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Normas de justiça em Hans Kelsen

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07/04/2015 às 13:02

Resumo:


  • Hans Kelsen aborda as normas de justiça como juízos de valor relativos, combatendo a ideia de justiça absoluta.

  • Analisa normas de justiça como a justiça platônica, divina, aristotélica, o imperativo categórico kantiano e a justiça marxista, concluindo que nenhuma é absolutamente válida.

  • Conclui que a determinação do que é justo depende da escolha de uma norma de justiça, sendo uma decisão pessoal e relativa, sem possibilidade de validade absoluta.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Expõe-se o tratamento que Hans Kelsen confere a variadas normas de justiça: a justiça platônica, a justiça divina, a justiça aristotélica, o imperativo categórico kantiano e a justiça marxista.

SUMÁRIO: 1 Introdução – 2 Valores e justiça – 3 Normas de justiça – 4 Considerações finais

 

RESUMO: Este estudo pretende expor o tratamento que Hans Kelsen confere às variadas normas de justiça, em seu combate contra a ideia de que existe qualquer forma de justiça absoluta. Primeiramente, aborda-se a visão relativista de Kelsen acerca das normas de justiça como juízos de valor. Em seguida, apresentam-se as principais normas de justiça analisadas por Kelsen em sua obra, quais sejam, a justiça platônica, a justiça divina, a justiça aristotélica, o imperativo categórico kantiano, e a justiça marxista. Ao final, conclui-se que, na visão de Kelsen, nenhuma das normas de justiça apresentadas é válida em termos absolutos.

 

Palavras-chave: Hans Kelsen, normas de justiça, Teoria Pura do Direito, relativismo, axiologia.

 


 

1 Introdução

O grande empreendimento da obra e pensamento de Hans Kelsen consistiu, principalmente, em afirmar o caráter científico e autônomo do direito, rigorosamente delimitando-lhe o objeto – a norma jurídica e suas relações de validade (KELSEN, 2001, p. 359) – e determinando-lhe um método formal lógico-normativo.

Tal concepção da ciência jurídica implicou duas grandes formulações metodológicas, as quais marcaram o pensamento kelseniano: a) o isolamento (ou como enxergava Kelsen, a libertação) do direito em relação às demais ciências, excluindo-se a dependência dos fatos jurídicos de fatos sociológicos, psicológicos, econômicos etc.; b) a abstração axiológica, afastando do âmbito da ciência jurídica os juízos de valor, tais como visões morais e ideologias políticas.

É pertinente conferir o apontamento de Miguel Reale (1994, p. 455), referente ao contexto da ciência do direito no período em que Kelsen lançou ao mundo a sua teoria pura:

 

Quando Hans Kelsen, na segunda década deste século [XX], desfraldou a bandeira da Teoria Pura do Direito, a Ciência Jurídica era uma espécie de cidadela cercada por todos os lados, por psicólogos, economistas, políticos e sociólogos. Cada qual procurava transpor os muros da Jurisprudência, para torná-la sua, para incluí-la em seus domínios.

 

Sintetizando a visão kelseniana de ciência jurídica, Miguel Reale (2002, p. 237) explana:

 

Kelsen é um adversário sistemático daqueles que querem reduzir a Ciência Jurídica a um capítulo da Sociologia, da Economia, da História ou da Geografia. Para ele, a Ciência Jurídica é uma ciência autônoma, que deve operar com métodos próprios e com absoluta fidelidade a seus prismas de observação. Partindo desta colocação metodológica, Hans Kelsen sustenta que a Ciência do Direito é uma pura ciência de normas e proposições normativas.

 

Conforme indica Maria Helena Diniz (2006, p. 118), Kelsen remete o “estudo desses elementos sociais às ciências causais (sociologia, psicologia jurídica etc.), uma vez que, em sua concepção, ao jurista stricto sensu não interessa a explicação causal das instituições jurídicas”. Dirley da Cunha Júnior (2011, p. 86) atesta que Kelsen foi “um enérgico defensor da neutralidade científica aplicada à ciência jurídica, pelo que sempre insistiu na tese da separação entre o Direito e outras disciplinas do conhecimento humano.”

Desse modo, a teoria pura “responde à questão do que é o Direito, não do que deve ser. Esta segunda questão é uma questão de política, ao passo que a teoria pura do Direito é ciência” (KELSEN, 2001, p. 261).

A teoria pura kelseniana infere, pois, a neutralidade da ciência jurídica perante os valores, os quais o autor considera como insuscetíveis de apreciação científica para fins de se avaliar se são justos ou não (KELSEN, 2011, p. 16). Miguel Reale (2002, p. 374) aponta que “antes dos neopositivistas, e antecipando-se a eles, também Kelsen viu na justiça uma questão de ordem prática, insuscetível de qualquer indagação teórico-científica”. Para Kelsen (2006, p. 78), a ideia de que o direito deve, segundo sua própria essência, ser moral, “pode, apesar de sua insuficiência lógica, prestar politicamente bons serviços. Do ponto de vista da ciência jurídica ela é insustentável.”

A pureza da teoria, diz Kelsen (2001, p. 261), consiste na ideia de que “a ciência específica do Direito, a disciplina geralmente denominada jurisprudência, deve ser distinguida da filosofia da justiça”, de maneira que indagações sobre o que é justiça, o que é justo e injusto, pertencem ao domínio da Ética, não da ciência jurídica, esta que, segundo Kelsen, não possui competência para responder a questões relativas à justiça.

A problemática da moral e da justiça em Hans Kelsen, que não ignorou tal temática conquanto a tenha declarado banida do âmbito da Ciência Jurídica, é baseada em seu ferrenho embate contra o jusnaturalismo. O autor se insurge contra a pretensão de qualquer sistema de direito natural de sustentar-se em uma concepção de justiça com caráter absoluto e excludente de todas as demais. Eis o libelo de Kelsen (2011, p. 115) contra as doutrinas jusnaturalistas:

...cada uma dessas doutrinas jusnaturalistas dá ao indivíduo a ilusão de que a norma de justiça que ele escolhe ou pela qual opta provém de Deus, da natureza ou da razão, pelo que é dotada de validade absoluta, excluindo a possível validade de uma outra norma de justiça que a ela se oponha ou contradiga – e, por esta ilusão, muitos fazem um total sacrificium intellectus.

 

Ponderando que não se pode determinar qualquer elemento comum a todos os conteúdos das diferentes ordens morais vigentes em todas as sociedades de todos os períodos da história humana, Kelsen (2006, p. 73) considera que, quando não se pressupõe qualquer a priori como dado, isto é, “quando não se pressupõe qualquer valor moral absoluto, não se tem qualquer possibilidade de determinar o que é que tem de ser havido, em todas as circunstâncias, por bom e mau, justo e injusto”.

Dessa forma, diante da relatividade dos sistemas morais, e considerando a justiça como uma virtude moral (KELSEN, 2011, p.3), defende Hans Kelsen (2001, p. 223) que existe apenas um direito, ao mesmo tempo em que existem, no entanto, muitas justiças. Esse direito uno é o direito positivo, ou seja, “uma ordem coativa criada pela via legislativa ou consuetudinária e globalmente eficaz” (KELSEN, 2011, p. 117), baseado em uma norma fundamental que não é – e nem depende necessariamente de – uma norma de justiça, e da qual não depende a validade das normas do ordenamento:

 

Abstrair da validade de toda e qualquer norma de justiça (...), ou seja, admitir que a validade de uma norma do direito positivo é independente da validade de uma norma de justiça – o que significa que as duas normas não são simultaneamente válidas – é justamente o princípio do positivismo jurídico. (KELSEN, 2011, p. 11, grifos no original)

 

Confira-se, a esse respeito, a constatação de Dirley da Cunha Júnior (2011, p. 86):

 

Não obstante as críticas que recebeu, todas acusando-o de reduzir o conhecimento jurídico à norma e, consequentemente, esquecer as dimensões sociais e valorativas, Kelsen, na verdade, nunca negou tais aspectos, mas sustentou a necessidade de escolher, dentre eles, um que assegurasse autonomia ao jurista.

 

No que concerne à questão específica da justiça, eis as palavras do próprio Kelsen (2011, p. 70):

Uma teoria do direito positivista, isto é, realista, não afirma – e isto é importante acentuar sempre – que não haja nenhuma justiça, mas que de fato se pressupõem muitas normas de justiça, diferentes umas das outras e contraditórias entre si.  (...) Especialmente não nega que toda ordem jurídica positiva – quer dizer, os atos através dos quais suas normas são postas – pode ser apreciada ou valorada, segundo uma destas normas de justiça, como justa ou injusta. Mantém, todavia, que estes critérios de medida têm um caráter meramente relativo...

Com efeito, Kelsen expõe variadas normas consideradas válidas no sentido de se valorar algo como sendo justo (normas de justiça), negando a todas um caráter absoluto e afirmando que “a decisão da questão de saber o que é justo e o que é injusto depende da escolha da norma de justiça que nós tomamos para base do nosso juízo de valor e, por isso, pode receber respostas muito diversas” (KELSEN, 2011, p. 114).

Na perspectiva de Kelsen (ibidem), o problema de se indagar “o que é justiça?” não se encontra tanto no ato de tentar responder, quanto principalmente no ato de saber o que perguntar:

A tarefa do conhecimento científico não consiste apenas em responder às perguntas que lhe dirigimos mas também em ensinar-nos quais as perguntas que lhe podemos dirigir com sentido.

No presente estudo, pretende-se abordar o tratamento doutrinário que Hans Kelsen dispensa à questão da multiplicidade das normas de justiça em sua influente e discutida obra, primeiramente apresentando-se a visão kelseniana do valor justiça, suscitando-se em seguida algumas das mais importantes entre as variadas normas de justiça possíveis sob a ótica de Kelsen.


2 Valores e justiça

“O juízo segundo o qual uma tal conduta é justa ou injusta representa uma apreciação, uma valoração da conduta”, afirma Hans Kelsen (2011, p. 4), e prossegue (ibidem, p. 4-5):

 

O resultado é um juízo exprimido que a conduta é tal como – segundo a norma de justiça – deve ser, isto é, que a conduta é valiosa, tem um valor de justiça positivo, ou que a conduta não é como – segundo a norma de justiça – deveria ser, isto é, que a conduta é desvaliosa, tem um valor de justiça negativo.

Dentro desse raciocínio, Kelsen defende que a qualidade de “justo” ou “injusto” de um indivíduo manifesta-se em sua conduta perante outros sujeitos, à luz de uma determinada norma de justiça com a qual aquela conduta seja compatível ou não. Em outras palavras, “um homem é justo quando seu comportamento corresponde a uma ordem dada como justa” (KELSEN, 2001, p. 2).

No entanto, o que caracteriza uma norma de justiça? Para Kelsen (2011, p. 7), significa aquela norma que “prescreve uma determinada conduta de homens em face de outros homens”, ou seja, que impõe ou proíbe uma conduta social. O autor pondera que a norma de justiça é uma norma moral, mas nem toda norma moral é uma norma de justiça.

De fato, Kelsen (2001) considera que há na Teoria do Direito dois juízos de valor, os quais o autor visualiza como pertencentes a duas esferas distintas: o valor de direito (ou juízo jurídico de valor), pelo qual se avalia determinada conduta como “lícita” ou “ilícita”, e o valor de justiça, pelo qual se valora a conduta como “justa” ou “injusta”.

Busquemos o que Kelsen entende por valor. O autor afirma que, “segundo uma teoria amplamente aceita, todo valor é função de um interesse, no sentido de uma atitude motor-afetiva” (KELSEN, 2001, p. 205). Essa teoria a que Kelsen se refere é a Axiologia, ou Filosofia dos Valores (Wertphilosophie), sobre a qual “se levanta todo o edifício das várias disciplinas axiológicas” (HESSEN, 1946, p. 18), tais como a Ética, a Estética e a Filosofia da religião.

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Aponta David Schnaid (2004, p. 50) que “chamamos de juízos de valor àqueles que relacionam o objeto a um sentido para o ser humano, a uma finalidade. Sem isso eles não podem ser entendidos.”

Na opinião de Miguel Reale (1994, p. 210), quando “o homem toma atitude perante o fato e o insere no processo de sua existência, surge o problema do valor, como critério de compreensão”.

O valor é, portanto, um objeto da cultura, mostrando-se pertinente a observação de Raimundo Bezerra Falcão (2010, p. 19), para quem, “se a cultura é uma das conseqüências da conduta, e se a conduta contém necessariamente valor, inexiste como negar que os objetos culturais são e valem a um só tempo.”

A relação indissolúvel entre valor e conduta atesta o caráter teleológico do valor, e torna evidente que “o fim é valor enquanto racionalmente pode ser captado e reconhecido como motivo de agir” (REALE, 1994, p. 380). Dessa forma, é de se pressupor a implicação fundamental dos valores sobre qualquer concepção de justiça aceita por um indivíduo ou grupo. Aquiles Côrtes Guimarães (2007, P. 44-45) aponta a relevância que tem a questão dos valores para a indagação filosófica e aplicação prática da justiça:

Valorar é uma constância na atividade jurisdicional, uma vez que decidir é cindir, isto é, escolher entre um conjunto de valores, que se opõe a um outro conjunto de valores, realizando uma síntese cuja única unidade integradora é o juiz, no momento da sentença. (...)

Logo, a questão dos valores mostra à consciência fundante como questão radical, enquanto ingrediente decisivo no momento da determinação concreta do justo e do injusto por parte do Estado-juiz.

 

É de se reconhecer, portanto, que o valor é uma bússola pela qual se orienta a escolha entre duas ou mais diferentes normas de justiça. Hans Kelsen (2001 p. 222-223) exemplifica a interação entre o valor e a norma de justiça ao afirmar:

 

A norma de justiça tem significado diferente para um pacifista e um imperialista, para um nacionalista e um internacionalista, para um crente e um ateu. O homem primitivo tem uma concepção de justiça diferente da do homem civilizado. (...)

Portanto, não há um padrão exclusivo de justiça: o que encontramos efetivamente são muitos ideais diferentes e, muitas vezes, conflitantes.

 

A Filosofia dos Valores (Wertphilosophie) entende que os valores são relativos, porém passíveis de objetivação (SCHNAID, 2004, p. 56-58). Com efeito, objetivar compreende externar o espírito individual, depositar fora do sujeito as suas noções, suas experiências, seus valores, que se desvinculam do âmbito subjetivo e adquirem sentido para outros e indeterminados sujeitos. Falcão (2010) afirma que o espírito se objetiva em forma de cultura, e que a própria cultura é vida humana objetivada.

Na visão de Kelsen, entretanto, apenas o juízo jurídico de valor é passível de objetivação, não se objetivando o juízo de valor da justiça, que possui natureza diversa. Segundo Kelsen (2001, p. 223),

 

...o valor de Direito é objetivo, ao passo que o valor de justiça é subjetivo. E isso se aplica mesmo que às vezes um grande número de pessoas tenha o mesmo ideal de justiça. Os juízos jurídicos de valor podem ser postos à prova objetivamente por fatos. Portanto, são admissíveis em uma ciência do direito. (...) Os juízos de justiça não podem ser postos à prova objetivamente.

 

Schnaid (2004, p. 57) menciona que “Hans Kelsen, em muitos de seus escritos, ataca, de maneira enérgica, a possibilidade de uma axiologia jurídica objetiva.”

Kelsen advoga tal postura por acreditar que o valor não é necessariamente relacionado a um interesse, como propõe a Wertphilosophie, mas que pode também ser relacionado a uma norma, o que seria o caso dos juízos jurídicos de valor: “Pressupondo a norma fundamental, podemos submeter a uma prova objetiva os juízos jurídicos de valor baseados na norma fundamental pressuposta” (KELSEN, 2001, p. 220-221). Isto porque, segundo defende o autor, ao serem os valores de direito relacionados não com uma vontade, mas com uma norma, podem valorar não só a conduta de um único indivíduo ou apenas dos indivíduos que partilhem daquela vontade, mas a conduta de todos, uma vez que, enquanto a vontade é subjetiva, a norma é objetiva.

A subjetividade dos valores – que para Kelsen, reitere-se, são impassíveis de objetivação, exceto os valores jurídicos – é um dos argumentos kelsenianos para defender a impossibilidade de se chegar a uma norma de justiça absoluta, fundada na razão:

O problema dos valores é, antes de tudo, o problema dos conflitos de valores. E esse problema não poderá ser solucionado com os meios do conhecimento racional. A resposta às questões que aqui se apresentam é sempre um juízo, o qual, em última instância, é determinado por fatores emocionais e possui, portanto, um caráter subjetivo. Isso significa que o juízo só é válido para o sujeito que julga, sendo, nesse sentido, relativo. (...)

Em última análise, é o nosso sentimento, nossa vontade e não nossa razão, é o elemento emocional e não o racional de nossa atividade consciente que soluciona o conflito. (KELSEN, 2001, p. 4-5)

 

De fato, Kelsen (2001), para quem é inadmissível identificar “valor” com “valor absoluto”, alega que o ser humano, para satisfazer à necessidade de justificação de sua conduta, tenta apresentar os juízos de valor subjetivos, nascidos do emocional, como se fossem juízos de realidade, objetivos e verificáveis. Dessa forma, o positivismo kelseniano rejeita completamente a acepção dos valores como sendo juízos sobre a realidade ou como descrição de fatos, verificáveis por meio da experiência. Kelsen compara os juízos de realidade com os juízos de valor e conclui que, embora ambos tenham sua carga de subjetivismo, aquela dos juízos de valor é muito mais acentuada:

 

Enunciados sobre fatos baseiam-se, é verdade, na percepção de nossos sentidos, controlados por nossa razão, e, portanto, também são subjetivos, em certo sentido. Mas as percepções de nossos sentidos estão sob o controle de nossa razão em um grau muito maior do que estão nossos sentimentos (KELSEN, 2001, p. 293)

 

E ainda:

Enunciados científicos são juízos sobre a realidade; por definição, são objetivos e independentes de desejos e temores do sujeito que julga porque são verificáveis por meio da experiência. São verdadeiros ou falsos. Juízos de valor, porém, têm caráter subjetivo porque são baseados, em última análise, na personalidade do sujeito que julga, em geral, e no elemento emocional de sua consciência em particular. (KELSEN, 2001, p. 349-350)

 

Nessa esteira de pensamento, é de se indagar onde se insere o direito – e sua relação com a moral – no contexto das concepções acima expostas. Kelsen (2006) usa a relatividade da moral buscando refutar a ideia de que uma norma deve satisfazer uma exigência mínima de justiça – conter em si um “mínimo moral” – para que possa ser considerada como direito. Na visão do autor, somente caso se pressuponha uma moral absoluta, de modo que o direito possa ter um conteúdo comum a todos os sistemas morais possíveis, é que se pode afirmar que todo o direito tem um caráter moral necessário. A teoria pura kelseniana tem o relativismo axiológico como um ponto de partida.

O que não significa, porém, que para Kelsen o direito não tenha relação alguma com a moral e com a justiça, nem que a ideia de inexistência de valores objetivos leve a negar a existência de uma norma válida de justiça. As conclusões de Hans Kelsen (2006, p. 75-76) a esse respeito estão expressas nas linhas:

 

Se, pressupondo a existência de valores meramente relativos, se pretende distinguir o Direito da Moral em geral e, em particular, distinguir o Direito da Justiça, tal pretensão não significa que o Direito nada tenha a ver com a Moral e com a Justiça, que o conceito de Direito não caiba no conceito de bom. Na verdade, o conceito de “bom” não pode ser determinado senão como “o que deve ser”, o que corresponde a uma norma. (...) Uma teoria dos valores relativista não significa – como muitas vezes erroneamente se entende – que não haja qualquer valor e, especialmente, que não haja qualquer Justiça. Significa, sim, que não há valores absolutos mas apenas valores relativos, que não existe uma Justiça absoluta mas apenas uma Justiça relativa, que os valores que nós constituímos através de nossos atos produtores de normas e pomos na base de nossos juízos de valor não podem apresentar-se com a pretensão de excluir a possibilidade de valores opostos.

 

A perspectiva de Kelsen é de que, havendo muitas justiças possíveis, uma ordem jurídica positiva que se baseia em uma determinada norma de justiça fatalmente entrará em contradição com diversas outras – e nem por isso perde sua validade. Dessa forma, uma ordem jurídica pode corresponder a qualquer das variadas normas de justiça, mas seu fundamento de validade não pode ser dependente dessa correspondência.

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Sobre o autor
Yuri Ikeda Fonseca

Graduado em direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, Yuri Ikeda. Normas de justiça em Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4297, 7 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37470. Acesso em: 22 dez. 2024.

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