5.O DESEQUILÍBRIO DOS PODERES E A INEFETIVIDADE CONSTITUCIONAL
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, segundo o parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal. O problema que parece insolúvel, porém, é o referente ao controle do poder, para que os governantes realmente o exerçam de acordo com o interesse público.
O normal, no Brasil, é que os Executivos, federais, estaduais ou municipais, freqüentemente aliados aos órgãos legislativos, sejam sempre tentados a aprovar normas inconstitucionais, sob os mais diversos pretextos, que vão da urgência até à ameaça de ingovernabilidade, atingindo assim com essa legislação os direitos do povo, assegurados pela Constituição.
5.1. As medidas permanentes
Apenas para exemplificar, podemos citar, no plano federal, o abuso das medidas provisórias, que recentemente o Congresso tentou limitar, através da Emenda Constitucional nº 32/01, ou a recente proposta de emenda constitucional que tentou instituir a cobrança da contribuição previdenciária dos aposentados e pensionistas, atingindo direitos adquiridos e as cláusulas pétreas da Constituição Federal.
Os nossos Presidentes, desde o início da última década, têm legislado indiscriminadamente, sem atentarem aos limites constitucionais da relevância e da urgência. Em certas matérias, chegamos ao absurdo de ter medidas provisórias que vêm sendo reeditadas há sete anos. Como justificar, nesses casos extremos, o requisito da urgência? Para que serve o Congresso Nacional, afinal de contas, se o Presidente da República pode legislar sozinho, com muito maior eficiência? No total, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, até o fim do ano passado, já havia baixado 239 medidas provisórias, e tinha feito 3.196 reedições, muitas delas com textos modificados, em relação aos anteriores.
5.2. Um pouco de História
Nossa história político-constitucional tem sido pródiga em exemplos da intromissão indevida do Chefe do Executivo, e do seu fortalecimento exagerado, em franco desrespeito aos demais Poderes. Tudo parece ter começado quando D. Pedro I dissolveu a Assembléia Constituinte, e outorgou uma Constituição, garantindo sempre a supremacia de seu poder pessoal, dentro das melhores tradições do absolutismo ibérico. A personalização do poder na figura do caudilho é da nossa tradição. Até mesmo a República, entre nós, foi feita por um decreto, o Decreto nº 1, de 15.11.1889, assinado por um militar, o Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, e aliás redigido por Rui Barbosa.
O problema do Presidente legislador é bem antigo no Brasil. Foi o próprio Rui Barbosa quem pronunciou as seguintes palavras; "...os nossos Presidentes carimbam as suas loucuras com o nome de leis, e o Congresso Nacional, em vez de lhes mandar lavrar os passaportes para um hospício de orates, se associa ao despropósito do tresvairado, concordando no delírio, que devia reprimir." [11]
Após a Revolução de 1930, sob a vigência do Estado Novo, a Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, vigorava de acordo com a vontade pessoal do Ditador, que legislou mediante decretos-leis, sem qualquer limitação, porque o Parlamento foi fechado, a censura impedia qualquer manifestação contrária ao regime, e o Judiciário também não dispunha de garantias para fazer valer suas decisões.
Em seguida ao breve hiato da chamada reconstitucionalização, da Constituição de 1.946, quando não existia a figura do decreto-lei, foi instaurada no Brasil uma nova ordem jurídica, fundada nos Atos Institucionais, a partir do Golpe, ou da Revolução, de 1964. Sob o Regime Militar, o Presidente legislava através de decretos-leis, e na prática não havia qualquer limite a essa legiferação, quer pelo Legislativo, quer pelo Judiciário. Aliás, o Ato Institucional nº 5/68 excluía, expressamente, da apreciação do Poder Judiciário, os atos praticados pelo Governo Militar, e os seus efeitos (art. 11). Em outras palavras, os decretos leis prevaleceriam, mesmo que conflitassem com a Constituição Federal.
5.3. As Medidas Provisórias e sua Reedição
Após o fim melancólico do Regime Militar, e mais uma reconstitucionalização, a Constituinte de 87/88, como seria lógico, pretendeu devolver ao Congresso o poder legiferante, mas permitiu, excepcionalmente, a edição de medidas provisórias pelo Presidente da República, somente em caso de relevância e urgência (art. 62). Ressalte-se que a competência do Presidente para a sua edição deveria ter sido interpretada restritivamente, porque o contrário constituiria uma afronta ao princípio básico da separação dos poderes.
O parágrafo único do art. 62 da Constituição de 1988, em sua redação originária, era muito claro, quando afirmava que as medidas provisórias perderiam a eficácia desde a edição, se não fossem convertidas em lei no prazo de trinta dias. A medida provisória é, ao mesmo tempo, um projeto de lei e uma lei destinada a vigorar provisoriamente, dependendo da vontade do Congresso. Assim, se não fosse convertida em lei, ela perderia a sua eficácia, ou seja, teria sido rejeitada pelo Congresso, e a sua reedição seria inteiramente inconstitucional, de acordo com a melhor doutrina, porque significaria a apresentação, na mesma sessão legislativa, de um novo projeto de lei, com o mesmo conteúdo de um projeto já rejeitado (CF., art. 67), embora sua rejeição tivesse sido tácita, pelo simples decurso do prazo.
5.4. A Usurpação do Poder
Não é verdade, absolutamente, que a medida provisória seja norma típica, ou exclusiva, do parlamentarismo, e que torne necessariamente imperial o presidencialismo. Isso acontecerá, apenas, se o Presidente da República abusar de sua competência, usurpando o poder. Na verdade, a usurpação poderá ocorrer de várias maneiras. Nos golpes de estado, com o apoio dos canhões. Nas assim chamadas democracias meramente formais, através de outros mecanismos mais sutis, como a violação de painéis eletrônicos, a distribuição das verbas referentes às emendas parlamentares, ou ainda na própria elaboração da lei orçamentária, e mesmo pela edição ou reedição de um enorme número de medidas provisórias, inviabilizando conseqüentemente o seu exame pelo Congresso e o controle de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal.
Também não se pode dizer que o Presidente não tenha usurpado o poder, sob a alegação de que a culpa seja do Congresso, pela sua inércia e pela sua conivência. Isso é um sofisma. Seria o mesmo que afirmar a inocência do ladrão, ao argumento de que a porta deveria ter mais um cadeado.
Na opinião do constitucionalista Sacha Calmon Navarro Coelho, "Não é crível que a medida provisória possa ser mais ampla que o Decreto-lei. A interpretação histórica e teleológica da Constituição primam em mostrar a excepcionalidade da medida e não a sua vulgarização. Renegamos o argumento de que ela se instalou ao pressuposto de que o regime seria parlamentarista e, portanto, o Governo seria engendrado no Congresso Nacional pelos partidos majoritários, gozando da confiança parlamentar. Ora, no Presidencialismo as maiorias parlamentares governantes depositam igualmente confiança na Presidência da República. A medida provisória está na Constituição como instrumento legiferante necessário em casos de urgência e relevância, independentemente do parlamentarismo. A questão é que não se quer enfrentar estes antepostos, os quais estão escritos na Superlei exatamente para serem sopesados pelos dois outros Poderes da República: o Legislativo e o Judiciário."
5.5. A Responsabilidade do Presidente
Mas o Presidente da República é obrigado a respeitar a Constituição, o que define a sua responsabilidade pelos abusos na edição e na reedição de medidas provisórias. Ocorrendo os pressupostos de relevância e urgência, o Presidente seria obrigado a editar as medidas provisórias, mas na ausência de um desses pressupostos, ele estaria impedido de se valer dessa atribuição legiferante excepcional. Para a constitucionalista Carmen Lúcia Antunes Rocha, o Presidente da República deveria ser responsabilizado (através do "impeachment", evidentemente): "Responsabilidade do Presidente da República - A relevância urgente define um dever de ação no desempenho da competência definida constitucionalmente, tanto quanto a inocorrência objetiva de qualquer daqueles dois pressupostos define um dever de abster-se de valer-se de tal competência excepcional o titular da atribuição, pena de responsabilidade por atentar contra a Constituição."
Mas é muito claro que, depois de todos os abusos praticados pelos Governos Militares, o Constituinte de 1988 não pretendeu permitir a reedição das Medidas Provisórias, mesmo porque estabeleceu os já referidos requisitos de urgência e relevância da matéria, e também porque fixou um prazo improrrogável de trinta dias, para a conversão da medida em lei. Além disso, o legislador constituinte determinou a convocação extraordinária do Congresso Nacional, quando em recesso, para se reunir no prazo de cinco dias, e apreciar a matéria, o que denota mais uma vez sua relevância e urgência.
5.6. O Controle das Medidas Provisórias
Tendo em vista que a medida provisória é, ao mesmo tempo, um ato com força de lei (por trinta dias) e um projeto de lei, a ser apreciado pelo Congresso, dentro desse mesmo prazo, o Supremo Tribunal Federal concedeu diversas liminares, suspendendo a aplicação de medidas provisórias, mas ressalvando a sua validade como projeto que poderá ser convertido em lei pelo Congresso Nacional. Com a freqüente reedição das medidas provisórias, porém, e devido à virtual impossibilidade de uma decisão judiciária definitiva no prazo de trinta dias, avolumaram-se os problemas referentes ao controle da constitucionalidade desses atos normativos.
De qualquer maneira, o Supremo Tribunal Federal se negava a examinar os requisitos da relevância e urgência para a edição das medidas provisórias, sob o argumento de que isso caberia ao Presidente da República, e admitia também a constitucionalidade de sua reedição, em evidente prejuízo ao equilíbrio entre os Poderes Constituídos.
O Congresso Nacional aprovou, recentemente, depois de quatro anos de tramitação, a Emenda Constitucional nº 32, de 11.09.2001, destinada a limitar a edição de medidas provisórias, mas tudo indica que o problema não será resolvido, porque as medidas provisórias anteriores continuarão indefinidamente em vigor e porque, apesar de ter sido limitada a possibilidade de sua reedição, o Presidente da República pode agora editar medidas provisórias a respeito de matérias que tenham sido objeto de emendas constitucionais, o que era vedado pelo art. 246 da Constituição Federal.
A respeito da fraqueza do Legislativo, dizia Pimenta Bueno, o mais autorizado intérprete da Constituição do Império: "Desde que o poder legislativo sabe respeitar e cumprir sua augusta missão, e por isso mesmo sabe fazer-se respeitar, ninguém se anima, nem pode animar-se a contrariar seu impulso animador e benéfico; quando porém ele é o primeiro a curvar-se ante os ministros, pode contar certo com a sua degradação, e a sociedade com o abatimento de suas liberdades"
Na verdade, o Congresso e o Supremo estão em posição de inferioridade, nessa disputa pelo poder, em face de suas próprias características, como órgãos colegiados, e tradicionalmente mais lentos, em suas decisões, devido à pulverização do poder e aos demorados trâmites processuais que dificultam o seu funcionamento. Ao Chefe do Executivo, basta uma caneta.
5.7. O abuso do poder
No plano municipal, em Belém, por exemplo, temos a cobrança do IPTU em alíquotas progressivas, que variam de acordo com o valor venal do imóvel, e que vinha sendo feita há vários anos, apesar da jurisprudência pacífica do Supremo, que entendia ser essa cobrança inconstitucional, antes da edição da Emenda Constitucional nº29/00. Isso, para não falarmos a respeito da taxa de iluminação pública, da nomeação de servidores sem concurso público e da prorrogação de seus contratos por mais de dez anos.
Várias tentativas têm sido feitas para enfraquecer o Poder Judiciário, de modo a que possam prevalecer os anseios autoritários, entre elas a da instituição da súmula vinculante, o que significa que, se uma determinada matéria for decidida pelo Supremo, fica impedida qualquer manifestação futura, de qualquer juiz ou Tribunal.
Para os Executivos, é bem mais fácil controlar os Tribunais Superiores, especialmente devido à sua participação no processo de investidura de seus membros. Na verdade, a nossa jurisdição constitucional, transplantada de outros sistemas constitucionais, sofre de um grave processo de rejeição, que poderá causar até mesmo a morte do paciente.
Também muitas denúncias de corrupção têm claramente o objetivo de enfraquecer o Poder Judiciário, porque se existem corruptos no Judiciário, assim como nos outros Poderes, isso não significa que o Judiciário deva ser fechado, ou deva ter suas atribuições limitadas. Da mesma forma, em relação às denúncias da indústria de liminares, porque a concessão de liminares por juízes e tribunais é certamente um instrumento da maior importância para a limitação da prepotência dos Executivos. Além disso, se inúmeras liminares têm sido concedidas, isso é decorrência do excesso de abusos e do autoritarismo dos Executivos. Observa-se, na verdade, o claro interesse de inviabilizar o controle difuso de constitucionalidade, para que todas as decisões sejam centralizadas no Supremo Tribunal Federal, que pode ser com muito maior facilidade cooptado pelas elites dominantes.
A própria Ação Declaratória de Constitucionalidade, criada pela Emenda Constitucional no. 3, de 17.03.93, tem servido também para enfraquecer o Poder Judiciário, e para impedir a prevalência dos princípios constitucionais básicos da ampla defesa e do contraditório, do devido processo legal, do juiz natural, da separação dos poderes e da inafastabilidade da tutela jurisdicional. Essa nova modalidade de controle é considerada pela melhor Doutrina como uma tentativa no sentido de que o Executivo possa transformar o Supremo Tribunal Federal em mero chancelador das normas inconstitucionais editadas pelo Congresso Nacional, ou pelo Presidente da República, através das suas medidas provisórias que já se tornaram, definitivamente, permanentes, após a edição da Emenda Constitucional nº32/01.
Assim, para evitar a enxurrada de ações e liminares nos juízos e tribunais federais do País, sempre que houver a "necessidade" de aprovar uma norma inconstitucional, o Governo poderá contar com o Supremo Tribunal Federal, como legislador de segunda instância, encarregado de carimbar no texto daquela lei, daquela emenda, ou daquela medida provisória, um "de acordo", para protegê-la do controle incidental de constitucionalidade, pela chamada via indireta ou difusa, que deveria ser a garantia de todos os jurisdicionados contra a prepotência dos governantes. Recorde-se que o Supremo já firmou jurisprudência no sentido de que até mesmo a decisão cautelar em Ação Declaratória de Constitucionalidade tem o condão de produzir efeitos vinculantes, apesar da clareza do texto constitucional. [12]
A separação dos poderes, que resultou de diversas contribuições doutrinárias e foi definitivamente sistematizada e consagrada por Montesquieu, pretendia exatamente criar um sistema capaz de evitar os abusos por parte dos governantes, através de limitações recíprocas entre os poderes. Assim, para que as autoridades do Legislativo, do Executivo e do Judiciário não pudessem abusar do poder, existe em nosso ordenamento constitucional uma série de mecanismos, como os que integram o nosso complexo sistema de controle de constitucionalidade, que deveriam funcionar, no entanto, de modo efetivo, para garantir a supremacia da Constituição e para fazer com que o poder fosse exercido, na realidade, em benefício do povo.
Mas apesar de todos esses controles, que a cada dia se tornam mais complexos, dando mesmo a entender que não existe a intenção de que eles possam funcionar, a Constituição tem se tornado letra morta, pela ação, ou pela omissão do Estado. A inércia do Poder Público e o silêncio do legislador também ofendem a Constituição, como tem ocorrido nos quase quatorze anos de sua vigência, porque o Congresso Nacional não tem cumprido sua função legiferante, de regulamentar esses dispositivos constitucionais, e o Judiciário não tem sido capaz de corrigir essa situação, pela via do mandado de injunção ou da ação de inconstitucionalidade por omissão. Não tem sido capaz, ou não existe "vontade política" para isso. Mas a questão das normas programáticas não é nova, nem seria absolutamente indispensável a existência desse variado e complexo instrumental de controle, que inutilmente guarnece a nossa Lei Fundamental, conforme se vê pela leitura de trecho da tese do Dr. ORLANDO BITAR, de 1951. [13]
O que se observa, portanto, são os abusos, porque os controles não funcionam. Não existe "vontade política" para que isso ocorra. O Presidente precisa do Congresso, que aprovou o salário mínimo de R$151,00 e os pisos regionais, e precisa do STF, que decidiu que o subsídio único determinado há mais de três anos pela Emenda Constitucional nº 19/98 não é auto-aplicável, permitindo conseqüentemente que todos continuem recebendo gratificações, adicionais, abonos, prêmios, verbas de representação, auxílios-moradia e outras espécies remuneratórias. Os congressistas precisam às vezes aprovar as "emendas de bancada", porque precisam se reeleger, e são obrigados, conseqüentemente, a aprovar os projetos de interesse do Executivo, mesmo quando estes são claramente inconstitucionais ou contrários ao interesse público. Os juízes, que também são humanos, também têm os seus interesses, assim como as instituições financeiras, apenas para mais uma vez exemplificar, que estão liberadas, pela interpretação do Supremo, para cobrar juros astronômicos, superiores ao limite constitucional de 12% ao ano (isso mesmo, ao ano!)
5.8. A Constituinte permanente
O Supremo Tribunal Federal poderia, e deveria, ter julgado inconstitucional a reedição das medidas provisórias, e não o fez, talvez por imposições políticas, ou por "razões de estado". Aliás, a politização do Supremo Tribunal Federal é um fenômeno que está a merecer a atenção dos constitucionalistas, para que possa ser restabelecido o equilíbrio dos poderes. É preciso democratizar o processo de investidura dos tribunais superiores, o que deveria ser estendido também ao Ministério Público e aos Tribunais de Contas, porque esses órgãos também precisam resguardar ciosamente a sua independência, para que possam desempenhar sua missão constitucional. [14]
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal está se transformando em uma constituinte permanente, sem que tenha qualquer legitimidade para isso. Afinal, suprema deve ser a Constituição. Os Poderes Constituídos devem ser independentes e harmônicos, exatamente para que se evite a tirania, segundo as idéias definitivamente sistematizadas por Montesquieu. Somente o povo é titular do poder constituinte.
A separação dos poderes do Estado é um dos princípios fundamentais de nosso ordenamento jurídico. No entanto, no Brasil, enquanto o Chefe do Executivo legisla através de medidas provisórias que se eternizam através de sucessivas reedições, e o Supremo Tribunal Federal, através do efeito vinculante de suas decisões, exclui de apreciação, pelos juízes e tribunais, a defesa dos direitos fundamentais dos jurisdicionados, o Congresso Nacional, que teoricamente teria legitimidade para legislar e para reformar a Constituição, não desempenha na realidade a sua função constitucional, porque está constantemente emaranhado nas denúncias de corrupção que envolvem muitos de seus membros, e muitos dos funcionários de alto escalão dos outros poderes.
O resultado desse deturpado jogo de forças é que o poder não é exercido, absolutamente, no interesse do povo, que apesar disso a Constituição afirma ser o verdadeiro dono do poder. [15]
5.9. Os limites ao poder de concretização
Mas a Constituição, para ser uma lei suprema, precisa ser efetiva, e para que isso ocorra é crucial o desempenho dos poderes constituídos e, em especial, da jurisdição constitucional.
CANOTILHO ressalta com muita propriedade que, em um Estado de direito democrático, o trabalho metódico de concretização é um trabalho normativamente orientado. Essa observação está intimamente relacionada com a questão da limitação do poder hermenêutico, [16] e deve ser entendida no contexto da Constituição rígida, revestida da característica de lei suprema do Estado, e também da legitimidade que decorre de sua elaboração por uma Constituinte democrática.
A norma de decisão, afirma CANOTILHO, não é uma grandeza autônoma, mas depende das prévias decisões do Poder Constituinte, consubstanciadas no texto da Lei Fundamental. Admitir o contrário seria dizer que um Tribunal, como o nosso Supremo Tribunal Federal, poderia criar a norma constitucional, decidindo sem a indispensável legitimidade, sobrepondo-se aos princípios e às regras da Constituição que teoricamente pretende concretizar.
A questão é portanto medular, porque relacionada com o controle do poder. É da maior relevância para a análise e a compreensão do ordenamento constitucional vigente a questão da separação dos poderes e a avaliação da efetiva capacidade dos mecanismos adotados, no pertinente à limitação do poder da jurisdição constitucional, no desempenho de sua função de intérprete máximo da Constituição.
A separação dos poderes é tida como garantia da existência de um regime democrático, ou de um estado de direito, e a usurpação do poder pela Corte Constitucional faz com que ela deixe de ser a guardiã da Constituição, para ser ela própria um órgão legiferante e uma constituinte permanente.
Sendo a Constituição uma Lei Fundamental e suprema, é necessário, portanto, controlar a regularidade das leis, ou seja, de toda e qualquer norma infra-constitucional. Ironicamente, as raízes (caso Bonham) do controle jurisdicional de constitucionalidade estão na Inglaterra, que hoje não adota esse mecanismo - embora o tema esteja sendo discutido, no contexto das alterações européias -, exatamente porque sua Constituição é consuetudinária e flexível, embora seja mais estável do que as Constituições de muitas repúblicas sul-americanas, porque é evidente que a estabilidade ou instabilidade das instituições não depende apenas de fórmulas jurídicas, mas principalmente da cultura de cada povo.