruentes em face de um imperativo categórico, mas apenas em face de pressupostos que o filósofo de Königsberg considera como per si evidentes. Leia-se outro ilustrativo exemplo:

 

É patente que um egoísta pode querer uma lei universal do egoísmo e, simultânea e consequentemente, renunciar à ajuda dos outros, podendo, portanto, querer sem contradição que a sua máxima se torne lei universal. A contradição que aqui surge é a contradição entre a máxima e uma lei moral pressuposta por Kant, por força da qual devemos contribuir para o bem-estar dos outros. Só desta pressuposição, e não do imperativo categórico, se segue que o homem não “pode” querer, ou seja, afinal, não deve querer, que o princípio do egoísmo se torne uma lei universal. (KELSEN, 2011, p. 25)

 

Seguindo reiteradamente esse raciocínio, Kelsen (2011, p. 25-26) conclui:

 

É, assim, patente que, com o “poder querer” do imperativo categórico, se quer significar um “dever querer”, que o verdadeiro sentido do imperativo categórico é: “atua segundo uma máxima da qual devas querer que ela se transforme numa lei universal. Mas, de que máxima eu devo querer e de que máxima eu não devo querer que ela se torne uma lei universal? A esta questão o imperativo categórico não dá nenhuma resposta.

 

Assim, afirma Kelsen que o imperativo categórico kantiano não determina qual é a máxima que pode valer como lei universal, mas exige somente que a conduta apresente conformidade com uma norma geral. “Contudo, a questão decisiva para qualquer ética, a questão de saber qual é o conteúdo da lei universal com a qual a máxima deve conformar-se, permanece por responder” (KELSEN, 2011, p. 26).

Enquanto Kant entende que o imperativo categórico é o princípio do qual decorrem todos os imperativos do dever por meio de dedução, Kelsen considera que a única dedução possível é verificar se uma lei moral pressuposta como válida será compatível com o imperativo categórico – e responde que ela sempre será, haja vista que o imperativo categórico “pressupõe a resposta à questão de como devemos agir para proceder bem e justamente como previamente dada por um ordenamento preexistente” (KELSEN, 2011, p. 27).

3.2.3 A justiça marxista

Uma crítica que Karl Marx (apud Kelsen, 2011, p. 41) dirige ao sistema capitalista é afirmar que o princípio de justiça dessa ordem social consiste na fórmula: “a igual prestação de trabalho cabe igual salário, isto é, cabe igual participação no produto do trabalho”.

Para Marx, esse princípio com pretensão à igualdade é, de fato, um direito da desigualdade, por não levar em consideração as diferenças individuais entre a capacidade de trabalho de cada qual, de modo que tal igualdade não passa de aparência.

Nessa esteira, a fórmula que Marx propõe como regra da verdadeira igualdade é: “cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades” (ibidem).

Kelsen (2011, p. 42) sintetiza o ponto de vista da justiça marxista nas linhas:

 

A crítica de Marx à ordem econômica capitalista reconduz-se ao postulado de que não devemos ignorar, ao pagar o salário do trabalho, certas desigualdades, a saber, a desigualdade das capacidades e necessidades dos diferentes indivíduos em singular, desigualdades essas que são ignoradas no sistema de salário da ordem econômica capitalista.

 

Pois bem, Kelsen concorda com Karl Marx em que o sistema capitalista não representa um direito igualitário, mas por um motivo diverso e com diferente conclusão. Na visão kelseniana, a desigualdade presente no capitalismo consiste não em tratar igualmente os desiguais, mas em propriamente tratar de forma desigual aquilo que é desigual, entendendo que a regra formulada por Marx, refratária ao princípio da retribuição, não corresponderia ao princípio da igualdade.

Kelsen compara, na fórmula “cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”, o dever de produzir segundo a capacidade de cada um com a concepção platônica do Estado Ideal estabelecido em A República, e pondera que, para se determinar qual é a capacidade de cada um para produzir o quê, e qual é a necessidade que cada um de fato sente, seria indispensável pressupor um ordenamento em cujas regras houvesse critérios para que uma determinada autoridade competente decidisse qual a capacidade e qual a necessidade de cada indivíduo.

Ademais, opina Kelsen, utópico é presumir que, na sociedade comunista, todos cumprirão voluntariamente aquilo que o ordenamento designar como o dever de produzir atinente a suas capacidades, pelo que critica o fato de Marx silenciar sobre a questão de como o ordenamento reagirá em face da violação de sua ordem social, e se, mesmo nesse caso, assegurará ao violador as suas necessidades.

Dessa forma, Kelsen afirma que, para que se possa manter a norma de justiça marxista na condição de norma de justiça do tipo racional, necessário se faz entendê-la pressupondo-se um critério objetivo para a satisfação das necessidades. Com esse posicionamento, Kelsen (2011, p. 45) conclui:

 

O verdadeiro sentido do princípio de justiça comunista apenas pode ser: “cada um deve, segundo as suas capacidades, fixadas de conformidade com o ordenamento social, realizar o trabalho que é posto a seu cargo pelo mesmo ordenamento social; e a cada um devem ser satisfeitas as necessidades pelo ordenamento social reconhecidas, pela ordem no mesmo ordenamento estabelecida e com os meios determinados também por esse ordenamento.”

Sobre o autor
Yuri Ikeda Fonseca

Graduado em direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, Yuri Ikeda. Normas de justiça em Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4297, 7 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37470. Acesso em: 18 mai. 2024.

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