O presente estudo aborda a polêmica da presença de crucifixos nos tribunais pátrios, estabelecendo-se análise ancorada na perspectiva metodológica ofertada por Dominique Maingueneau em Gênese dos Discursos[2]. Contudo, face à dimensão da presente controvérsia e, a fim de enfrentá-la nos limites e propósitos aqui objetivados, traça-se um corte epistemológico, debruçando-se especificamente sobre a decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ – frente aos pedidos de providência (PPs 1344, 1345, 1246 e 1362) formulados por Daniel Sottomaior Pereira, criador da campanha “Brasil para Todos”. Neles requer-se a retirada dos crucifixos dos Tribunais de Justiça do Ceará, Minas Gerais, Santa Catarina e do Tribunal Regional Federal da 4º Região – TRF4.
Maingueneau, em sua obra Gênese dos Discursos, parte do conceito de discurso produzido pela “escola francesa de análise do discurso”, voltando-se à M. Foucault e entendendo discurso como “uma dispersão de textos, cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas” (2008, p. 15). Contudo, opta por apresentar também discurso como “um sistema de regras que define a especificidade de uma enunciação” (2008, p. 19). A partir deste pluralismo conceitual e das ‘lacunas’ então produzidas por este embate teórico, Maingueneau propõem-se enfrentar o ‘discurso’ sob uma dupla perspectiva: da gênese e da interdiscursividade. Para tanto, apresenta sete hipóteses: a) Primado do interdiscurso; b) Uma competência discursiva; c) Uma semântica global; d) A polêmica como interincompreensão; e) Do discurso à prática discursiva; f) Uma prática intersemiótica; g) Um esquema de correspondência. Estas hipóteses são aplicadas a um corpus específico – aos discursos religiosos da França do Século XVII, cindidos em duas correntes: “humanismo devoto” e “jansenismo”. Neste esboço, entretanto, objetiva-se, ainda que de forma precária, transpor alguns destes lineamentos teóricos para a polêmica dos crucifixos nos tribunais pátrios.
A primeira tese apresentada por Maingueneau funda-se no interdiscurso, cuja marca predominante é a heterogeneidade. Embora percorra o arcabouço teórico que gravita em todo do tema, com especial ênfase em Bakhtin, o autor se preocupa com caráter elusivo do termo interdiscurso, propondo “substituí-lo por uma tríade: universo discursivo, campo discursivo, espaço discursivo” (2008, p. 33). O primeiro, mais amplo, é o “conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem numa conjuntura dada” (2008, p. 33). Sendo, assim, um “conjunto finito”, todavia não apreensivo em sua totalidade. Campo Discursivo, por sua vez, é um recorte no universo discursivo – subdivisões do universo, composto por “um conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo” (2008, p. 34). Já os espaços discursivos são estabelecidos pelo analista a partir do relevo de subconjuntos de formações discursivas isoladas de um determinado campo discursivo. Estabelecer tal restrição pressupõe do analista um conhecimento de textos e um saber histórico que só o desenvolvimento da pesquisa poderá validar (2008, p. 34). Por fim, observa-se que há uma relação de continente/conteúdo entre os elementos desta tríade, sendo o universo discursivo o continente de campos discursivos, dos quais se podem desagregar espaços discursivos.
No corpus de análise, o universo discursivo consubstancia-se na relação religião/estado, albergando uma globalidade de documentos que demandam apreciação no plano vertical – exame do percurso histórico do desenvolvimento da religião e do estado; bem como o plano horizontal – estudo das políticas que importaram na ruptura da relação estado/religião católica, em especial a instauração do regime republicano, que objetivou sepultar esta união. Já no campo discursivo importaria destacar os Estados Republicanos que em suas Constituições estabeleceram o princípio da laicidade e, nos quais se ascendeu polêmica semelhante ou idêntica à em tela. Neste sentido, destacam-se os Estados Unidos, a França, a Itália, a Alemanha e o próprio Brasil[3]. Por fim, o espaço discurso limitaria a abortar documentos afeto ao Direito Constitucional pátrio contemporâneo, mas especificamente ao princípio da laicidade do estado esculpido no art. 19, inciso I, da Constituição Federal de 1988[4] - CF/88, bem com as reverberações desta norma na ordem jurídica e jurisdicional pátria (com especial ênfase a exterioridade que envolveu da decisão do CNJ sob análise).
Em um segundo momento, Maingueneau argumenta pela existência de uma competência discursiva, todavia não a reconhece como inata ou universal. Tal competência reside na capacidade do enunciador “reconhecer enunciados [...] como pertencentes a sua própria formação discursiva” e “ser capaz de produzir um número ilimitado de enunciados inéditos pertencentes a essa formação discursiva” (2008, p. 54). Nesta mesma conjuntura apresenta a perspectiva de uma semântica global, regente da intertextualidade (interna e externa), bem como dos temas (modo de tratar os temas). Há este tempo pontua que a enunciação conjectura o estabelecimento de uma dêixis espaçotemporal, que “define de fato uma instância de enunciação legítima, delimita a cena e a cronologia que o discurso constrói para autorizar sua própria enunciação” (2008, p. 89).
Para demonstrar esses modelos teóricos, Maingueneau construiu complexos quadros comparativos, que de forma simplificada e aplicada ao corpus especifico analisado[5] passa-se a elaborar. De fato, a polêmica sob análise reside na dimensão semiótica do signo ‘crucifixo’ afixado em prédios públicos (em especial tribunais) em confronto ao princípio da laicidade de estado (art. 19, I da CF). Os argumentos contrários à presença dos crucifixos podem ser extraídos do sema primitivo confessional (signo representativo da religião católica), já os favoráveis do sema primitivo secular (caráter transcender ao religioso), a estes outros se agregam, nos termos do quadro que se segue:
Semas Primitivos |
Confessional |
Secular |
Espaço |
Apropriação apropriação indevida do espaço público por interesse privados |
Interesse Público interesse culturalmente solidificado – sociedade |
Constitucionalidade |
Laicidade (art. 19, I da CF/88) Princípio Republicano consagra a separação do estado e religião |
Cultural, Tradicional e Transcendente símbolo próprio da cultura brasileira, tradicionalmente presente nos tribunais e transcendente de valores religiosos específicos |
Legitimidade das Decisões Judiciais |
Suspeição e Discriminação a presença do símbolo compromete a imparcialidade do judiciário, bem como caracterizaria ofensa e preconceito a outras religiões o ao ateísmo |
Respeito, Homenagem e Não-Submissão o símbolo representa o respeito ao ambiente e a nobre atividade do magistrado, bem como não há qualquer evidência de submissão à Igreja Católica |
Administração Pública |
Clerical e Particularista representa um comportamento da Administração vinculada à confissão religiosa específica, contrário, portanto, ao princípio da impessoalidade da administração |
Autonomia especialmente neste tópico reconhece a autonomia administrativa do poder judiciário como fator viabilizador da manutenção dos crucifixos |
Por último, convém ressaltar a tese da “polêmica como interincompreensão” (2008, p. 99 e ss). Maingueneau apresenta o espaço discursivo com uma “rede de interação semântica” responsável por um “processo de interincompreensão generalizada”. Neste as posições enunciativas desempenham um duplo papel: enunciar de conformidade com sua própria formação discursiva e simultaneamente “‘não compreender’ o sentido dos enunciados do Outro” (2008, p. 99). No corpus analisado o signo crucifixo é o centro deste processo de interincompreensão, vez que para os contrários a sua manutenção nos tribunais ele representa o caráter confessional católico-cristão, ofensa aos princípios da laicidade do Estado e da liberdade de religião. Todavia, para os favoráveis o signo tem caráter transcende ao religioso, portanto compatível como o estado laico e tolerante à diversidade religiosa.
[1] Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estadual de Londrina – UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. Professor do Curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá - UEM. Advogado.
[2] MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Tradução Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
[3] Nos Estados Unidos a 1ª Emenda, denominada anti-establishment clause, estabeleceu que o Congresso não pode elaborar leis estabelecendo uma religião. Deste estatuto decorrem inúmeros embates visíveis na jurisprudência americana, como, por exemplo, a proibição, em escolas públicas, do ensino do criacionismo em contraposição ao evolucionismo. Na França a discussão teve como foco o porte do véu islâmico (hijab) por alunas muçulmanas em escolas públicas. A Comissão Stasi acabou por aprovar legislação que proibiu ostentação de signos religiosos em repartições públicas. Na Itália, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos considerou a presença de crucifixos em escolas públicas italianas uma violação à liberdade religiosa e educacional. Por fim, na Alemanha, a corte suprema entendeu que a presença de crucifixos nas paredes das salas de aula representaria ofensa ao princípio da liberdade religiosa.
[4] Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
[5] Decisão do Conselho Nacional de Justiça – texto anexo.