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A Justiça e o Direito da Rússia:

reflexos da globalização

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Agenda 01/02/2003 às 00:00

3 – A EVOLUÇÃO DO DIREITO RUSSO

Conhecidos o país e sua História, passemos ao Direito russo e sua evolução.

DAVID (1996) divide a história do Direito russo (até o período socialista inclusive, pois seu livro foi escrito na época socialista) nos seguintes períodos:

a) o da Russkaia pravda

b) o Período do Domínio Mongol

c) o do Código de 1649

d) o de Pedro, o Grande, e seus Sucessores

e) o do Zvod Zakonov

f) o Soviético (ou Socialista).

f.1) de 1917 a 1936

f.1.1) de 1917 a 1921

f.1.2) de 1921 a 1928

f.1.3) 1928 a 1936

f.2) de 1936 em diante.

A classificação de DAVID tem cunho meramente didático, para facilitar a compreensão. É questionável, mas iremos segui-la, pois não encontramos outra melhor. Apenas, incluímos nela o período federativo, ou seja, posterior a 1991.

3.1 – A RUSSKAIA PRAVDA (3)

No início da vida do país o Direito se resumia a normas costumeiras das quais não se tem sequer notícias, sendo que somente em 1017 é que se resolveu inscrever essas regras num documento que foi chamado de Russkaia Pravda (ou Pravda Russkaia).

KARAMZINE (?:t.5 p. 355) fala desse período histórico com orgulho, comparando o progresso da Rússia com o atraso geral da Europa no século XI:

Esse tempo feliz para a Rússia é o de Iaroslav, o Grande. Plena de segurança, para o cristianismo, para a ordem pública, possuía o ensino religioso, escolas, leis, um comércio importante, exército numeroso, uma frota, a unidade do poder e a liberdade civil. O que era a Europa no início do século XI? O teatro da tirania feudal, da fraqueza dos soberanos, da audácia dos barões, da escravidão dos povos, da superstição, da ignorância.

LAMARE (1997:52) informa com a elegância do seu estilo:

O Príncipe Iaroslavo... em 1017 elaborou um código: a ‘Pravda Rousskaia’, onde estariam definidos direitos e deveres da população. É instituída a pena de morte para os chamados ‘crimes de sangue’. Iaroslavo ensaiava organizar uma sociedade de castas sociais, de altos dignatários e escravos, criando códigos que não faziam parte dos costumes dos clãs.

DAVID (1996:147/148) descreve esse período com riqueza de detalhes e segurança que o caracterizam:

Os tempos históricos começam na Rússia apenas no século IX, quando a tribo dos Varegues, vinda aparentemente da Escandinávia, dirigida pelo seu chefe Riourik, estabeleceu no ano 862 o seu domínio na Rússia de Kiev. O Estado assim criado durará até 1236, ano em que será destruído pelos mongóis. O acontecimento mais importante da sua história é, em 989, a sua conversão ao Cristianismo, no reinado de São Vladimir. Tal como acontecera no ocidente, sente-se, nessa fase histórica, a necessidade de redigir por escrito os costumes, tendo como principal objetivo fazer penetrar nestes, pelo poder mágico da escrita, a influência da Igreja. Os costumes russos da região de Kiev são redigidos na primeira metade do século XI; ainda que com numerosas variantes, os costumes do século XI ao século XIV encontram-se em compilações que receberam o nome genérico de Russkaia pravda (o direito russo). Redigidas em eslavo, descrevem-nos uma sociedade em geral mais evoluída que as sociedades tribais germânicas ou escandinavas na época da redação das "leis bárbaras". O direito a que aludimos tem uma natureza territorial e não tribal, e os seus preceitos denotam a influência do regime feudal.

Ao lado do direito costumeiro indígena exposto na Russkaia pravda, o direito bizantino assume uma particular importância na Rússia de Kiev. A Igreja, que vive no Ocidente segundo a lei romana, rege-se, efetivamente, na Rússia, segundo o direito bizantino, representado pelos "Nomocanons", que compreendem, na sua regulamentação, direito civil (relativo à sociedade civil) e direito canônico. O direito bizantino tem, na Rússia de Kiev, uma grande importância: a Igreja aplica-o diretamente aos clérigos, nos vastos domínios territoriais que a ela pertencem ou onde exercem a sua jurisdição. Por outro lado, alarga o âmbito de aplicação deste direito pela via da arbitragem e pelas diversas infriltações do referido direito na redação dos costumes.

DAVID (1954) fala da Russkaia pravda em obra específica sobre o Direito soviético dizendo:

Ela contém essencialmente o Direito Penal e o Processo; poucos de seus artigos dizem respeito às relações patrimoniais; não se encontram, nesse texto legal, definições gerais nem um plano bem rigoroso. (p. 17)

Afirma nesse mesmo livro a existência de outras regras jurídicas além da Russkaia pravda, que coexistiam:

Ao lado da Russkaia pravda, que constitui o Direito laico da Rússia existe, de outra parte, um outro Direito, extremamente importante que aí reina, ou seja, o Direito Canônico. Como em outros países do Ocidente, o Direito Canônico é, na Rússia, uma das fontes essenciais que contribuíram para a formação do Direito nacional; [...] o Direito Canônico é, na Idade Média, um direito que se aplica em situações muito freqüentes e as mais variadas. [...] O Direito Canônico que é aplicado na Rússia é, todavia, um direito diferente daquele que nós conhecemos no Ocidente. É o Direito Canônico de Bizâncio. Este, representado por uma série de Nomocanons (notadamente o Nomocanon do patriarca Photius, que data de 883). (p. 19/20)

Logo adiante, esclarece que os nomocanons contém ao mesmo tempo Direito Civil (nomos) e Direito Canônico (cânon) para que os clérigos possam conhecer, ao consultarem uma única coletânea todas as disposições às quais estão submetidos e que eles devem aplicar. A Igreja russa vive conforme o Direito Canônico, e o Direito Bizantino vem assim a desempenhar um grande papel na Rússia. [...] enquanto que a Russkaia pravda representa o Direito Costumeiro, o Direito Canônico bizantino representa um tipo de Direito escrito, que se aplica em determinados domínios e que, pelo fato de sua superioridade técnica, exerce nos outros domínios uma influência. A recepção do Direito bizantino não foi total na Rússia. As leis gregas não foram nesse país aplicadas integral e indiscriminadamente. Mas o Direito bizantino, é isso que importa notar, constituiu desde o começo, aos olhos da Igreja russa, o corpo de Direito ideal próprio para inspirar a reforma dos costumes russos. [...] os Nomocanons gregos, traduzidos para o eslavo, tiveram uma importância considerável na Rússia. A partir do começo do século XIII deu-se-lhe o nome de Kormtchaya Kniga ou, por abreviação, simplesmente, Kormtchaya, o que significa simplesmente guias [...] Existem numerosos manuscritos que contém Nomecanons, o mais freqüentemente, outros monumentos, puramente civis, de Direito bizantino: Écloga de Leon o Isauriano (740), Prochiron de Basile o Macedônio (890). As Basílicas (900), ao contrário, não parecem ter sido jamais utilizadas na Rússia.

3.2 – O PERÍODO DO DOMÍNIO MONGOL

Com a invasão mongol nos territórios atualmente pertencentes à Rússia, uma alteração muito grande houve para pior, de vez que os mongóis eram muito mais primitivos que os russos e se alguma influência tiveram foi apenas retardando o desenvolvimento cultural e social conseguido a duras penas e isolando a Rússia do contato com o Ocidente.

DAVID (1996:148/149) descreve esse período assim:

Um segundo período se abre na história da Rússia com o domínio mongol (A Horda de Ouro) em 1236. Este domínio terminará apenas no reinado de Ivã III, em 1480, depois de uma guerra de libertação que durou cem anos. As suas conseqüências políticas não deixaram de se fazer sentir até os nossos dias. Estas conseqüências são, por outro lado, a elevação de Moscou, que sucede a Kiev. E sobretudo, por outro, o isolamento russo em relação ao ocidente; este isolamento apenas terminará quando a Rússia, separada dos seus vizinhos ocidentais pela sua religião ortodoxa, tiver reconquistado a sua independência. O cisma com Roma consumou-se depois de 1056. O império de Bizâncio deixou de existir. A Rússia, recuperada a sua independência, encontrar-se-á isolada, e considerar-se-á como "a terceira Roma", herdeira de Bizâncio na luta pela propagação da verdadeira fé.

Do ponto de vista estritamente jurídico, o domínio mongol, qualquer que tenha sido a sua duração, teve uma influência mais negativa do que positiva. O direito russo sofreu poucas influências do costume mongol (yassak), que nunca foi imposto ao povo russo. A ocupação mongol foi apenas um fator de estagnação das instituições jurídicas e, concorrendo decisivamente para um reagrupamento dos fiéis junto de seus pastores, uma causa do desenvolvimento da influência do clero e do direito bizantino.

Algumas inovações importantes, no entanto, surgiram durante o período da influência mongol, tendo David (1954) mencionado as seguintes: um artigo da lei estipulava que as somas em dinheiro, sobre a qual versasse o litígio, não podiam ser acrescidas de juros, o que fazia supor, segundo o mesmo autor, um estado de civilização em que o empréstimo de dinheiro era uma operação corrente. (p. 25) além de um outro que ele aborda que é o seguinte: a lei nova fixa a tarifa mínima dos salários que deverão ser pagos aos trabalhadores livres pelos empregadores, fornecendo assim um primeiro exemplo de proteção do trabalho e de dirigismo. (p. 25) Logo adiante menciona aqueles que consideram que o sistema russo administrativo, fiscal, militar foi diretamente emprestado aos mongóis (p. 26), dizendo, todavia, logo em seguida que essa afirmação não é aceita por todos.

3.3 – O CÓDIGO DE 1649

O Direito russo vinha evoluindo precariamente com o texto da Russkaia pravda até que em 1649 surgiu um texto novo cognominado de Sudebnik. (4)

DAVID (1954:28/29) esclarece magistralmente:

No tempo da Rússia de Kiev a Igreja tinha sido o fator essencial do desenvolvimento do Direito. Após o período de dominação mongol, o desenvolvimento do Direito russo vai ser dirigido, agora, pela vontade toda-poderosa dos czares autocratas de Moscou. [...] É necessário notar a importância da religião no estabelecimento da unidade russa. Ela é de natureza a aumentar a importância do Direito Canônico na sociedade russa. No começo, o grande príncipe de Moscou consente em respeitar os Direitos particulares das diversas províncias que lhes são sucessivamente submetidas; ele se esforça somente em apresentar esses Direitos particulares como emanando dele próprio e não como existindo em virtude de uma tradição anterior. Pelo Livro da Justiça (Sudebnik) que ele promulga em 1497, Ivan III Vassilievitch se esforça assim por mostrar que ele controla tudo dentro do seu Império e que todas as regras ou privilégios existem com o seu consentimento; pouco importa que se tratem de regras novas ou antigas, o essencial é afirmar o princípio de que mais tarde poder-se-á tirar as conseqüências que ele quiser.

LAMARE (1997:61) informa sinteticamente que nesse período foi editado um novo Código:

Em 1549,...foi igualmente criado um novo código, o ‘sudebnik’, através do qual o czar dá continuidade e coordenação à obra administrativa do avô, Ivan, o Grande.

As leis se colocam a serviço da unidade nacional e há uma estrita hierarquia judiciária, submetida à Corte Suprema de Moscou. A eleição dos juízes é feita pela comunidade, com a definição precisa de penas e delitos. Suprime-se, em se regulando, os poderes exagerados da nobreza.... Pela reforma administrativa, cria-se um mecanismo de representação, ligado ao sistema eletivo, permitindo a escolha de representantes da população.

Mais adiante a elegante jornalista (p. 61) acrescenta:

As reformas atingem a Igreja, com o "Código dos Cem Capítulos", publicado durante o Concílio de 1551. O documento se caracteriza pela rigidez das normas de conduta, desde a obrigatoriedade do uso da barba para os homens até a regulamentação da pintura de ícones. O padre Silvestre, fiel assesor do czar, escreve o "Domostroi", um conjunto de regras severas elaboradas para disciplinar a vida dos russos.

Páginas adiante (68) fala sobre o surgimento do código conhecido como ulojenie:

Sob o reinado de Alexei I, sucessor de Mikhail,... em 1649, a ‘zemski sobor’ publica um novo código, o ‘ulojenie’, que retoma o essencial do código de Ivan IV e proíbe as migrações campesinas, fixando o camponês de finitivamente à terra.

DAVID (1954:38) esclarece que o Código de 1649 (ulojenie) era composto de 25 capítulos, divididos em artigos, comportando ao todo 963 artigos, mencionando especificamente o capítulo X, intitulado "da jurisdição", que apresenta normas de Direito Penal, Direito Civil, organização judiciária e Direito Processual, estas últimas esparsas dentro do texto, com o detalhe, afirma DAVID, de ser todo o texto redigido em russo.

DAVID (1996:149) caracteriza esse período assim:

Um terceiro período da história e do direito russos vai desde o final da dominação mongol até a subida ao trono de Pedro, o Grande (1689). A Rússia continuava voltada para si própria. Submete-se ao regime despótico dos czares para escapar à anarquia e preservar a sua independência contra as agressões vindas do Oeste; a servidão é instituída em 1591. A própria Igreja, privada de todo o apoio externo, está subordinada ao czar. Cria-se a convicção da onipotência dos governantes, de cujos caprichos são feitas leis. Polícia, justiça e administração mal se distingue num regime em que sobressai uma ligação rotineira ao costume, sob reserva do arbítrio ocasional do czar, dos nobres ou administradores locais. Nenhum esforço sistemático foi realizado, por parte dos czares, para reformar a sociedade. Quanto muito podem citar-se a esse respeito, como sintoma revelador de um esforço de reorganização da justiça, os Livros de Justiça (Sudebnik) de 1497 e de 1550. Os subsídios mais importantes para a história do direito deste período são as compilações que procuram criar novas edições da Russkaia pravda e do direito bizantino (Kormtchaia). É particularmente importante, neste aspecto, a obra realizada no reinado do segundo czar da dinastia dos Romanov, Alexis Mikhailovitch. Graças à iniciativa desse soberano levou-se a cabo a codificação do direito laico e do direito canônico da Rússia. O primeiro encontra a sua expressão no código de Alexis Mkhailovitch (Sobernoe Ulojenie) de 1649, em 25 capítulos e 963 artigos. O segundo incluiu-se numa edição oficial da Kormtchaia de 1653, que substitui uma obra anterior inserida nos Cem Capítulos (Stoglav) de Ivã, o Terrível (1551).

3.4 – O PERÍODO DE PEDRO, O GRANDE, E SEUS SUCESSORES

Com ou sem razão, Pedro I, foi cognominado o Grande, o mesmo acontecendo com sua descendente, Catarina II, afirmando a maioria dos historiadores que na época desses dois czares o país experimentou um surto de progresso como nunca tinha ocorrido antes. Deve-se notar que nesses períodos foi grande a aproximação da Rússia em relação aos países da Europa Central, onde, no geral, o progresso das idéias sempre foi maior a partir de uma determinada época.

A obra reformadora de Pedro I chamou a atenção de todo o mundo civilizado da época, a ponto de posteriormente VOLTAIRE ter escrito um livro sobre o reinado do famoso czar, valendo a pena conhecer o que ele disse sobre o seu trabalho legislativo:

HISTÓRIA DO IMPÉRIO DA RÚSSIA - SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO XIII. Das leis

Sabe-se que as boas leis são raras, mas que sua execução o é ainda menos. Quanto mais um Estado é vasto e formado de diversos povos, mais é difícil uni-los por uma mesma legislação. O pai do czar Pedro tinha feito redigir um código sob o título de "Ulojenie"; foi impresso, mas seria necessário muito mais do que isso.

Pedro tinha, em suas viagens, coletado materiais para realizar essa grande obra que absorveu influência de várias fontes: colheu subsídios da Dinamarca, Suécia, Inglaterra, Alemanha, França, tomando dessas diferentes nações tudo aquilo que convinha ao seu país.

Tinha ele uma Corte de nobres que decidia em última instância os processo contenciosos; o "status" social e o nascimento era levados em conta, era necessário que o nível de instrução de cada um fosse valorizado: essa Corte foi extinta.

Criou um cargo de procurador geral, junto do qual foram criados quatro cargos de procuradores para cada um dos setores do Império: eles foram encarregados de fiscalizar os julgamentos dos juízes, cujas sentenças eram encaminhadas em grau de recurso ao Senado; cada um desses juízes recebeu um exemplar da Ulojenie, com os acréscimos e mudanças necessários, no aguardo de um futuro Código.

Proibiu a todos esses juízes, sob pena de morte, receber aquilo que nós chamamos de "presentes": elas são modestas entre nós; mas seria bom que isso nunca acontecesse. As grandes despesas da nossa justiça são os salários dos funcionários, a multiplicidade dos documentos, e sobretudo o costume oneroso, nos processos, de compor as linhas de três expressões, e gastar a fortuna das pessoas em uma quantidade enorme de papéis. O czar fez questão de que as custas fossem pequenas, e a justiça rápida. Os juízes, os escrivães, passaram a receber seus vencimentos do Tesouro Público.

Isso aconteceu principalmente no ano de 1718, enquanto ele instruía solenemente o processo de seu filho, ocasião em que ele redigiu esses regulamentos. A maior parte das leis que ele editou foram inspiradas na legislação da Suécia, e ele não encarou como dificuldade admitir os tribunais os prisioneiros suecos conhecedores do direito daquele país, e que, tendo aprendido a língua russa, quiseram ali permanecer.

As causas dos particulares devem ser ajuizadas nas suas próprias províncias; após o primeiro julgamento pode-se apelar para o Senado, e se alguém, após ser condenado pelo Senado, pode apelar ao próprio czar, mas, mantendo o czar a condenação, o recorrente era condenado à morte; mas, para temperar esse rigorismo legal, ele nomeou um funcionário para relacionar todos os processos que tramitavam no Senado ou nos tribunais inferiores, esclarecendo sobre os casos em que a lei não era muito clara.

Enfim, ele editou, em 1722, o novo código, em que ele proibia, sob pena de morte, a todos os juízes de decidir de forma contrária ao código e de seguir suas opiniões particulares ao invés da lei. Essa ordenança terrível foi dada ao conhecimento público, e é aplicada ainda hoje nos tribunais do Império.

Ele criou tudo. Não havia até então nada que não fosse obra sua. Regulamentou as classes sociais, segundo seus "status", desde o Almirante e o Marechal até o professor, sem nenhuma consideração pelo nascimento, mas sim pela competência de cada um, querendo ensinar aos seus súditos, que a inteligência é preferível ‘a árvore genealógica. As classes foram assim fixadas para as mulheres, e quem quer que, numa Assembléia, tomava lugar indevidamente tinha que pagar uma multa.

Para uma legislação mais útil, todo militar que chegasse a oficial se tornaria nobre, e todo nobre punido pela justiça perderia o título de nobreza.

Com a edição dessas leis e regulamentos, desenvolveu-se o comércio, cresceram as cidades, aumentaram as riquezas, a população do Império, surgiram novas empresas, criaram-se novos empregos, apareceram necessariamente novos negócios e situações imprevisíveis, tudo isso em conseqüência do sucesso de Pedro na reforma geral do seu país.

A imperatriz Elisabeth completou a legislação que seu pai tinha começado, sendo essas leis repassadas pela doçura do seu reinado.

LAMARE (1997:106), que viveu na Rússia na década de 1990, e conhece a História do país não só pelos livros, mas vendo o dia-a-dia dos russos do período federativo, indigna-se com o que viu e ouviu falar da dura realidade dos camponeses, (mujiques):

As punições corporais faziam parte da sua rotina e eram aceitas como um mal necessário imposto pela autoridade dos proprietários de terra. A opressão se distinguia, de maneira geral, menos pelos abusos do pela inerente arbitrariedade por eles usada na hora de decidir sobre o trabalho e a vida do mujique.

A ilustre escritora (p. 120) entusiasma-se com a visão humanística de Catarina II, a Grande:

A obra de Catarina II consideraria sua grande criação e que ela escreveu do próprio punho seria o ‘Nakaz (5) (Instrução), tendo em vista a elaboração de um Código de leis’. Até então a Rússia usava o mesmo Código elaborado por Alexei I, o ‘Ulojenie’, que havia sido retocado por Pedro, o Grande, por Ana Ivanovna e pela própria Catarina. Para escrevê-lo a imperatriz se inspirou em Voltaire e Montesquieu e confessava em uma carta escrita a D’Allembert que havia pilhado o autor do ‘Espírito das leis’ (Montesquieu) e plagiado sua obra para ‘o bem de 20 milhões de homens’. Outro que serviu de inspiração para o ‘Nakaz’ foi o ‘Tratado de delitos e penas’ publicado em 1764 pelo jurista italiano Beccaria.... Embora não tenha sido posto em prática com sua publicação em 1767, o ‘Nakaz’ circulou amplamente entre a elite russa, com idéias sobre política e sociedade que circulavam nos meios europeus.

A escritora brasileira (p. 127) mostra que, aproveitando a abertura política desenvolvida por Catarina II, Aleksandr Radichev esboçou uma constituição republicana para a Rússia, que, diga-se a verdade, se não foi convertido em lei, serviu de base para elaborações futuras.

VON GRUNWALD (1978:63), falando sobre Catarina II, diz:

Ela queria aplicar as idéias de Beccaria, expostas no seu tratado sobre o crime e o castigo, a um povo com 90 por cento de servos – uma intenção que estava condenada ao fracasso desde o início. As suas esclarecidas ordens para a elaboração de um novo código de leis conseguiram convencer Voltaire e outros filósofos franceses de que essa obra iria quebrar as correntes dos camponeses russos. Na verdade a comissão nomeada para a elaboração do código, após alguns anos de discussões inúteis, desmembrou-se sem ter obtido o mínimo resultado.

DAVID (1996:149/150) dá notícia desse período assim:

O quarto período da história do direito russo vai desde o aparecimento de Pedro, o Grande, em 1689 até a revolução bolchevista de 1917. A Rússia retoma o contato com o Ocidente. Pedro, o Grande, e os seus sucessores dotam a Rússia de uma administração do tipo ocidental; mas os seus esforços não abrangem o direito privado e, por esse motivo, são superficiais. O povo russo continua a viver segundo os seus costumes, dominado apenas por uma administração mais eficaz, cujo poder se habitual a respeitar. Os dois grandes soberanos russos do século XVIII, Pedro I e Catarina II, fracassaram, ambos, no projeto de revisão do código de Aléxis II para adotarem, o primeiro, um código de modelo sueco, a segunda um código inspirado nas doutrinas da escola do direito natural.

No seu livro sobre o Direito soviético DAVID (1954) afirma:

O Direito russo, no momento em que findou o século XVII, estava em estado lamentável. Os documentos essenciais nos quais estava contido, Código de 1649 e Kormtchaya de 1653, estavam antiquadas e desde sua data, numerosos monumentos legislativos, que não se sabia mais onde encontrar, tinham vindo modificar o Direito; a sociedade russa, de outra parte, sobretudo, depois do reinado de Pedro o Grande, tinha se transformado consideravelmente, e as regras editadas 150 anos atrás estavam, em grande parte, ultrapassadas e não convinham mais.

3.4.1 – O ZVOD ZAKONOV (ou SVOD ZAKONOV)

LAMARE (1997:138) diz que no reinado de Nicolau I, Speranski ensaiaria uma codificação de leis e inclusive foi editado um Código penal que listava crimes cometidos contra o Estado.

LAMARE (1997:195) dá notícia da edição do primeiro Código Penal:

O Código de Leis de 1832, elaborado pelo ministro Speranski, terminou por ser modificado, e o resultado se transformou no Código de 1845, redigido por Bludov, que não só reforça o regime autoritário czarista como passa a considerar crime qualquer tentativa de limitar os poderes do soberano.

DAVID (1954) ressalta a atuação extremamente importante do conde Mikhail Speranski na elaboração tanto legislativa quanto doutrinária do século XIX, pois que, tendo sido encarregado pelo czar Alexandre I de elaborar um Código Civil para a Rússia, redigiu um texto baseado no Código Civil francês de 1804, mas, quando Napoleão invadiu a Rússia, ficou sem condições de convencer o Conselho Imperial a aceitar aquele texto, porém, já quando era czar Nicolau I, foi novamente encarregado de elaborar um Código, com a advertência clara do czar de que tal texto deveria ser apenas uma compilação do que já existia na Rússia em termos legislativos, sem poder inovar, mas Speranski e sua equipe contrariaram essa ordem, elaborando uma compilação, porém acrescentando uma série de regras novas, principalmente em Direito Civil.

(Fica a indagação sobre que rumo teria seguido o Direito russo se Napoleão Bonaparte não tivesse invadido a Rússia e se, por via de conseqüência, Speranski tivesse conseguido concretizar seu sonho francófilo.)

Tratava-se essa compilação do texto conhecido como Zvod Zakonov, em que havia uma divisão das normas de Direito Público e Direito Privado, sendo estas últimas divididas em três grupos: Direito de Família, Direito Patrimonial e Direito Processual, este último também dividido em três subgrupos: normas de jurisdição graciosa, normas de procedimento ligitioso e normas sobre execução.

Esse texto legal perdurou até 1917, sendo dividido em 8 Livros, 6.000 artigos, contidos em 15 volumes, sendo os 4 primeiros Livros versantes sobre matérias de ordem pública, o Livro V contendo as leis civis, o Livro VI contendo as regras de Direito Comercial, o Livro VII trata do Direito Administrativo, e o Livro VIII é consagrado ao Direito Penal. Posteriormente, surgiu um 16º Tomo, em 1885, promulgado pelo czar Alexandre I, que tratava das "ordenanças sobre os tribunais".

DAVID termina sua abordagem sobre o Zvod esclarecendo que:

A "Compilação completa" que tinha permitido a edificação de uma ciência da história do Direito russo. Pode se dizer que a Compilação do Direito russo permitiu a edificação de uma Ciência do Direito russa moderna, fornecendo uma base sólida sobre a qual os autores puderam tentar estabelecer, n Direito russo, clareza e sistema. (p. 43/50)

LAMARE (1997:177) trata da edição da primeira Constituição russa:

Assim foi dada a primeira Constituição e o primeiro Parlamento aos russos. Sem nenhuma convicção por parte do governo, a não ser a crença de que poderia abafar o ruído surdo das ruas. O Manifesto de 30 de Outubro de 1905 transformava a Rússia de uma autocracia absoluta em uma monarquia semiconstitucional, tardiamente, para um povo não acostumado com ‘a liberdade de consciência, de discurso, de assembléia e de associação’.

DAVID (1996:150) faz um breve retrospecto do Direito russo no século XIX e início do século XX:

O movimento de modernização do direito russo, inspirado pelo movimento francês, iniciar-se-á apenas no início do século XIX, no reinado de Alexandre I, com o seu ministro Speranski. Mas a ruptura com Napoleão e a reação que se seguiu impediram seu êxito, fazendo com que, no reinado de Nicolau I, se consiga apenas uma nova "consolidação" e não a codificação e modernização do direito russo. A coletânia da legislação russa em vigor, a partir de 1832, é conhecida pela designação de Zvod Zakonov. Consta de 15 volumes e 42.000 artigos, que se elevarão de 100.000 nas sucessivas edições; dois terços destes artigos dizem respeito a matérias de direito público. O Zvod Zakonov, pelo seu conteúdo eclético, pelo seu método casuístico e pelo seu espírito, assemelha-se mais ao Allgemeines Landrecht prussiano de 1794 do que à codificação napoleônica. Nicolau I havia determinado que se procedesse à ordenação e sistematização das leis russas, mantendo inalterado o seu conteúdo. Estas instruções não foram, certamente, seguidas à letra pelo Conde Speranski, a quem se deve o mérito desta compilação. Apesar disso, pode-se dizer que, de um modo geral, da Russkaia Pravda ao código de 1649 e deste ao Zvod Zakonov de 1832, é sempre uma obra de compilação e de exposição que se conclui e nunca uma obra simultaneamente de reforma e de modernização. Só na segunda metade do século IXX, no reinado de Alexandre II se desenvolveu um movimento liberal de reforma. Este movimento, marcado principalmente pela abolição da servidão (1861) e pela reforma da organização judiciária (1864), dá à Rússia um Código Penal (1855 – revisto em 1903), mas nunca lhe dará um Código Civil, cujo projeto será apenas estabelecido.

Verdadeiramente, o Direito russo alcançou um desenvolvimento maior no século XIX, quando Speranski tinha todo o apoio do czar, somente não alcançando resultados mais expressivos pela sua perda de prestígio, devida, primeiramente à invasão napoleônica nos territórios russos, gerando a antipatia dos russos pelas idéias francófilas de Speranski, e, também, pela intriga bem sucedida de seus adversários políticos, ocasionando o seu exílio.

A partir daí, o Direito evoluiu rapidamente.

DAVID (1996:150) conclui:

Tal era a situação em 1917, quando se estabeleceu o regime bolchevista.

3.5 – O PERÍODO SOVIÉTICO

Quanto aos períodos anterior e posterior à revolução socialista (antes de 1917- depois de 1991) é fácil entender a ideologia de um país antes dominado pelo regime absolutista dos czares e agora vivendo o capitalismo mais declarado.

Para se conhecer o Direito de um país que se rege por uma Constituição deve-se conhecer essa Constituição.

Há condições de conhecer as Constituições russas (em inglês) de:

- 1918 no endereço: http://www.departments.bucknell.edu/russian/const/1918toc.html

- de 1936 no endereço:http://www.departments.bucknell.edu/russian/const/1936toc.html

- de 1977 no endereço: http://www.departments.bucknell.edu/russian/const/1977toc.html

- de 1993 (em vigor) no Apêndice deste livro (esta em português).

Antes de se falar no Direito soviético tem-se de conhecer o que seja o marxismo-leninismo, pois essa ideologia foi o eixo em torno do qual gravitou a Direito naquele período.

A ENCICLOPÉDIA JURÍDICA LEIB SOIBELMAN comenta sobre a concepção marxista do Direito:

O marxismo não considera o direito como uma categoria ideal, objetiva, normativa ou metafísica, nem mesmo autônoma. Para o marxismo não existe filosofia ou ciência do direito, porque o jurídico não encontra explicação em si mesmo. O direito só pode ser compreendido através da análise da realidade econômico-social de uma coletividade em determinada época da história. O que se chama "normatividade" do direito não passa de ser um reflexo das condições de vida material da sociedade, uma forma que recobre o conflito que existe em toda sociedade de classes, entre o modo de produção e as forças de produção. A luta de classes é o verdadeiro motor que impulsiona a formação do direito. O direito não evolui nunca, o que evolui é o modo de produção social, não se podendo falar em evolução do direito romano, medieval ou moderno, mas tão-somente em sistemas diversos de propriedade: escravidão, servidão, capitalismo. As transformações sociais sempre foram seguidas servilmente pelas transformações do direito. Todas as divergências doutrinárias entre juristas pouco adiantam à humanidade no caminho de uma justiça perfeita, porque esta só será conseguida numa sociedade sem classes, que o proletariado irá instaurar de futuro, e também porque essas discussões não afetam a infra-estrutura social, não passam de ser ideologia de um regime de produção. Não se pode descrever uma história do direito ou fazer direito comparado, porque o direito não é norma mas apenas relação entre forças de produção antagônicas. O conteúdo do direito nunca é "jurídico", mas econômico, político ou social. O direito é sempre uma forma desse conteúdo e inexplicável sem ele. É uma forma de opressão socialmente organizada, que se revela com toda clareza nos choques entre classes que pretendem o poder. É a ideologia da classe dominante, sem nenhum valor transcendental. É a forma de impor a uma sociedade um determinado modo de produção. Não existe justiça que não seja de classe, porque a fonte de todo direito é a vontade da classe dominante. Essa vontade também não é livre, mas submetida ao jogo dialético das forças sociais. Uma classe quando toma o poder, usa da violência para instituir o seu direito, mas esse uso não é arbitrário, mas condicionado e determinado por imposições da própria realidade social, e esse direito assim instituído não é obedecido pela maioria por ser mais "justo" que o interior, mas porque reflete uma nova e mais adiantada acomodação entre as classes sociais. Só há um momento em que o direito representa os interesses de toda a sociedade: é quando a classe revolucionária toma o poder. Mas logo depois da tomada do poder, tanto pela burguesia como pelo proletariado, o direito retoma o seu caráter classista. Só na sociedade socialista do futuro é que desaparecerão tanto o Direito como o Estado, passando a haver apenas uma administração ou governo das coisas. Direito e Estado surgiram quando a sociedade se dividiu em classes e desaparecerão com a extinção delas. A ditadura do proletariado, na revolução socialista, é apenas uma fase transitória que serve ao proletariado para fortalecer o seu domínio, mas como ele irá instituir a sociedade sem classes, não terá mais razão de ser a existência do Direito e do Estado, que sempre serviram de instrumento de exploração de uma classe contra outra, e sendo ele a maioria da nova sociedade, não irá explorar a si mesmo. Não tem sentido a discussão sobre Estado de Polícia e Estado de Direito na sociedade burguesa, porque nesta todo estado é Estado de Polícia. Direito e Estado se identificam de forma absoluta, um não sobrevive ao outro, não há distinção cronológica entre eles. Pode haver sociedade sem Estado, mas este só surge onde existe divisão de classes. Juízes, tribunais, corpos legislativos e métodos de interpretação da lei, não passam de instrumentos da classe dominante, estão a seu serviço, sendo ilusórias todas as chamadas "técnicas jurídicas" de aplicação do direito e todas as "garantias" de permanência no cargo para as pessoas encarregadas de aplicá-lo. B. - K. Stoyanovitch, La pensée marxiste et le droit, Presses Universitaires de France. Paris, 1974.

E sobre a concepção soviética do Direito a valiosa ENCICLOPÉDIA afirma:

O marxismo sustenta que o Estado e o Direito não passam de instrumentos de exploração das classes dominantes. Vitoriosa a revolução de 1917, surgiram duas interpretações sobre a natureza do direito: uma sustentava que na fase de transição da passagem do capitalismo para a sociedade sem classes, haveria ainda um direito que, embora destinado a servir ao proletariado, conteria ainda muitos aspectos burgueses, e estaria destinado a desaparecer: outra dizia que o regime soviético já significava por si mesmo o fim do direito burguês, importando numa "revolução permanente" ou na instauração de uma "legalidade revolucionária". A primeira concepção foi defendida por Stucka e Pasukanis. Stucka, considerando que o direito soviético logo após a revolução não podia refletir uma sociedade socialista, que ainda não existia, definiu o direito como sendo um sistema de relações sociais, ou forma de organização social correspondente aos interesses da classe dominante, relegando a plano totalmente secundário a vontade do legislador, o caráter normativo do direito. Já Vishinsky deu importância a este último fator ao definir o direito como conjunto de regras legislativamente estabelecidas e sancionadas pelo poder estatal para desenvolver as relações sociais vantajosas para a classe dominante. B. - Mário A. Cattaneo, El concepto de revolución en la ciência del derecho. Depalma ed. Buenos Aires, 1968; E.B.Pasukanis, La théorie générale du droit et le marxisme. Ed. Paris, s.d.; Stucka, La función revolucionaria del derecho y del Estado. Ed. Península. Barcelona, 1969.

Sobre democracias autoritárias (totalitárias ou fechadas) diz a referida ENCICLOPÉDIA:

Forma de governo que reconhece que todo poder emana do povo, mas na qual não existe divisão de poderes e reconhecimento de direitos individuais, e uma única classe ou partido fala em nome de todo o povo, identificado este como proletariado. Foi depois da Segunda Guerra Mundial que surgiram as "democracias autoritárias" representadas pelas democracias populares ou marxistas, dos países que desde então ficaram sob o domínio da União Soviética, constituindo a chamada "cortina de ferro". O nazismo e o fascismo eram regimes abertamente autoritários mas nunca se intitularam de democracia de qualquer tipo. Pelo contrário, viam no regime democrático o maior inimigo a enfrentar, e identificavam este regime com capitalismo, plutocracia, liberalismo e outros "ismos" que pretendiam derrubar para substituir por uma "nova ordem" que a história se encarregou de enterrar. Onde não existe controle do poder pelo judiciário ou por algum outro órgão da soberania nacional, onde não existe o habeas-corpus funcionando sem restrições de qualquer tipo, onde não se observa o princípio da reserva legal (V.), onde só existe um único partido, não existe regime democrático, sendo um assunto totalmente diferente saber se o regime democrático é o único que resolve os problemas político-econômicos de uma coletividade ou o que melhor resolve. Uma coisa é a classificação de um regime, outra o seu grau de eficiência. Existe democracia e existe autoritarismo, perfeitamente definidos e caracterizados. O que não pode existir é uma mistura feliz dos dois regimes. Sem divisão de poderes e sem participação do povo nas decisões governamentais, pode haver tudo menos democracia. V. autoritarismo.

Para entender-se como o governo socialista encarava o Direito é só verificar o que Karl Marx pregava em 1849, segundo a referida ENCICLOPÉDIA:

"A sociedade não se alicerça no direito. Isso é uma ficção legal. Pelo contrário, é o direito que tem a sua base na sociedade. Deve exprimir os interesses e as necessidades da sociedade, que são resultado dos métodos materiais de produção. Quanto ao código de Napoleão, não foi este que engendrou a sociedade civil. Esta sociedade que surgiu no século XVIII e se desenvolveu no século XIX, encontra no código unicamente a sua expressão legal. Tão depressa semelhante código deixe de corresponder às condições sociais não é mais do que papel inútil".

Karl Marx, defendendo-se perante os jurados de Colônia (Alemanha), em 1849.

DAVID (1996:155) esclarece com clareza solar:

Rica em estudos filosóficos, históricos, econômicos e políticos a doutrina marxista é pobre em estudos jurídicos; os estudos do "direito socialista", na medida em que ele existe, são suspeitos, porquanto são geralmente obra de autores que não são comunistas bolchevistas, e que têm por objetivo a edificação do socialismo por um processo evolutivo e não através de uma ditadura do proletariado.

Neste contexto, deve ser estabelecida uma doutrina, ainda que de um modo bastante empírico, com a colaboração de juristas, mas sob o impulso e de acordo com os princípios estabelecidos pelos dirigentes políticos, principalmente por Lenin.

O desenvolvimento do direito soviético, a partir de 1917, admite duas fases distintas. A primeira vai desde a Revolução de outubro até 1936: é a fase da edificação do socialismo. A segunda começa em 1936 e ainda perdura: é a fase da consolidação do Estado socialista e da evolução para o comunismo.

REALE (1970:101/102) afirma em palavras candentes:

Na concepção do Direito, tal como nos é oferecido pelos tratadistas soviéticos, o fator "econômico" perde o seu primitivo e denso significado de elemento compreensivo da história, entendida como a experiência vital para reduzir-se a algo de material posto ou recebido "ab extra", como puro fato empírico, do qual defluiriam, por meros nexos causais, as chamadas "super-estruturas" sociais, jurídicas e políticas.

A bem ver, o fator econômico é extrapolado do processo histórico-social para passar a valer por si mesmo como causa determinante de todo o sistema legislativo. É a razão pela qual não se poderá ver uma diferença essencial entre a concepção do direito dos juristas soviéticos e as múltiplas formas de empirismo jurídico aparecidos no Ocidente, e por eles tão duramente criticadas.

Não obstante à contínua invocação da dialética de Marx, o que se nota na Rússia, é uma pura instrumentalização do direito, reduzido a um conjunto de dispositivos de cunho por assim dizer "administrativo, tendente a assegurar a realização de planos políticos apresentados como sendo a expressão dos interesses do proletariado.

Em última análise, na URSS, "Direito é aquilo que o Estado soviético diz que é", tendo com valor fundante um campo de interesses econômico políticos pintado como sendo a expressão das aspirações dos trabalhadores. Trata-se, por conseguinte, de uma concepção totalitária do Direito, que envolve uma rigorosa posição de "estatalismo jurídico", tal como resulta desta definição, adotada pelo Instituto do Direito da Academia das Ciências de Moscou: "O direito é o conjunto de regras de conduta que expressam a vontada da classe dominante, estabelecidas em ordenamento jurídico, assim como dos costumes e regras da vida da comunidade, confirmadas pela autoridade do Estado, cuja aplicação é garantida pela força coercitiva do Estado, a fim de proteger, assegurar e desenvolver as relações e disposições sociais vantajosas e convenientes à classe dominante".

HESPANHA (1997:218/219) diz sobre o que sejam as "escolas críticas do direito", esclarecendo sobre a escola socialista do Direito:

As aqui denominadas escolas críticas têm como assunção fundamental a de que as normas jurídicas não constituem proposições universais, necessárias ou, sequer, politicamente neutras. Pelo que, antes de tudo importa compreender o funcionamento do direito (e do saber jurídico) em sociedade, para desvendar os seus compromissos sociais e políticos, bem como a violência e discriminação a ele inerentes.

Quanto ao que seja o "sociologismo marxista clássico no domínio do direito" HESPANHA (p. 219) diz o seguinte:

Marx não foi um jurista, nem sequer se dedicou especialmente à crítica do direito. Foi, isso sim, um cientista social ou pensador político que, nos quadros de uma interpretação global da sociedade, fortemente crítica do "status quo", se pronunciou também sobre o direito.

Para Marx, o direito não seria algo de natural ou de ideal, mas antes uma ordem socialmente comprometida, um instrumento de classe, conforme afirmativa do mesmo autor, p. 220.

Mais adiante, continua o mesmo doutrinador:

Mais tarde, a partir de 1917, com o advento da U.R.S.S., criou-se aí um direito que protegia os interesses que o Partido Comunista definia como sendo os das classes trabalhadoras e que, em contrapartida, sujeitava os "inimigos de classe" à "ditadura do proletariado". O direito passa a ser entendido como uma arma política ao dispor da classe operária e dos seus aliados na luta pela construção do socialismo. Este caráter instrumental do direito – que identificava a justiça com a utilidade política conjuntural – foi sobretudo enfatizado durante o estalinismo (1924-1953; pós-estalinismo, 1954-1988), tendo sido teorizado pelo então procurador geral do Estado soviético, a A. Vychinski (1883-1954).

Quanto às alternativas no plano "da forma", a insistência no caráter burguês das características da generalidade e abstração da norma jurídica fez com que se tendesse para considerar o direito – que, na sua forma contemporânea, se caracterizava justamente por ser constituído por normas (e categorias doutrinais) gerais e abstratas – como um modelo burguês de regular a sociedade. Isto explica a desconfiança dos regimes socialistas perante qualquer formalização jurídica genérica e a preferência por uma regulação casionista e decisionista baseada em diretivas concretas, pontuais, provenientes da ponderação política de cada situação individual. A tantas vezes referida ausência de uma "legalidade socialista" explica-se, do ponto de vista teórico, por esta recusa de uma normação geral que era associada pelos marxistas a um direito historicamente ultrapassado. Embora também se relacione com a concepção, já antes referida, de que o direito, a existir nos Estados socialistas devia ter sempre um caráter puramente instrumental em relação à política, ao julgamento de oportunidade por parte do Estado. E, sendo assim, o fato de este julgamento ser feito casuisticamente – i. e., sob a forma de uma diretiva política – ou de forma genérica – i. e., sob a forma de uma norma legal genérica e abstrata – constituía um detalhe pouco relevante. (p. 222)

Tratando do "marxismo ocidental dos anos 60", HESPANHA mostra que os excessos do marxismo-leninismo foram sendo reconhecidos e caindo por terra:

O marxismo ocidental distanciou-se claramente a partir dos finais da década de 60, do determinismo economicista que caracterizava o marxismo "oficial" da Terceira Internacional. O Estado e o direito seriam, decerto, quando globalmente considerados, instrumento de classe servindo os interesses globais dos grupos dominantes. A sua funcionalização político-social não seria, porém, absoluta.

A sociedade era irremediavelmente complexa e mesmo contraditória. As classes dominantes não conseguiam estender o seu domínio a todos os recantos da vida social. Existiam sempre espaços sociais – quer no domínio das relações sócio-políticas, quer no domínio das representações e do imaginário social -, espaços dominados por lógicas diferentes e contraditórias com os interesses e mundivivências dominantes. A própria existência do movimento operário e das suas organizações políticas em plena sociedade capitalista, ali estavam para prová-lo. [...]

O sistema social global seria determinado pelo "econômico", mas "sobredeterminado" (i.e., suplementarmente, ulteriormente, localmente determinado) pelas relações sociais específicas que se desenvolveriam em cada um dos restantes níveis da prática humana. (p. 223)

Mais adiante acrescenta:

No domínio jurídico, esta corrente de idéias valoriza de novo o direito, permitindo encará-lo, não apenas como um reflexo inerte das determinações econômicas, mas como um nível autônomo, que devia ser explicado em si mesmo (e não a partir das determinações sociais, políticas ou econômicas) e a partir do qual se podia influir no desenho das relações sociais e políticas. (p. 224)

Falando especificamente da "crítica do direito", complementa:

Também o direito é o resultado de uma produção arbitrária, local, histórica, de grupos sociais. Mas, para além disso, ele é também um instrumento de construção de representações (o sujeito de direito, o contrato, a propriedade, o Estado), de categorias (o louco, o criminoso, a mulher, o negro) e das hierarquias sociais correspondentes.

A função da crítica do direito é, por um lado, desvendar os impensados sociais que estão na raiz das representações jurídicas, desmitificando os pontos de vista de que o direito é uma ordem nacional, neutra e fundada objetivamente na realidade social (i.e., na natureza das coisas).

Mas, por outro lado, compete à crítica do direito revelar os processos por meio dos quais o direito colabora na construção das relações de poder. De que modo, por exemplo, contribuiu para criar a imagem social da mulher – como ser fraco, menos capaz e subordinado – que fundamenta os processos sociais de discrimação social (Teresa Beleza). Ou de que modo contribuiu para criar a realidade social do "louco" ou do "criminoso" e os processos sociais da sua marginalização (M. Foucault). Ou, finalmente, de que modo a fixação da atenção na coerção jurídica e estadual (i.e., a idéia da centralidade do direito e do Estado) ocultam a violência das formas "doces" de disciplinamento como a família, os círculos de amizade, o envolvimento afetivo, o saber, a assistência pública. (p. 225/226).

COMPARATO (2001:184/186) mostra o que aconteceu na URSS, quando, valorizando-se aparentemente as classes sociais menos favorecidas, desrespeitou-se os Direitos Humanos:

Entre a Constituição mexicana e a Wemarer Verfassung, eclode a Revolução Russa, um acontecimento decisivo na evolução da humanidade no século XX. O III Congresso Pan-Russo dos Soviets, de Deputados Operários, Soldados e Camponeses, reunido em Moscou, adotou em 4 de janeiro de 1918, portanto, antes do término da 1ª Guerra Mundial, a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado. Nesse documento são afirmadas e levadas às últimas conseqüências, agora com apoio da doutrina marxista, várias medidas constantes da Constituição mexicana, tanto no campo socioeconômico quanto no político.

No Capítulo II afirma essa Declaração de Direitos:

"1º - A fim de se realizar a socialização da terra, é abolida a propriedade privada da terra; todas as terras passam a ser propriedade nacional e são entregues aos trabalhadores sem qualquer espécie de indenização, na base de uma repartição igualitária em usufruto. As florestas, o subsolo e as águas que tenham importância nacional, todo o gado e todas as alfaias, assim como todos os domínios e todas as empresas agrícolas-modelos passam a ser propriedade nacional.

2º - Como primeiro passo para a transferência completa das fábricas, das usinas, das minas, das ferrovias e de outros meios de produção e de transporte para a propriedade da República operária e camponesa dos Sovietes, o Congresso ratifica a lei soviética sobre a administração operária e sobre o Conselho Superior da Economia Nacional, com o objetivo de assegurar o poder dos trabalhadores sobre os exploradores.

3º - O Congresso ratifica a transferência de todos os bancos para o Estado operário e camponês como uma das condições de libertação das massas laboriosas do jugo do capital.

4º - Tendo em vista suprimir os elementos parasitas da sociedade e organizar a economia, é estabelecido o serviço do trabalho obrigatório para todos.

5º - A fim de assegurar a plenitude do poder das massas laboriosas e de afastar qualquer possibilidade de restauração do poder dos exploradores, o Congresso decreta o armamento dos trabalhadores, a formação de um Exército vermelho socialista dos operários e camponeses e o desarmamento total das classes possuidoras".

Mas aí, como se vê, já se está fora do quadro dos direitos humanos, fundados no princípio da igualdade essencial entre todos, de qualquer grupo ou classe social. Desde o seu ensaio juvenil "Sobre a Questão Judaica", publicado em 1843, Marx criticou a concepção francesa de direitos do homem, separados dos direitos do cidadão, como consagradora da grande separação burguesa entre a sociedade política e a sociedade civil, dicotomia essa fundada na propriedade privada. Os direitos do homem não passariam de barreiras ou marcos divisórios entre os indivíduos, em tudo e por tudo semelhantes aos limites da propriedade territorial. E os do cidadão, sobretudo numa época de sufrágio censitário, nada mais seriam do que autênticos privilégios dos burguses, com exclusão da classe operária. Na sociedade comunista, cujas linhas-mestras foram esboçadas no "Manifesto do Partido Comunista", cinco anos mais tarde, só os trabalhadores têm direitos e só eles constituem o povo, titular da soberania política.

Vale a pena conhecer um ponto específico do Direito russo do período socialista. Trata-se do Direito Processual Civil.

O incomparável CAPPELLETTI (2001:22/23), falando sobre esse ramo do Direito da União Soviética, começa por afirmar a publicização acentuada se comparar-se com o Processo Civil dos demais países tanto de common law quanto de civil law. Preocupado com os interesses públicos, o legislador soviético entendia que a área de interesse dos particulares era secundária, o que influenciou inclusive o Direito Processual. Talvez a característica mais peculiar do Direito Soviético seja justamente essa da publicização de todos os seus ramos:

Nos países da Europa Oriental, e em geral nos países comunistas, o processo civil tornou manifesto um fenômeno que não é novo na História – o mesmo já se havia manifestado, por exemplo, na Prússia de Frederico o Grande -, isto é, o fenômeno de sua progressiva "penalização" (os juristas alemães a denominaram, com precisão, Poenalisierung dês Zivilprozesses), em virtude da qual este veio a assumir cada vez mais acentuadamente as mesmas características, ou características análogas às do processo penal.

A ENCICLOPÉDIA JURÍDICA LEIB SOIBELMAN aborda essa publicização com o nome de "penalização do Processo Civil":

Foi o grande processualista uruguaio Couture quem usou esta expressão, para significar o moderno fenômeno da reaproximação dos dois processos, o civil e o criminal, com preponderante influência deste último. Historicamente, os dois processos se separam de forma a ficar o processo penal com caráter público e inquisitivo e o processo civil a ser acusatório e depender da iniciativa das partes na produção de provas. Hoje já há uma reação, considerando-se que a ação civil também tem um interesse público, podendo o juiz determinar provas de ofício e apreciá-las livremente, salvo quando a prova não possa ser feita senão por atos solenes, pleiteando-se também tenha o juiz a faculdade de declarar de ofício as exceções, excluindo-se uma ou outra como a de prescrição ou compensação. A Rússia soviética foi quem atirou mais longe essa matéria, admitindo que o juiz pode sentenciar contra o interesse das partes, o que aliás está em perfeita consonância com a estrutura daquele regime. Nota-se então que há em caminho uma tendência para que também no processo civil o juiz se aproxime da verdade real. (V.). B. - Hernando Devis Echandia, Nociones generales del derecho procesal civil. Aguilar ed. Madri, 1966.

Mais adiante, CAPPELLETTI afirma (25/26):

A execução forçada pode ser em alguns casos indicados pela lei, promovida ex officio pelo competente tribunal. A concepção que constituiu a base desta, que aos olhos dos juristas ocidentais é certamente uma forte anomalia, resulta, além do mais, muito simples: dado que também os direitos de crédito não correspondem mais ao indivíduo enquanto tal, mas a ele enquanto membro de um determinado grupo social, nega-se, então, que o credor seja livre para executar ou não exercitar aqueles direitos conforme lhe agrade. Ele "está forçado" a exercê-lo, do mesmo modo que um empregado público está forçado a desenvolver suas próprias funções; se não as desenvolver, será o próprio Estado que, por intermédio de seus órgãos, intervirá e substituirá o empregado negligente. Em outras palavras, todo cidadão, nesta concepção integralista, é considerado sempre, em certo sentido, um funcionário público no âmbito da "organização socialista"; e seus atos, mesmo aqueles que na concepção "ocidental" têm natureza absolutamente individual privada, são legítimos apenas enquanto se inserem nas finalidades (de planificação econômica etc) da própria organização.

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Havia a possibilidade do juiz reconhecer de ofício a prescrição, sem questionar se isso representa a vontade das partes ou não. Quanto a esse reconhecimento de ofício afirma CAPPELLETTI, referindo-se ao art. 82 do Código de Processo Civil da República Socialista Federativa Soviétiva da Rússia (p. 28).

Outra peculiaridade é a do artigo 195 do Código de Processo Civil russo, que prevê a possibilidade de julgamentos ultra petita em determinadas circunstâncias: "o tribunal pode ultrapassar os limites das demandas apresentadas pelo autor", se isso for necessário para a defesa dos direitos e interesses legítimos das instituições estatais, das empresas, das fábricas coletivas e das outras cooperativas, ou dos cidadãos. (pp. 29/30). Menciona também uma afirmação de René DAVID: "os tribunais civis requeridos pelas partes ou pelo Ministério Público não se limitam a ouvir os argumentos das partes e a decidir sobre suas demandas; conhecem o conjunto do negócio, que se esforçam em esclarecer em benefício das partes, e pode, inclusive, se for o caso, decidir ultra petita". (p. 30)

CAPPELLETTI fala do recurso de cassação, do recurso do Ministério Público e da reapreciação de ofício das sentenças:

O artigo 294 do código de procedimento civil da RSFSR dispõe, com efeito, que, "ao se tratar a causa no processo de cassação, o tribunal, com base nos atos da causa e dos materiais interiores apresentados pelas partes e pelas outras pessoas que participam na causa, controla se a decisão do tribunal de primeiro grau está conforme a lei e aos fatos, ‘quer seja relativamente às partes impugnadas da sentença, quer seja relativamente às partes não impugnadas, como também em relação às pessoas que não impugnaram’". Existe, além do mais, junto ao juízo de cassação, outros dois meios de impugnação aos quais pode recorrer diretamente pela própria iniciativa: o Ministério Público ou diretamente o próprio órgão jurisdicional. Quanto ao novo exame de ofício, o doutrinador diz: o segundo é uma espécie de "novo exame" ou de "controle", efetuado por parte dos Supremos Tribunais locais ou da própria Suprema Corte Federal, das sentenças mesmo civis transitadas em julgado, a fim de verificar se as sentenças impugnadas dessa forma estão "conforme a lei e aos fatos" (artigo 327 do código de procedimento civil da RSFSR – cf. artigo 254, b, do código russo de 1923, que previa tal "controle" para as sentenças que tivessem perpetrado "uma violação particularmente grave das leis vigentes ou dos interesses do Estado, dos trabalhadores e dos camponeses ou das massas trabalhadoras"). Este "novo exame" não pode acontecer nunca por requerimento dos sujeitos privados mas sempre por requerimento do Ministério Público ou dos órgãos judiciais, como o presidente de uma Suprema Corte de uma República federada ou o Presidente da Suprema Corte Federal [...]. É interessante mostra, além do mais, que, da mesma forma, com respeito à cassação, assim também com respeito a este outro no meio extraordinário de impugnação, a lei estabelece que o tribunal desenvolva seu "controle", "quer seja sobre os extremos impugnados da sentença, quer seja sobre aqueles não impugnados com eficácia também com respeito às pessoas não mencionadas no ato de impugnação" (artigo 327 do código de procedimento civil de 1964). (p. 31/32)

CAPPELLETTI fala na obrigação do juiz de emitir ex officio as providências cautelares oportunas para garantir a execução da sentença pronunciada. (p. 59)

Além dos deveres de lealdade e probidade das partes e seus procuradores no processo previa-se o "dever de verdade", conforme afirma CAPPELLETTI:

Dever da parte (e de seu defensor), por não alegar fatos que saiba que sejam falsos, e de não negar fatos (alegados pelo adversário) que saiba que são verdadeiros. (p. 62)

Dada uma noção geral sobre todo o período socialista, passemos a informar sobre cada um dos períodos em que DAVID o divide para finalidades didáticas.

3.5.1 – O PERÍODO DE 1917 A 1936

LAMARE (1997:197) noticia a edição da segunda Constituição russa, a de 1918, já com o país sob o regime socialista, quando, em julho do mesmo ano, uma nova constituição seria promulgada pelo novo regime.

Sobre o sistema eleitoral implantado por essa Constituição LAMARE (1997:200) afirma:

Os soviets locais são eleitos pelo sufrágio universal que seria limitado, unicamente, aos cidadãos cujas rendas fossem provenientes do seu trabalho. Esses Soviets locais elegeriam os deputados do Congresso dos Soviets que delegaria os poderes ao Comitê executivo Central que, por sua vez, era incumbido de escolher os membros do governo, o Sovnarkom.

LAMARE (1997:214) noticia dois acontecimentos significativos desse período: o primeiro que foi a constituição formal da URSS, em 1922, e o segundo a Constituição de 1924, que seria a terceira na seqüência e a primeira da URSS.

LAMARE (1997:222) dá notícia da edição da Constituição seguinte: a de 1936:

A Constituição de 1936 consolidou a situação representativa das nacionalidades, criando uma Câmara Legislativa Alta, o ‘Conselho das Nacionalidades’ (ou Soviete), no qual as repúblicas autônomas poderiam contar com onze delegados, as regiões autônomas com cinco e os distritos nacionais com um delegado. Mais adiante, a ilustre historiadora faz mais algumas observações sobre essa Constituição: Por ela, os cidadãos soviéticos tinham assegurados os seus direitos civis como nas mais avançadas democracias ocidentais. Mais: estavam garantidos a estabilidade empregatícia, o descanso, o lazer, a segurança econômica e a garantia de apoio na velhice. Condenava-se qualquer forma de racismo. Em trecho seguinte (pp. 250/251) acrescenta:... a reforma da constituição de 1924, através da qual a União Soviética passava a ser uma federação. As repúblicas que a constituíam teriam um Ministério de Relações Exteriores e um Exército independentes.

LAMARE (1997:223) trata do que entender ser o ponto central das Constituições de 1924 e 1936:

Nas Constituições de 1924 e 1936, ficou estabelecida uma forma de governo que serviria para todas as repúblicas, e para a União Soviética como um todo. A sua principal característica era um sistema de paralelismo entre o Estado e o Partido.

O segundo Código Penal (primeiro da URSS) seria editado em 1926:

O código penal da URSS de 1926, em seu artigo 58, poderia ser considerado um instrumento cômodo ao poder soviético porque nele se podia incluir qualquer forma de oposição ao sistema. LAMARE (1997:238)

Criou-se, assim, um sistema penal em que o conceito de ‘fato típico’ ficava a critério exclusivo do aplicador da lei, assim gerando oportunidade para condenações as mais arbitrárias.

DAVID (1996:167/171) mostra com segurança as fragilidades desse período:

Período do comunismo revolucionário. O período do comunismo revolucionário, ou do comunismo de guerra, estende-se desde a Revolução de outubro até fim da guerra civil e ao triunfo definitivo do partido comunista (bolchevista) na Rússia, em 1921.

A obra mais importante levada a efeito neste período é marcada pelas circunstâncias excepcionais em que foi realizada: a Rússia está sujeita à guerra civil e estrangeira, a sua desorganização é total; os bolchevistas não estão de modo nenhum certos de contunuarem a manter-se no poder. O essencial para eles, não é a construção de uma obra prática adaptada às possibilidades de momento, o que importa é vencerem os seus inimigos e manterem-se no poder, restabelecerem a paz e, se tiverem de ser eliminados, que tenham pelo menos proclamado heroicamente os princípios pelos quais se batem. "Pouco importa – declarou Lenin em 1917 – que muitas das disposições de nossos decretos nunca sejam executadas. A sua finalidade é orientar as massas no sentido do progresso... Não as consideramos como regras absolutas aplicáveis a todas as circunstâncias." E, do mesmo modo, Trotsky declarou: "nos primeiros tempos, os decretos tinham mais importância como artigos de propaganda do que como textos administrativos".

À obra realizada no período do comunismo revolucionário falta, na aparência, realismo. Parece que sequer, de imediato, construir uma sociedade comunista sem percorrer a fase do socialismo prevista por Marx. A própria palavra Estado (gosudarstvo) é evitado na primeira Constituição da Rússia de 1918. O direito de liberdade dos povos é proclamado (Declaração dos Direitos dos Povos da Rússia), assim como, ao mesmo tempo, se elabora uma declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado; é enviada uma mensagem a todos os trabalhadores mulçumanos da Rússia e do Leste. A Igreja é separada do Estado e é promulgado um código do casamento. A terra, as fábricas, os estabelecimentos industriais de alguma importância e os banco são nacionalizados; o comércio privativo é proibido. Parece que o próprio dinheiro deve desaparecer e que o sistema de repartição dos produtos deve ser substituído por um sistema de contratos. A herança é suprimida. Desconfia-se dos juristas, classe suspeita; os antigos tribunais e o processo são abolidos. Tudo anuncia a passagem imediata, sem transição à sociedade comunista. Os novos tribunais, que são criados, são convidados a estatuir, fora de todo o processo formalista, segundo a consciência revolucionária, o sentimento socialista da justiça, os interesses do governo, dos trabalhadores e dos camponeses.

As medidas então tomadas são interessantes porque nos revelam, com um propósito de propaganda, qual o objetivo final do comunismo, e as intenções futuras dos dirigentes russos. Entretanto, era impossível realizar esse programa de uma só vez. Alguns sonhadores, na própria União Soviética, conservarão a nostalgia do que foi feito nesses primeiros anos e esforçar-se-ão por regressarem rapidamente às concepções então proclamadas. Os dirigentes mais realistas tentarão adiar o máximo possível a realização da sociedade comunista e aplicarão seus esforços na edificação e na posterior consolidação de um Estado socialista, muito diferente do ideal de uma sociedade comunista.

O pensamento mais realista e a preocupação de realizar uma obra prática manifestam-se desde o momento em que a guerra civil e as intervenções estrangeiras terminam, e no momento em que os comunistas, senhores incontestados do poder, se encontram face à tarefa gigantesca que os espera: a reconstrução do país e a edificação do socialismo.

A ENCICLOPÉDIA JURÍDICA LEIB SOIBELMAN fala do Projeto Krylenko, que é justamente o que inaugurou o Direito Penal pelo qual se notabilizou a Escola Soviética, causando polêmicas intermináveis entre teóricos e operadores do Direito:

Projeto de código penal soviético que tem o nome de seu autor, de 1930, que ficou famoso por não conter parte especial nem dosagem da pena (dosimetria). Era a completa subversão dos princípios tradicionais do direito penal, como o da proibição da analogia em matéria criminal, o nullum crimen nulla poena sine lege, etc., dando ao juiz o poder imenso de criar crimes de todo tipo. Não passou de projeto.

3.5.2 – O PERÍODO DE 1936 ATÉ A CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO SOCIALISTA E DA EVOLUÇÃO PARA O COMUNISMO

Esclareça-se inicialmente que o comunismo nunca chegou a ser implantado, pois, para sua concretização final, dever-se-ia abolir o Direito e o Estado. Mas, pelo contrário, o Estado ficou mais forte ainda na União Soviética e mais interveniente que na maioria dos países e, quanto ao Direito, acabou-se reconhecendo, mesmo que indireta e veladamente, sua imprescindibilidade.

Foi uma demonstração clara de que, mesmo que sejam Marx e Lenin considerados grandes idealistas, seus ideais nem sempre foram viáveis.

VON GRUNWALD (1978:111) esclarece sobre a realidade constitucional no período stalinista, apesar da Constituição democrática:

A Constituição de Stalin, de 1936, era na verdade democrática e federativa, mas na prática possibilitava o estabelecimento de uma didaduta totalitária e do sistema de partido único.

Uma observação interessante e que vale a pena trazer-se para o Leitor e que demonstra o nivel cultural do povo russo é feita quanto ao estudo do Direito Romano na Rússia, quando, em nosso país, considera-se o Direito Romano como dispensável.

MADEIRA (2002:7) traz esta informação gratificante:

Considerando os sistemas jurídicos ‘romano-germânico’ e ‘socialista’, devemos recordar as grandes mudanças produzidas no ano de 1945. Esta data sinaliza: por um lado, a derrota do nazismo, movimento racista programaticamente inimigo do direito romano; por outro lado, a instituição do endino do direito romano como matéria obrigatória nas universidades da União Soviética, em evento importantíssimo para o desenvolvimento da disciplina romanística. Nos países pertencentes ao ‘sistema socialista’ tem-se tido um crescente interesse pelos estudos romanistas. Nos anos oitenta, partes do ‘Digesta iustiniani’, traduzidas para o russo, foram publicadas sob a direção da Academia de Ciências da União Soviética, e na república popular da china foram editados manuais de Instituições de Direito Romano. As mudanças políticas que se produziram na Europa centro-oriental depois de 1989 reforçaram o desenvolvimento dos estudos do direito romano, particularmente na República Tcheca, na Polônia e na Rússia.

LAMARE (1997:266) informa sobre a edição de mais um Código Penal: o de 1958, que seria o terceiro na seqüência e o segundo da URSS:

No mesmo ano, em dezembro, sai uma nova lei de direito penal para a URSS pela qual elimina-se a expressão ‘inimigo do povo’ e substituem-se os campos de concentração por ‘colônias de reestruturação e de trabalho’ do indivíduo.

LAMARE (1997:272) diz sobre o Direito Trabalhista:

Em janeiro de 1970 faz-se um censo geral da população, que atinge a cifra de 241 milhões e 700 mil habitantes, e ensaia-se a elaboração de uma lei sobre os fundamentos da legislçação do trabalho.

Em 1977 entraria em vigor a nova Constituição, quarta na seqüência e terceira da URSS.

DAVID (1996:171) fala da manutenção do Direito, apesar da idéia inicial de que ele deveria ser abolido na URSS:

O abandono da NEP caracterizou-se por esta coletivização da economia soviética. Não significou um regresso ao comunismo do período precedente. O período dos planos qüinqüenais está assinalado, pelo contrário, por um fortalecimento do Estado, cujas funções são aumentadas pelo desenvolvimento da autoridade, da disciplina e da coação sob todas as formas; pela afirmação, cada vez mais nítida, do princípio da legalidade socialista. Os códigos promulgados no período da NEP continuarão em vigor ainda por 30 anos. Uma grande quantidade de disposições de natureza diversa veio, pouco a pouco, modificá-los, completá-los, regulando sobretudo os aspectos novos da vida soviética. Longe de se enfraquecer, o direito soviético tornou-se mais rico e mais completo. O desaparecimento do Estado e do direito, anunciado para a era do comunismo, foi preparado de acordo com a dialética marxista, por um desenvolvimento e uma exaltação sem precedentes do Estado e do direito. "Engels disse que, depois da vitória da revolução socialista, o Estado devia desaparecer... Os marxistas soviéticos chegaram á conclusão que, devido ao cerco capitalista..., o país da revolução vitoriosa não devia enfraquecer, mas consolidar por todos os meios o seu aparelho de Estado."

O balanço de vinte anos de esforço é estabelecido em dezembro de 1936, no qual uma nova constituição se apresenta como um relatório vitorioso a exploração do homem pelo homem terminou na União Soviética, as forças da produção foram postas à disposição da coletividade e são exploradas no interesse de todos; um Estado multinacional resolveu os conflitos entre nacionalidades, e um Estado e um direito socialistas foram edificados pela primeira vez no mundo o caminho está aberto a um progresso ulterior e à realização do comunismo.

DAVID (1996:172) fala sobre a persistência do Estado socialista, contrariando a ideologia comunista, que pregava a abolição do Estado:

Mais de 40 anos se passaram desde que a Constituição soviética de 1936 foi promulgada, e que a infra-estrutura econômica, sobre a qual poderá ser edificada uma sociedade comunista, foi, sem contestação possível, estabelecida. Até onde chegou a União Soviética na "marcha para o comunismo" que pôde então iniciar?

Um primeiro ponto está fora de dúvida: uma sociedade comunista não foi ainda realizada na União Soviética. Não se chegou ainda ao estágio do comunismo, no qual o poder será exercido pelos sovietes, pelos sindicatos, pelas cooperativas e outras organizações de massa. Foi ultrapassado o estágio da "ditadura do proletariado" e desde 1961 se caracteriza a União Soviética como sendo o "Estado de todo o povo". Esta fórmula o descreve com clareza: continua a existir um Estado na União Soviética e este, longe de desaparecer, está mais forte e poderoso do que nunca. O direito soviético tampouco se enfraqueceu; é mais abundante e tão imperativo como nunca.

A segunda constatação que deve ser feita é a seguinte: não teve lugar nenhum regresso ao passado. O Estado soviético continuou um Estado socialista, fundado sobre uma infra-estrutura econômica conforme à doutrina marxista e profundamente diferente, pela sua estrutura, dos Estados burgueses". A sociedade comunista não foi realizada, mas continua a ser o ideal que se pretende atingir um dia na União Soviética.

Uma terceira constatação se impõe: de 1936 até os nossos dias não houve estagnacão. Apesar de uma guerra cruel que causou aos seus cidadãos imensas privações e à sua economia perdas consideráveis, a União Soviética continua hoje muito poderosa, tanto no plano nacional como no internacional. Se é verdade que a possibilidade de realizar uma sociedade comunista deve resultar de uma exaltação sem precedentes do poder do Estado, hoje estamos mais perto das condições das quais pode advir o comunismo na União Soviética.

DAVID (1996:172/174) fala sobre os obstáculos à realização do comunismo:

Quais são estas condições, e como é possível que o comunismo ainda se mostre como um ideal longínquo, quarenta anos depois que o Estado socialista foi edificado?

Diferentes causas o justificam. A primeira destas causas e o cerco capitalista". Enquanto a União Soviética se sentir ameaçada pela existência de poderosos Estados não-socialistas, ela apenas poderá ensaiar certas experiências de interesse limitado na via do comunismo. Não poderá realizar integralmente uma sociedade comunista. O cerco capitalista não é a única explicação para o pouco que se progrediu no caminho do comunismo. Um outro elemento que é necessário levar em consideração é "a sobrevivência dos hábitos da época capitalista no espírito dos cidadãos". Séculos de má organização social não podem ser simplesmente abolidos; os homens habituaram-se a certos modos de pensar viciosos e vieram a considerar como naturais comportamentos egoístas e anti-sociais. Não basta ter curado o vício fundamental da sociedade, como pedia a doutrina marxista, nem ter saneado a sua infra-estrutura econômica, coletivizando os bens de produção. Uma outra tarefa se impõe: a de reeducar os homens e de lhes fazer compreender que as atitudes anti-sociais, outrora desculpáveis e mesmo justificadas, não o são mais no Estado socialista de hoje ‘. Esta tarefa deve ser realizada a partir da infância; é em função dela que são concebidos programas soviéticos de ensino. Deve prosseguir ao longo da existência do homem: o partido comunista assume a este respeito uma responsabilidade particular.

A conservação do Estado e do direito é tanto mais necessária no atual estágio quanto é certo que, se as classes propriamente ditas desapareceram, subsistem grupos sociais com modos de vida ainda diferenciados: citadinos e rurais, trabalhadores intelectuais e manuais, administradores e administrados. As oposições que se manifestam entre estes grupos não são mais, na linguagem marxista, do que contradições não-antagonistas, mas subsiste o perigo de um desses grupos ser tentado a apropriar-se da mais-valia do trabalho dos outros, para se tornar uma classe exploradora. Antes que o Estado possa desaparecer, é necessário fazer desaparecer toda a oposição existente entre esses grupos, nivelando-os e aproximando os seus modos de vida.

Para obter dos cidadãos o comportamento social que se deseja e permitir a realização de uma sociedade comunista, uma outra condição prévia é exigida: a abundância. "De cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades"; este divisa da sociedade comunista só pode tornar-se realidade se a produção atingir o máximo possível, de tal forma que os bens de consumo sejam suficientes para todos. A manutenção do aparelho do Estado socialista, com a coerção que ela implica, é necessária para alcançá-lo.

Quanto às três funções do Direito soviético diz DAVID (1996:174):

As funções do Estado e do direito soviéticos, na atual época de passagem do socialismo ao comunismo, são de três ordens. A primeira, sobre a qual não é necessário insistir, é uma função de segurança nacional: deve-se consolidar e aumentar o poder do Estado para desencorajar os inimigos estrangeiros do ataque ao regime soviético e para assegurar a coexistência pacífica entre as nações. A segunda função do direito soviético é de ordem econômica: é o desenvolvimento da produção, com base nos princípios socialistas, de modo a criar a abundância e permitir a satisfazer cada um "segundo as suas necessidades". A terceira função do direito soviético é a da educação: destruir no homem as tendências anti-sociais que são herança de séculos de má organização econômica.

Quanto ao poder econômico, diz o grande comparatista sobretudo sobre a organização da produção como sendo tema merecedor de destaque, encarada como a segunda função do Direito soviético:

A função econômica do direito soviético é por si só imensa. Neste aspecto, o regime socialista exige um esforço dos dirigentes que ultrapassa em amplitude aquele que é exigido aos dirigentes nos países capitalistas. O direito nos países "burgueses" tem uma função econômica. Contudo, na medida em que persiste um setor privado na economia, conta-se com a iniciativa dos particulares para organizar a produção e os circuitos comerciais. O Estado exerce uma função de estímulo, de cooperação e de controle; contudo não assumiu diretamente a produção dos bens.

Na União Soviética, pelo contrário, pretendeu-se retirar o poder econômico aos interesses privados e, com esta finalidade, coletivizou-se todos os bens de produção, para permitir que fossem explorados no interesse geral e não para alcançar um lucro. Cumpre aos dirigentes do Estado estabelecer as modalidades da atividade econômica e determinar como devem ser distribuídos os produtos para atender ao interesse geral. O Estado tornou-se o dirigente da indústria, da agricultura e do comércio; a função de direção e de organização que lhe compete é extremamente difícil num país como a União Soviética. A doutrina marxista é para isto de pouca utilidade; ela não diz como deve ser organizado o poder econômico, atualmente em mão dos representantes de todo o povo. Foi necessário, por isto, recorrer a um processo de experimentação contínua e é duvidoso que haja a este respeito soluções definitivas.

Cedo se estabeleceu o acordo considerando que era necessário explorar, a partir de uma planificação, as riquezas econômicas da nação. Entretanto, puderam manter-se idéias diferentes e mudar de métodos no que diz respeito à questão de saber se esta planificação devia ser organizada no quadro de certos setores da produção (metalurgia, construção, indústria química) ou no quadro funcional (trabalho, créditos, provisões), em que medida a direção econômica seria centralizada ou descentralizada, que duração teriam os diversos planos, que setores seriam considerados como prioritários (indústria pesada ou bens de consumo, indústria química ou exploração espacial), como seria organizada e controlada a gestão das empresas. No domínio da agricultura foi necessário escolher entre a fórmula das fazendas do Estado (sovkozes) e a das cooperativas (kolkazes), pronunciar-se sobre a extensão ótima de sovkozes e kolkozes, criar o estatuto dos trabalhadores em um e outro tipo de organização. No domínio da indústria foi necessário lutar contra as tendências burocráticas e procurar os estímulos apropriados para aumentar a produção. É necessidades materiais e culturais"; os seus métodos governamentais não quadro destas se instaurem práticas abusivas: que a burocracia se torne soberana, que o esforço de produção diminua, que certos interesses privados sejam favorecidos, que a coletivização dos bens degenere num simples capitalismo de Estado e que necessidade de edificar o comunismo seja esquecida.

No exercício deste poder econômico e na disposição dada às forças da produção, graves erros foram cometidos e opções lamentáveis foram feitas. Stalin pôde proclamar que "a finalidade da produção não era o lucro, mas o homem e as suas necessidades, isto é, a satisfação das suas necessidades materiais e culturais"; os seus métodos governamentais não estiveram de acordo com estes propósitos: durante anos o homem foi sacrificado à produção e ao Estado. Por mais difícil que tenha sido esse período, os cidadãos russos, presentemente, recolhem os seus frutos: a economia foi integralmente coletivizada, o perigo nacional-socialista foi eliminado.

Condenando o excesso do período stalinista, tornou-se possível voltar à verdadeira doutrina marxista. Esta pretende ser um humanismo; não procura nem o poder pelo poder, nem a riqueza pela riqueza, mas a libertação do homem, o seu completo desenvolvimento numa sociedade onde nunca deixou de ser oprimido. (pp. 174/176)

A reeducação do homem é objeto de uma abordagem especial de DAVID (1996:176/177) pois que era uma das três funções do Direito soviético:

Para que uma sociedade comunista possa ser estabelecida, e a máquina de repressão constituída pelo Estado acabe por desaparecer, não basta que os bens de produção sejam coletivizados e que a sua exploração seja organizada no interesse de todos. Acima de tudo é necessário transformar o homem, libertá-lo de reações. de atitudes, de sentimentos sedimentados por milhares de anos de má organização social. "O Estado socialista deve refazer completamente a consci€nda do povo — escreveu em 1947 o primeiro presidente do Comitê Supremo da União Soviética —; é essa a sua tarefa mais importante." Mais do que nunca, essa tarefa, conferida à política e ao direito socialistas, assume hoje uma importância primordial.

Já foram obtidos resultados importantes: tornou-se inconcebível para um cidadão soviético que qualquer pessoa, ou sociedade privada, possa ser proprietária de uma fábrica ou explorar no seu próprio interesse, ou no dos acionistas, quaisquer riquezas naturais; os camponeses aceitam de boa vontade a transformação dos seus kolkozes em sovkozes. Entretanto, ainda há muita coisa a fazer. Uma obra de educação dos cidadãos, na quaL os juristas são convidados a cooperar, deve ser paciente e incansavelmente conduzida. O partido comunista soviético era formado apenas por 17.480.768 membros em 1980, ou seja. um pouco mais de 9% da população ativa. É a esta elite de prosélitos que cabe a função de converter uma população disciplinada mas sem profunda fé. É necessário inculcar nos cidadãos um novo sentido de trabalho, que se tornou uma questão de brio e não de necessidade. É necessário fazer-lhes compreender que a propriedade socialista é de todos e que eles têm o dever sagrado de protegê-la. É também necessário mostrar-lhes que presentemente a lei é justa, porque concilia plenamente os interesses particulares e o interesse geral. Os cidadãos devem obedecer à lei não pelo temor da autoridade como no tempo em que a organizacão social era corrupta. mas porque se sentem capazes de observar conscientemente, longe de toda a repressão, os princípios naturais que estão na base da sociedade doravante sã. Na União Soviética dos nossos dias a lei é a razão e a verdadeira justiça. Convém que todos dêem a sua aprovação às regras de direito socialistas; é necessário que o direito seja "popular".

Um esforço considerável e constante se vem processando para dar a conhecer aos os a Constituição, as instituições e as leis. Os sovietes, guiados pelas deliberações preparatórias do grupo dos seus membros que são comunistas, lá estão para compreender e fazer compreender à população o fundamento e a sabedoria das decisões que foram preparadas pelo partido.

Todos os cidadãos são chamados a participar na elaboração das leis importantes, sugerindo modificações que lhes pareçam convenientes aos projetos estabelecidos. Cita-se com orgulho o número de reuniões nas quais foram discutidos o projeto de Constituição, ou o de uma lei sobre a reorganização da agricultura, ou o de uma lei sobre as pensões e o número de alterações que foram propostas. Os cidadãos devem sentir que a lei votada pelos seus representantes é realmente a sua lei, aquela que eles quiseram e na observância rigorosa da qual devem cooperar e vigiar. O tribunal soviético é concebido como uma escola. Adverte, encoraja, dá conselhos, tal como a própria lei muitas vezes o faz. A sua com oposição a sua forma de atuar, a sua existência são justificadas pelo pepel educador do direito soviético. É um malogro se o condenado não aprova a sentença que o pune, seus adversários não se reconciliam ao reconhecerem o caráter justo de uma decisão tomada na aplicação da lei socialista. Através de toda estabilidade persuasiva, toda a repressão se tornará pouco a pouco inútil: em suma, o direito poderá assim perder o seu aspecto sancionador para passar a ser um simples ordenador. Segundo a fórmula de Engels, "o governo dos homens dará lugar à administração das coisas"; cada um observará espontaneamente as regras formuladas pelos administradores sobre os bens coletivizados, de tal modo que a utilidade dessas regras será evidente para todos. A sociedade funcionará livre de toda a repressão, deixará de existir direito no sentido em que os marxistas compreendem esta expressão.

VON GRUNWALD (1978:120) esclarece um ponto interessante do Direito siviético quanto à propriedade:

Ao contrário do que vulgarmente se pensa, na União Soviética manteve-se a propriedade privada, mas só na medida em que não sirva para a exploração de outras pessoas. Todo cidadão soviético tem a possibilidade de possuir uma casa, um jardim e até uma conta bancária; também pode deixar os seus bens em herança. Mas todos os bens de produção estão nacionalizados, e o seu lucro reverte para o Estado, que representa o povo na sua totalidade.

CAPPELLETTI (1988:79), tratando do acesso à Justiça, fala na União Soviética:

Com respeito às reformas que reduzem custos e, de certa forma, ampliam a tradição da oralidade, convém mencionar os ordenamentos processuais socialistas. Com efeito, os informantes do projeto Florença de acesso à Justiça nos países do leste europeu e na União Soviética até mesmo questionam a necessidade de criação de procedimentos especiais, fora do sistema judiciário regular.

Efetivamente, na época socialista a meta dos governantes com respeito aos Tribunais era de solucionar os processos da forma mais objetiva e rápida possível, prejudicando, assim, o direito de ampla defesa. A informalização excessiva e a exagerada preocupação com a celeridade processual facilitavam o arbítrio e geravam injustiças gritantes.

3.6 – O PERÍODO FEDERATIVO

LAMARE (1997:365) dá notícia da entrada em vigor da Constituição de 1993, quinta na seqüência e quarta da URSS:

Inaugurou o ano de 1994 com uma nova Constituição.

Essa Constituição baseou-se no modelo constitucional francês quando à figura do "Presidente forte" e na "Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948" no que pertine à enumeração dos Direitos Humanos, como observou Marina Konioukhova, no seu texto A GUIDE TO RUSSIAN LEGAL RESEARCH (http://www.llrx.com/features/russia.htm).

LAMARE (1997:371) fala da edição do novo Código Penal, em 1994, quarto na seqüência e terceiro da URSS:

O governo, por outro lado, tratava de fazer aprovar um novo código penal para substituir aquele que vigorava desde a époda de Kruchev. O esboço do código previa crimes que não eram sequer considerados pelos soviéticos: roubo de propriedade intelectual, crime na área de informática, no setor público e na área ambiental. A adaptação da lei para uma economia de mercado fazia com que, por exemplo, não mais existisse distinção entre a violação de uma propriedade individual e a pública (cuja apropriação indevida era vista como um crime da mais alta gravidade). E, pela primeira vez na rússia, elaborava-se um código de punições para pessoas físicas e jurídicas.

No RELATÓRIO DA COMISSÃO PARA OBSERVÂNCIA DAS OBRIGAÇÕES E ADESÕES DOS ESTADOS-MEMBRO DO CONSELHO DA EUROPA, publicado na Internet em http://www.marianne-en-ligne.fr/98-07-27/e_a1a.htm, fala-se sobre o Código Penal russo:

O ponto positivo é que as duas câmaras do Parlamento e o Presidente da Federação, depois de longas e laboriosas deliberações e negociações, finalmente aprovaram em 1996 um novo Código Penal, muito próximo das normas européias que o precedem (que datava dos anos 1960). Esse Código, que compreende 360 artigos, entrou em vigor em 1º de janeiro de 1997. A adoção e a entrada em vigor desse Código Penal geram a certeza de um encaminhamento crucial em direção ao estabelecimento do estado de direito; além disso, elas podem ser consideradas como ponto de partida da reforma penal - adiada por muito tempo - da Federação da Rússia, que constitui um dos principais engajamentos das autoridades russas depois de sua admissão ao Conselho da Europa.

Deve-se notar que o novo Código Penal não é perfeito. Se ele apresenta a formulação de delitos tais como a traição e a violência e o hooliganisme, até então vagamente definidos, e se abandona os componentes idiológicos soviéticos - no qual o Estado premia o invidíduo -, os princípios sobre os quais repousa o novo Código permanecem em certos aspectos distantes das normas internacionais. Assim, o princípio de humanidade enunciado no artigo 7 do novo Código se limita a estipular que a sanção e as outras medidas penais não devem Ter por finalidade causar desconforto ou dor física nem atentar contra a dignidade humana. Isso implica em que, segundo a concepção russa, se tais medidas somente conduzem à dor e à humilhação, na ausência de intenção expressa - como é o caso das condições de detenção desumanas e degradantes em determinadas prisões -, elas não são aprovadas pelo princípio de humanidade.

Um outro aspecto problemático do novo Código Penal é que os atos preparatórios de uma infração é sancionada muito severamente. O artigo 66 dispõe que a duração e a amplitude da sanção pelos atos preparatórios de uma infração não deveria exceder a metada da duração da pena mais grave prevista por esse mesmo artigo para uma infranção efetivamente cometida ou três quartos para tentativa da infração. Trata-se de penas muito pesadas para infrações não cometidas. Contrariamente, penas muito mais leves são aplicadas aos atos cometidos "no interesse do Estado": assim, a execução de uma ordem ilícita não é sancionada de forma alguma se quem a executou não se deu conta de seu caráter ilícito (art. 42). [...]

Se o novo Código Penal continua prevendo a pena de morte, o campo de aplicação dela foi consideravelmente reduzido, pois passou de 28 para 5 crimes.

Mais adiante, o RELATÓRIO trata do projeto do novo Código de Processo Penal:

O projeto adotado pela Câmara dos Deputados em primeiro turno [...], foi qualificado por organizações não-governamentais como "altamente problemático". Apesar de que o novo projeto prevê, parece, a transferência do poder de expedir mandato de prisão dos procuradores de justiça para os juízes, medida necessária para que a legislação russa seja conforme à Convenção dos Direitos Humanos, não obrigará o juiz de justificar a necessidade da detenção. Isso será lamentável pois tanto juízes quanto procuradores de justiça russes utilizam frequentemente a detenção provisória, mesmo nas infrações menores. O projeto do novo Código de Processo Penal conserva também um modelo neo-inquisitivo de procedimento penal (beneficiando consideravelmente o Ministério Público em relação à defesa). Isso é incompatível com a Constituição que reconhece no artigo 123, § 3, oo princípios da eqüidade e do contraditório para as duas partes em todas as ações. A presunção de inocência não é aparentemente admitida em todos os casos. Conforme o entendimento de determinados juristas, numerosas disposições importantes do projeto contradizem os princípios da Constituição da FR e determinadas agravam a situação jurídica individual.

O RELATÓRIO também trata do Código Penitenciário:

Uma nova lei sobre a aplicação das penas (Código Penitenciário) foi adotado pela Câmara dos Deputados em 18 de dezembro de 1996 e pelo Senadoem 25 de dezembro de 1996. Entrou em vigor em 1º de junho de 1997. Esse novo texto legislativo importante suscitou poucas reações e comentários. Il nous en a été donné un exemplaire en russe, mais comme il compte 190 articles, nous ne pouvons espérer l'évaluer sans l'aide d'un expert.

Uma emenda de 1997 ao artigo 184 dessa lei prevê que:

Nenhuma execução capital pode ocorrer sem o consentimento do Presidente da Federação da Rússia.

E dá notícia do novo Código Civil:

Um novo Código Civil foi já adotado e entrou em vigor.

Além do projeto do Código de Processo Civil:

O projeto de Código de Processo Civil não foi ainda examinado pela Câmara dos Deputado, mas é, de qualquer forma, menos urgente quanto aos direitos humanos, que o código de Processo Penal.

Pela informação do endereço de Internet http://www.advogado.adv.br/artigos/2001/edsonramanauskas/direitopontocom.htm se vê como tem evoluído o Direito russo no período federativo, que tem investido em áreas nobres como seja a Informática Jurídica:

O Parlamento Russo, o Duma, adotou em 25 de Janeiro de 1995, a lei de informação que dispõe sobre a aplicação da assinatura digital para todo o tipo de comunicação. Há, ainda, um projeto de lei dispondo sobre assinaturas eletrônicas e digitais.

Também é de se destacar, a título de informação sobre a modernização rápida do Direito russo, que a Federação da Rússia participou de um importante entendimento multinacional consubstanciado na CONVENÇÃO RELATIVA AO PROCESSO CIVIL, que pode ser consultada no seguinte endereço:http://www.dr-hoek.de/droit-international-2.htm, constante de 33 artigos, subdivididos em alguns tópicos, que são os seguintes: comunicação de atos judiciais e extra judiciais, caução, assistência judiciária, concessão gratuita de certidões de atos do registro do estado civil e detenção.

Outro dado interessante sobre a importância do Direito russo é seu reconhecimento pela Universidade de Paris X, que mantém curso especial sobre o Direito russo. Veja-se o que consta do endereço http://ladef.univ-paris1.fr/page.encyclo.sonore.html:

O ensino do direito russo na Universidade de Paris X.

É assim que Paris X propõe há 15 anos o estudo do Direito alemão, do Direito anglo-americano, do Direito espanhol e do Direito italiano. Há 5 anos criou o D. E. J. A. Direito russo.

O que incentivou essa criação são evidentemente as mutações que estão acontecendo na Rússia e o desenvolvimento considerável que o direito está tendo ali. Em alguns anos, a Rússia dotou-se de uma nova Constituição, um novo Código Civil, um novo Código Penal, instituiu uma jurisdição constitucional, uma jurisdição comercial e está organizando uma jurisdição administrativa. Um tal desenvolvimento merece por si só ser estudado do ponto de vista especulativo. Afora isso, as trocas econômicas entre a França e a Rússia necessitam da assistência de juristas que tenham conhecimento do Direito francês e do Direito russo. Na medida em que o D. E. J. A. é um diploma com finalidade essencialmente profissional, é a preparação de juristas que se inscreveram ao D. E. J. A. Direito russo e o diploma é ligado ao mestrado em Direito Econômico. É assim centrado no Direito Econômico russo.

Para organizar esse ensino, foi necessário inovar, pois, se havia na França algumas especialidades do direito soviético, isso era exclusivamente dos publicistas, estando o Direito soviético reduzido à sua expressão mais simples. O Direito Civil russo constitui um tema de estudo inteiramente novo. Se vários cursos gerais são assegurados por professores franceses, todos os ensinos que dizem respeito ao Direito Econômico russo são confiados aos juristas russos convidados que ensinam em russo. Paris X procurou socorro junto a uma equipe de professores de Ekaterinbourg, onde existe uma Escola de Direito de onde saem atualmente numerosos juristas de renome na Rússia. Eles são convidados alternadamente para um mês. A maior parte deles exerce paralelamente alguma atividade consultiva. São convidados igualmente alguns operadores do Direito.

SÉROUSSI (2000:194) resume o que está acontecendo no Direito russo depois da extinção da União Soviética:

Em alguns anos o Direito russo conseguiu, não sem dificuldade, cortar os excessos do regime soviético e, partindo, para estabelecer regras de direito Civil, comercial e institucionais muito semelhante - pelo menos teoricamente - daquelas do direito romano-germânico.

Em outras palavras, seu ingresso no Conselho da Europa obriga-a a modernizar seu Direito para adaptar-se à Convenção Européia dos Direitos Humanos.

3.6.1 – A CAMINHO DO ESTADO DE DIREITO

Tendo vivido até 1991, passando pelos períodos czarista e bolchevista, como Estado totalitário, a Rússia vem procurando ingressar no rol dos países em que se respeita o Estado de Direito. Essa conquista tem sido difícil para um povo que nunca vivenciou a verdadeira democracia e que acostumou-se aos desmandos de dirigentes que não viam as leis como freios para seu arbítrio. Agora, principalmente com seu ingresso no Conselho da Europa, tem procurado adaptar-se às regras da Convenção Européia dos Direitos Humanos, (6) que exige uma série de modificações legislativas dos seus membros, dentre as quais a abolição da pena de morte.

A respeito do Estado de Direito diz o autor russo KRIASHKOV (2000:61/62):

Num sentido mais amplo, entende-se por Estado de Direito um Estado cujas organização e atividade, bem como a de todos os seus órgãos e entidades, sejam fundadas no direito e a ele estejam ligadas. Reconhece-se que um tal Estado existe onde o seguinte mínimo é assegurado: os direitos e as liberdades do homem e do cidadão; a soberania da Constituição e o princípio da legalidade; uma forma democrática de poder; a separação de poderes e, especialmente, a independência do Judiciário; e a responsabilidade mútua do Estado e dos cidadãos. Uma tal situação é característica para a maioria dos Estados europeus. E também a Federação da Rússia tem a intenção de viver de acordo com esse modelo.

Atualmente, pode-se constatar que a Rússia se encontra no início do caminho rumo a um Estado de Direito.Ela se liberta pouco a pouco do passado, no qual eram características as tradições do despotismo e da escravidão, a unipotência do Estado e a falta de direitos da população, um niilismo jurídico forte e muito difundido, a falta de experiência de qualquer forma significativa de liberdade, e a ausência de autonomia administrativa e de democracia do Estado constitucional. A herança do poder soviético deve ser sobrepujada em relação à sua mentalidade, a seus hábitos e às características de seu poder estatal. Tal ideologia encarava o Estado de Direito como uma quimera burguesa, direcionava a sociedade para o desaparecimento do Estado e do direito no "comunismo perfeito", colocava o partido comunista da União Soviética sobre todas as coisas, defendia o sistema monopartidário e excluía a possibilidade da divisão de poderes, sob a palavra de ordem "os sovietes são corporações produtivas".

A idéia da construção de um Estado de Direito tornou-se parte integrante da transformação democrática que começou na Rússia nos anos 80. Ela foi mencionada pela primeira vez na declaração sobre a soberania da República Socialista Soviética da Rússia, promulgada no primeiro congresso dos deputados do povo, em 12 de junho de 1990. Em tal declaração, ressaltou-se que a Rússia está decidida a criar um Estado de Direito com a separação entre legislativo, executivo e judiciário, garantindo os direitos e liberdades do homem e do cidadão. Um importante passo nessa direção foi também a promulgação pelo Soviete Supremo da URSS, em 22 de novembro de 1991, da declaração dos direitos e liberdades do cidadão, que corresponde, em linhas gerais, ao padrão internacional atual.

A idéia do Estado de Direito recebeu sua formulação definitiva na Constituição da Federação Russa, promulgada por meio de um referendo em 12 de dezembro de 1993.

Logo adiante, o ilustre doutrinador apresenta algumas formas de garantia do modelo constitucional do atual Estado de Direito russo, dentre as quais:

- A promulgação de leis que desenvolvam os princípios da Constituição. Apenas a sexta Duma promulgou, no período compreendido entre 1995 e 1999, cerca de 1.000 leis, das quais mais de 700 entraram em vigor. Atualmente, novos códigos estão em vigor – um civil, um orçamentário, um tributário (primeira parte), um aduaneiro e um penal, e leis federais que garantem os direitos e liberdades do cidadão (direito ao voto, liberdade de associação, liberdade de circulação, direito de recorrer à justiça contra decisões e ações ilegais, direitos das minorias nacionais, liberdade de pensamento, entre outros), mas também rege a organização e a atividade dos órgãos do Estado e dos órgãos da administração municipal autônoma (em relação ao governo da Federação russa, ao "status" dos deputados das Câmaras do Parlamento, aos representantes para direitos humanos na Federação, a seu sistema jurídico, ao "status" dos juizes, ao Tribunal Constitucional da Federação russa, aos órgãos do poder do Estado nas unidades da Federação e aos princípios gerais da organização da administração municipal autônoma, entre outros).

- A criação de institutos orientados para apoio ao Estado de Direito, assim o são, por exemplo, o Tribunal Constitucional da Federação russa (fundada em 1991, composto de 19 juizes, havia proferido cerca de 140 decisões em 1º de janeiro de 2000) e os tribunais constitucionais das unidades da Federação (existentes em mais de 30 unidades); os juízes comunais (seu número total deve ultrapassar 5,5 mil); o representante dos direitos humanos da Federação russa (ele foi nomeado para esse cargo pela Duma pela primeira vez em 22 de maio de 1998, e recebe em média cerca de 2.000 queixas por mês) e os representantes dos direitos humanos nas unidades da Federação (previstos em 11 unidades); a Comissão Eleitoral Central (que trabalha permanentemente e organiza a realização de plebiscitos e de eleições para os órgãos do poder); e o Tribunal de Contas, convocado pela Câmara da Federação Russa com a finalidade de exercer a fiscalização relativa à execução do orçamento federal.

- A reprodução prática das exigências do Estado de Direito, fortalecidas pela própria realidade: uma legislação ramificada nos planos federal e regional; o funcionamento da Justiça Constitucional; a independência dos tribunais e sua orientação para proteção dos direitos do cidadão (no ano de 1999, os tribunais trataram, por exemplo, de 115,5 mil queixas relativas à ações de autoridades públicas e órgãos da administração pública, das quais 74,6% foram deferidas); eleições regulares dos órgãos federais, regionais e municipais; um sistema pluripartidário (em dezembro de 1999, estavam registradas 139 associações políticas no Ministério da Justiça da Federação da Rússia); e a liberdade de imprensa – em formas e estereótipos do comportamento ocidental, o que lhes confere estabilidade.

- A integração da Rússia na sociedade européia. O ingresso da Rússia no Conselho da Europa, em 28 de fevereiro de 1996, significa que a Federação Russa se obrigou a observar o modelo de direito internacional contido no estatuto do Conselho da Europa e nas convenções européias (sobre a proteção dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e a proteção das minorias nacionais, entre outros) e submete-se às decisões dos grêmios dessa associação, especialemente às da Corte de Justiça Européia para direitos humanos (ressalte-se que, até o início do ano 2000, foram conhecidas cerca de 700 queixas de cidadãos russos). Essa filiação da Rússia tem resultados positivos, o que também é atestado pela transmissão da execução penal, e sua administração, do Ministério do Interior ao Ministério da Justiça da Federação Russa – uma das obrigações que a Rússia assumiu quando de sua entrada no Conselho da Europa. (p. 67/69).

Mais adiante acrescenta o autor:

A Federação Russa está construindo um Estado de Direito. Ela é uma meta. Para sua concretização foram criadas determinadas bases constitucionais e organizacionais. [...] No entanto, ao mesmo tempo, o que se conseguiu é apenas a fase inicial da formação do Estado de Direito. Ela não é nada concreta, e a soberania da lei ainda não se tornou uma idéia que tenha envolvido todas as pessoas. Segundo informações do Ministério da Justiça da Federação Russa, no ano de 1999 cerca de um terço de todos os atos normativos não estavam em conformidade com a Constituição e com a legislação federal. No aparelho estatal, casos de corrupção estão disseminados. Um problema consiste no excesso de trabalho dos juízes (que ultrapassa em três vezes a média), o que produz um efeito negativo sobre a qualidade das decisões, bem como dificuldades em sua execução, inclusive daquelas proferidas pelo Tribunal Constitucional. Em suma, como se constata em pesquisas de opinião, os cidadãos não confiam em medida suficiente nos institutos de poder do Estado; liberdade e igualdade são freqüentemente encaradas como valores humanitários e morais, e o Direito como algo que é "iluminado" exclusivamente pelo Estado e pela lei.

Atualmente são feitos esforços para assegurar a supremacia da Cosntituição e das leis. Para esses objetivos, foram criadas sete circunscrições federais na Rússia em maio de 2000, para as quais foram nomeados representantes do presidente da federação. Tenciona-se consolidar a vertical do poder, na medida em que se confere ao presidente o direito de destituir os chefes das unidades da Federação de seu cargo, após um determinado procedimento, caso estes violem a Constituição. Há também outras tarefas a serem cumpridas: deve se buscar um equilíbrio ótimo entre o legislativo e o executivo, deve-se determinar a posição do presidente da Federação Russa e do procurador geral no sistema da separação dos poderes; as relações mútuas entre as autoridades federais e regionais, bem como as relações entre os órgãos do poder do Estado e os órgãos da administração municipal autônoma, necessitam de um aperfeiçoamento; novos códigos de processo devem substituir os códigos manifestamente obsoletos e não democráticos – códigos penal e civil, mas também um código administrativo (nos moldes, por exemplo, do alemão ou do espanhol), com cujo auxílio se possa organizar o processo administrativo e a responsabilidade das autoridades públicas; a reforma do Judiciário, incluindo-se aí, também, a promulgação de leis relativas aos tribunais da justiça comum, à justiça administrativa e à advocacia, à formação de tribunais do júri e à criação da justiça constitucional nas unidades da Federação; a ocupação total dos cargos de juiz e o aumento da qualificação e da responsabilidade dos juízes deve continuar a ser implementadas.

3.7 – AS FONTES DO DIREITO SOVIÉTICO

3.7.1 – A JURISPRUDÊNCIA

Falaremos primeiro do período soviético e, logo depois, do período atual, ou seja, o federativo.

DAVID (1996:237/238), falando da jurisprudência aborda a concepção soviética da jurisprudência:

A função atribuída à jurisprudência na União Soviética aclara-se quando se conhece a concepção do direito que reina neste país e a maneira como são compostos os tribunais e outros organismos do contencioso. Está claro que, num país em que o direito está estreitamente ligado à política dos dirigentes, e onde se professa uma grande preocupação em tornar efetiva a soberania do povo representado pelo seu parlamento, a jurisprudência deve estar limitada, tanto quanto possível, a uma função estrita de interpretação da lei, não assumindo uma função criadora de regras jurídicas. Esta posição de princípio é reforçada pela ausência de uma casta judiciária com um poder plenamente independente. senão rival, do poder estatal. Uma tal casta jamais existiu na Rússia, onde os magistrados foram considerados, até 1864, como simples funcionários e onde, no período de 1864 a 1917, um corpo judiciário, consciente da sua autonomia, não teve tempo de se criar.

"Os juízes — diz-nos o art. 112 da Constituição soviética — são independentes e apenas submetidos à lei." A independência em questão neste artigo é uma independência em relação aos sovietes locais, aos órgãos de administração e à Prokuratura. Os juízes não podem receber nenhuma ordem da administração ou dos sovietes locais, e não são de forma alguma obrigados a conformar-se com as resoluções da Prokuratura em qualquer questão a eles submetida. Os juizes, entretanto, são submetidos à lei e não lhes é permitido serem indiferentes à política do governo: "O tribunal é um instrumento nas mãos da classe que governa; assegura o domínio dessa classe e vrote2e os seus interesses". Esta concepção, enunciada por Vychinski em 1937, continua ainda hoje verdadeira. 12 necessário compreendê-la bem: a independência dos juizes, em um país que defende o princípio da concentração do poder estatal no Soviete Supremo, nada tem a ver com a procura de um equilíbrio, pelo qual o poder judiciário viria contrabalançar o poder legislativo. Os juízes, aplicando a lei, serão sensíveis às diretrizes fornecidas pelo partido comunista ou pelo governo; numa certa época, considerarão, com um rigor particular, certos tipos de infrações, enquanto que noutras será admitida uma certa indulgência".

Mais adiante fala (pp. 238/239) na supremacia da lei:

Na União Soviética não existe qualquer controle da constitucionalidade das leis. Os tribunais não podem exercer um tal controle. Este também não pode ser exercido pela Prokuratura que tem apenas por função a alta fiscalização da estrita execução das leis, e não a da constitucionalidade delas. A única disposição que se relaciona com a constitucionalidade das leis é o art. 74 da Constituição, segundo o qual, em caso de contradição entre uma lei da R.S.S. e uma lei federal, é esta que deve ser aplicada.

Os tribunais soviéticos poderiam, contrariamente, sem ferir os princípios, ser autorizados a julgar sobre a legalidade de todas as resoluções tomadas pelos órgãos da administração estatal: Conselho de Ministros, ministérios e outras administrações. De fato, eles não exercem este poder. Só excepcionalmente é permitido aos cidadãos russos submeter à justiça a apreciação de um ato administrativo que julguem contrário à lei e que lhes traga prejuízo. Conta-se com a Prokuratura para impor à administração, ou aos sovietes locais, o respeito pela legalidade socialista.

A função dos tribunais é portanto, excluindo qualquer controle da constitucionalidade ou da legalidade, estritamente concebida como uma função de interpretação, com vista à aplicação de um direito soviético que eles não têm por missão nem criar, nem fazer evoluir, mas sim adaptar as circunstâncias. A própria lei soviética pode, se os seus autores julgarem conveniente, conferir em diversos casos, aos juízes, uma certa latitude. Fora destes casos os juízes não podem, por preocupação de eqüidade ou por qualquer outra causa, afastar-se das prescrições da lei. "O tribunal —declarou Lenin — é um órgão do poder estatal. Os liberais, por vezes, esquecem-no. Ë uma falta grave um marxista esquecê-lo." Podemos, nas nossas democracias liberais, admirar a obra criadora da jurisprudência e as preocupações de justiça social ou de eqüidade dos nossos juízes. O regime soviético pretende que os seus juízes se situem "no seu lugar". que é o de aplicação, e não o de criação, do direito. Aequitas legislatorí, ius judici magis convenit.

Tudo o que acaba de ser dito parece reduzir a função da jurisprudência em comparação com a que ela desempenha em muitos países burgueses. Esta impressão confirmar-se-á se nós considerarmos, na literatura jurídica soviética, o lugar ocupado pela jurisprudência. A única compilação jurisprudencial foi, durante muito tempo, a Prática dos Tribunais; esta deixou de existir em 1957, quando foi substituída por um Boletim do Supremo Tribunal da U.R.S.S. Os supremos tribunais das R.S.S. não existe ainda qualquer repositório metódico de jurisprudência. As obras doutrinárias até uma é o recente referiam-se a poucos acórdãos.

Quanto à importância real da jurisprudência afirma DAVID (1996: 239/241):

A conclusão que se é tentado a tirar de todas estas observações deve ser, entretanto, admitida com reservas. Na realidade, uma função muito importante pertence à jurisprudência, mesmo fora da função essencial, que consiste em fazer reinar a ordem e restabelecer a paz, resolvendo os litígios. Para compreender o papel criador e político desempenhado pela jurisprudência, é necessário colocarmo-nos no meio soviético, sem procurar encontrar aí o equivalente ao que estamos habituados nos países burgueses.

A preocupação da disciplina e da legalidade, que existe na União Soviética, não permite considerar uma formação ou uma evolução do direito, que teriam lugar de forma anárquica, por iniciativa dos juízes. Contudo, por outro lado, somos obrigados a reconhecer, com realismo, que a ordem legislativa comporta inevitavelmente lacunas. Certas leis são incompletas ou insuficientes; o exame da jurisprudência é útil para descobrir essas insuficiências ou lacunas. Por conseqüência, previu-se, na Constituição soviética, um controle da atividade judiciária que é exercido pelo órgão judiciário superior, o Supremo Tribunal, sendo, por outro lado, exercido um controle análogo sobre a atividade dos organismos de arbitragem pública pelo árbitro-chefe da União Soviética.

O Supremo Tribunal e o árbitro-chefe da União Soviética não se limitam a conhecer, pela via da revisão, processos já julgados por jurisdições ou organismos inferiores. Outra de suas funções consiste em publicar instruções para servirem de guia às jurisdições soviéticas, ou aos organismos de arbitragem pública, na aplicação das leis. Podemos dizer que o Supremo Tribunal e o árbitro-chefe da União Soviética, desenvolvendo esta atividade, transformam-se em órgãos da administração e deixam de exercer uma atividade jurisprudencial. Um autor soviético responderá que, ao criar regras de direito, o juiz inglês ou francês se transforma em órgão do poder legislativo e sai do seu papel propriamente jurisdicional. O que é importante notar é que, na União Soviética, a experiência dos tribunais não é negligenciada. Não são os julgamentos, nem mesmo os arestos, que serão citados para se saber qual é o direito; mas uma autoridade judiciária, à luz dos julgamentos e decisões proferidas, coopera no desenvolvimento do direito soviético, publicando instruções relativas à aplicação desse direito. Como no caso dos órgãos de administração estatal, sucede que estas instruções e circulares, que emanam do Supremo Tribunal, assim como do árbitro-chefe da União Soviética, apenas podem intervir "no quadro das leis em vigor". Na prática, isso apenas significa que elas não deverão ser contrárias às leis; de fato, a sua função será não só determinar como deve ser concebida a aplicação de uma dada lei, mas também preencher uma lacuna de ordem legislativa. A título de exemplo pode citar-se uma circular relativa à aplicação do código de família, que fornece aos juízes diretrizes referentes às possíveis causas de divórcio (a lei não as determina concretamente). O Supremo Tribunal da União Soviética tem, independentemente disso, desde 1958, o direito, confirmado na Constituição de 1977, de apresentar projetos de lei ao Soviete Supremo; atualmente este direito de iniciativa legislativa tem sido utilizado com freqüência.

Por outro lado, na União Soviética, deu-se conta do interesse que poderia haver na referência aos acórdãos de jurisprudência, com vista a apresentar, de forma mais expressiva e concreta, as disposições do direito. As obras de doutrina procuram, cada vez com mais freqüência, ilustrar as regras que elas apresentam com a ajuda de exemplos tirados da jurisprudência, relativamente à qual os autores se mostram muitas vezes críticos. Em anos recentes publicaram-se mesmo obras consagradas especialmente ao estudo de questões submetidas à jurisprudência neste ou naquele ramo do direito. Referências à jurisprudência surgem, mais freqüentemente, na revista O Estado Soviético e o Direito (Sovetskoe Gosudarstvo i Pravo). A jurisprudência também não é ignorada pelo legislador; os Princípios Fundamentais do Direito Civil, adotados em 1962, consagraram várias soluções que a jurisprudência havia anteriormente admitido.

DAVID fala do papel educador da jurisprudência:

Não se poderia terminar o estudo da função da jurisprudência no direito soviético sem se perguntar como esta função é concebida segundo a própria doutrina soviética. Esta considera o problema de maneira diferente da que se observa nos nossos países. Partindo da premissa que o direito é um aspecto da política, ela insiste na função que cabe aos tribunais de cooperarem no sucesso da política dos dirigentes. Os tribunais não têm apenas a função de interpretar e aplicar as leis soviéticas da maneira que foram descritas. Devem ainda assegurar o êxito da política governamental e preparar o desaparecimento do direito, participando ativamente na obra de educação do povo soviético. Devem pôr em evidência, em cada caso que tenham de resolver, e especialmente no espírito dos assessores populares, que a solução dada ao litígio, fundamentada na aplicação da lei soviética, e uma solução ao mesmo tempo razoável e justa, aquela que todo cidadão honesto deve alegrar-se de ver dada ao litígio. A parte que perde no processo e o próprio condenado devem aprovar a sentença proferida; a opinião pública deve apoiar essa sentença e estar de acordo com a lei soviética, com fundamento na qual ela foi proferida. O tribunal soviético deve evitar ser um espetáculo, deve ser uma escola 22, Interessa mostrar que, ao realizar-se um Estado socialista, se entrou no reino da justiça.

A situação atual é a seguinte.

Após a queda da União Soviética, a Justiça da Rússia passou por uma verdadeira mutação, uma vez que o Soviete Supremo, que centralizava todo o poder do país, anulando verdadeiramente o Legislativo e o Judiciário, que, na verdade, não existiam como Poderes, perdeu-se no vácuo, surgindo, com a Constituição atual, de 1993, os três Poderes tradicionais: Legislativo, Executivo e Judiciário, conforme os padrões de um verdadeiro Estado de Direito

Dessa forma, com um Judiciário pela primeira vez autônomo dentro de toda a história da Rússia, esse Judiciário, no início, apresentava-se inseguro principalmente em face do Poder Central de Moscou e dos Poderes Executivos das unidades federadas, no primeiro caso quando se tratava do Judiciário Federal e no outro em que dizia respeito aos Judiciários das mencionadas unidades.

Entretanto, no curso desses poucos anos que nos separam da edição da Constituição da Federação da Rússia, os juízes ganharam força e consciência de que são realmente um Poder e não apenas meros funcionários do Estado.

Assim, seguindo o exemplo de atuação decidida dos juízes da Corte Constitucional, os demais juízes das outras esferas têm procurado aplicar o Direito com plena consciência de estarem formando um Direito da nova época, tanto quanto trabalham nesse sentido os legisladores e doutrinadores.

Hoje em dia pode-se dizer que não existe mais diferença substancial entre a Justiça da Rússia e a dos demais países da civil law. O que falta para igualá-los a esses outros países é apenas uma vivência que somente o tempo lhes dará para que produzam mais e melhor em termos de elaboração jurisprudencial.

3.7.2 – 0 COSTUME

DAVID (1996:249/251) fala sobre o costume russo da época socialista:

O que foi dito sobre a doutrina marxista-leninista e sobre a função da lei no direito soviético deixa perceber que, neste direito, é reconhecida uma funcão muito restrita ao costume. A total transformação da sociedade e do próprio homem, que se procura realizar para instaurar um regime comunista, implica uma alteração revolucionária, na qual não se podem manter os costumes do que parece uma época extinta.

O costume, na União Soviética, apenas conserva uma certa importância, à medida que é útil ou necessário para a interpretação ou aplicação da lei (consuetudo secundum legem) ou nos casos, pouco numerosos, em que a própria lei se refere ao costume ou aos hábitos, confiando-lhes um certo domínio.

O lugar de segunda ordem atribuído ao costume no sistema de direito soviético nada tem que surpreenda. Mas nem por isso deve deixar de ser sublinhado, porque marca uma rejeição completa da tradição russa. A rejeição do costume pelo direito soviético nada tem a ver com o fenômeno que, nos países da família romano-germânica, nos séculos XIX e XX, substituiu por um direito essencialmente legislativo, fundado em códigos, um direito outrora consuetudinário. Essa transformação que advinha sobretudo da técnica não teve, regra geral, nem por objeto, nem por resultado, mudar profundamente as soluções do direito consuetudinário. Neste aspecto, verificou-se, na União Soviética, uma transformação que acompanhou a mudança de técnica; tentou-se, a partir de uma verdadeira revolução civil, que os cidadãos se acostumassem a viver de outra maneira e segundo novas regras.

As regras socialistas de vida em comum. O declínio do costume, na União Soviética, deve ter um caráter provisório. O ideal marxista-leninista é a construção de uma sociedade na qual deixará de existir o direito e onde as relacões entre os homens serão reguladas unicamente pelo costume. Rejeitado hoje, o costume será futuramente chamado a desempenhar uma função de primeiro plano, logo que se atinja uma situacão social na qual se poderá passar sem o direito. O futuro assim prometido ao costume surge desde já em certas fórmulas que, nas leis soviéticas ou na doutrina soviética, se referem às regras de vida em comum em uma comunidade socialista. A Constituição da União Soviética (art. 69, al. 2) enuncia: "O cidadão da União Soviética deve observar as normas da Constituição da União Soviética e as leis soviéticas, reajustar as regras de vida na sociedade socialista e manter dignamente o elevado título de cidadão da União Soviética".

Na União Soviética e no estrangeiro, os autores interrogam-se sobre o valor que conviria dar à fórmula análoga, que existia na Constituição de 1936, e sobre as conseqü€ncias que seria permitido tirar dela. Para alguns, a referencia às regras da comunidade socialista pareceu constituir uma fórmula suscetível de substituir a ordem pública e os bons costumes dos direitos burgueses. Outros viram aí o fundamento de uma espécie de costume praeter legem, suscetível de impor certas obrigações aos cidadãos (especialmente a obrigação de ajudar o seu próximo, em certas circunstâncias), além dos casos em que essas obrigações resultem de um texto de lei. Concebida desta dupla maneira, a fórmula usada na Constituição teve pouca aplicação, à exceção dos casos em que suas conseqüâncias foram determinadas de uma forma mais concreta por textos da lei soviética’.

Realmente a fórmula da Constituição tem uma significação muito diferente; alteram-na quando lhe querem dar um conteúdo jurídico e fixar-lhe os limites nos quadros de ordem jurídica. As "regras de vida em comum", às quais se refere a Constituição, não são nem querem ser jurídicas. Esta fórmula só pode ser compreendida se se considerar a era futura de uma sociedade comunista: desaparecerá então o direito, e apenas ficarão as regras de vida numa comunidade socialista, para dirigir o comportamento dos homens. Atualmente, a fórmula da Constituição tem apenas um alcance restrito; serve, contudo, de fundamento para certas experiâncias, que são feitas na União Soviética, de novas formas sociais. As regras de vida em comum numa sociedade socialista são a base de todas as atividades pelas quais os cidadãos podem, a partir de agora, cooperar voluntariamente na administração do país, inscrevendo-se na milícia ou nos serviços sociais, por exemplo. Estas atividades prefiguram o que será a realidade total da vida social na sociedade comunista de amanhã.

A situação atual é a seguinte.

Tal como acontece nos demais países da família civil law, o costume ocupa uma área muito restrita no mundo jurídico.

Com a modificação radicial havida no Direito russo a partir de 1991, principalmente, da edição da Constituição de 1993, o Direito russo atual é muito semelhante ao dos demais países da Europa Central, ou seja, tem como sua fonte principal a lei.

Observa-se no Direito russo atual a influência decisiva da França e Canadá, que mantêm com a Rússia um convênio na área jurídica visando a prestar-lhe assessoria nas modificações jurídicas que estão sendo implementadas.

Também o Conselho da Europa tem influenciado imensamente inclusive na elaboração de leis recentes, tanto que, antes dos projetos de lei serem votados na Câmara dos Deputados da Rússia, esses projetos são analisados pelo Conselho da Europa, que verifica sua adequação às normas que edita e que são as regras jurídicas seguidas pela Corte Européia de Direitos Humanos.

3.7.3 – A DOUTRINA

DAVID (1996:253/255) fala sobre a doutrina do período socialista:

A doutrina na União Soviética recorre, tal como as outras fontes do direito, a observações que fazem sobressair a originalidade do sistema de direito soviético.

Quando se fala da doutrina e da sua função no direito soviético, não nos podemos limitar a considerar os trabalhos propriamente jurídicos lá publicados. Torna-se necessário, mesmo antes de uma referencia a estes trabalhos, levar em consideração os documentos nos quais foi expressa com autoridade a doutrina marxista-leninista, visto que o direito na União Soviética só se concebe como a aplicação desta doutrina, que constitui a própria base da política dos dirigentes soviéticos.

Os autores soviéticos estão imbuídos desta convicção. Tanto mais que, nas obras ou artigos escritos pelos juristas, estes apóiam de forma constante as suas afirmações com citações tiradas ou com referencias feitas às obras dos "pais da doutrina" marxista: obras completas de Marx, de Engels e de Lenin, principalmente, que constituem o fundo de toda a biblioteca jurídica, escritos ou discursos de homens políticos soviéticos, programas e resoluções do partido comunista. Estes últimos documentos não constituem, rigorosamente falando, direito, mas a sua autoridade doutrinal é incontestada: nestas resoluções encontra-se o enunciado autorizado da doutrina marxista-leninista, tal como é atualmente concebida na União Soviética, no que concerne às mais diversas questões. Um urista soviético, ou uma pessoa que queira estudar o direito soviético, recorre constantemente a essas obras.

A doutrina propriamente jurídica. Ao lado destes documentos básicos que permitem discernir o espírito do direito soviético e que fixam a linha de conduta a seguir para o exame de diversas questões particulares, o que entendemos mais particularmente por "doutrina" nos países burgueses, isto é, a obra mais especificamente jurídica dos autores, apresenta igualmente traços particulares na União Soviética. A organização deste país obriga, de fato, a distinguir, quase completamente, aqueles que se dedicam ao ensino e os que se dedicam à pesquisa.

Os professores de direito não têm por tarefa a crítica do direito: devem simplesmente esforçar-se por facilitar o seu conhecimento e aplicação, tornando claro o que o legislador quis; devem igualmente, como os juizes, procurar assegurar o sucesso da política do governo, valorizando, para convencer os cidadãos, o caráter eminentemente sábio e justo do direito soviético. As obras que escrevem, em cumprimento desta tarefa, não visam a originalidade. São, freqüentemente, a obra de um grupo (kollektiv) de autores, dos quais um redator-chefe dirige a colaboração. A obra, antes de ser impressa, é, regra geral, submetida à crítica de uma comissão que a examina em pormenor, do ponto de vista da sua conformidade com o direito e com a ortodoxia do regime.

Função diferente é a daqueles que optaram por uma carreira de pesquisa. Não ensinam nas faculdades de direito e não são professores são "colaboradores científicos" no seio de um instituto da União Soviética ou de uma R.S.S. O instituto mais importante é o Instituto do Estado e do Direito da Academia de Ciências da U.R.S.S., que emprega cerca de 400 colaboradores repartidos nor diversas seções. Notáveis são também, no plano federal, o Instituto de Pesquisa Científica de Legislação Soviética, junto ao Ministério da Justiça da União Soviética, e o instituto especializado em ciências criminais ligado à Prokuratura. O trabalho de pesquisa, nos diferentes institutos, está organizado de acordo com um plano, mas o próprio plano está estabelecido, em larga medida, com base em propostas feitas pelas diferentes seções e pelos pesquisadores que elas comportam; as autoridades que decidem como será o plano não fazem mais do que precaver-se de modo a evitarem que as múltiplas investigações sejam feitas sem a coordenação desejada num mesmo assunto, e a controlarem o desejo de expansão ou, pelo contrário, a tendência para a rotina desta ou daquela seção. As obras preparadas pelos pesquisadores são objeto de profundas discussões na sua seção, ou a um nível mais elevado, antes de serem impressas mas é sob o nome do investigador individual que as preparou que são publicadas. Os institutos — pelo menos os mais importantes dentre eles — dispõem de excelentes bibliotecas e de numerosas facilidades para o trabalho dos seus colaboradores, e o resultado da investigação assim organizada são obras de excelente qualidade. O trabalho feito pelos institutos foi, durante muito tempo, prejudicado por diferentes fatores. Numa atmosfera mais livre pode-se hoje reagir contra uma atitude de excessivo conformismo. A função da ciência não se poderia limitar à simples exposição do direito soviético atual, procurando valorizar os seus méritos. A investigação orientou-se, recentemente, para novos caminhos; um lugar cada vez mais importante é atribuído à sociologia, especialmente por aqueles que examinam problemas de direito criminal, de família e de trabalho; um novo interesse se manifesta igualmente pelo direito comparado, especialmente considerado através do direito dos outros paises socialistas.

HUNGRIA (1953,I:12) faz menção à doutrina de ANOSSOW, penalista russo, defendendo a abolição do "nullum crimen sine lege" da "Escola Penal Positiva" e argumenta: "O direito não tem a mobilidade da vida, mas não é isso razão para que fatos perigosos fiquem impunes por falta de um adequado artigo no Código Penal".

Na verdade, a doutrina no período socialista limitava-se a corroborar a teoria socialista, mas nunca teve liberdade de valorizar outras correntes de pensamento.

Quanto aos autores que pretendessem contrariar a tese socialista, não lhes era autorizado publicar suas obras.

Em resumo, a possibilidade de crítica, que é importante para o aperfeiçoamento dos institutos jurídicos, não era permitida, gerando uma grande estagnação no Direito russo.

A situação atual é a seguinte.

Atualmente, mudado o rumo do Direito, que não é mais mero apêndice da Política, mas sim um ramo independente da Ciência, os estudiosos do Direito na Rússia agora têm liberdade absoluta de escreverem da forma que entendem mais adequada para informar a classe jurídica sobre os temas que lhe interessam.

O papel das Faculdades de Direito e Institutos de Pesquisa, no entanto, continua extremamente relevante, pois é aí, mais do que nos Tribunais, é se fazem os estudos mais apurados sobre os temas novos e antigos.

Portanto, nesses últimos anos os juristas russos vêm tentando se modernizar em termos de doutrina.

3.7.4 – A LEI

DAVID (1997:205/206) afirma quanto ao princípio da unidade dos poderes no período socialista:

Primeiramente surge uma diferença do ponto de vista político. Conhece-se a distinçâo, feita nos países burgueses, entre a lei no sentido formal e a lei no sentido material. A lei no sentido formal é o ato votado pelo parlamento e promulgado pelo poder executivo; a lei no sentido material é o ato, que não provém necessariamente do poder legislativo, que contém disposições de alcance geral, que impõe a sujeição a certas regras de conduta.

Esta distinção não é somente descritiva. Nos países democrático-liberais, ela é considerada como desejável. De acordo com o princípio de separação dos poderes tenta-se, nestes países, realizar um certo equilíbrio de poderes. Ë normal, nestas condições, que as regras de conduta, prescritas pelo direito, emanem de fontes diversas e que sua criação não seja privilégio de um dos poderes.

A doutrina marxista-leninista repudia o princípio de separação dos poderes. Ela está em condições favoráveis para fazer ver como, na realidade do mundo moderno, esse princípio conduz cada vez mais ao enfraquecimento da verdadeira função da lei — que é obra do parlamento —em proveito dos outros "poderes", especialmente do poder executivo ou administrativo. O desenvolvimento da prática dos decretos-leis, a nova distinção da lei e do regulamento feita na França pela Constituição de 1958, a independência do poder judiciário em relação ao poder legislativo nos países da common law são denunciados como processos hábeis de atentar contra o princípio de soberania do povo. Na União Soviética não se admitem essas práticas contrárias a uma verdadeira democracia; todo o poder se encontra nas mãos do Soviete Supremo; em cada R.S.S. todo o poder está nas mãos do Soviete Supremo da República. Os conselhos de ministros da União Soviética e das R.S.S., todas as administrações e os juízes estão subordinados a estes sovietes supremos. Não é questão de separação, nem de equilíbrio dos poderes; existe somente uma repartição de funções entre os diversos órgãos de administração estatal, as jurisdições e a Prokuratura, mas não se poderia admitir que as administrações ou jurisdições se apresentassem como rivais do Soviete Supremo, que é o órgão máximo do poder estatal, de acordo com o princípio da unidade dos poderes admitido na União Soviética.

O poder legislativo é exclusivamente exercido pelo Soviete Supremo da União Soviética ou da R.S.S., e não se pretende enfraquecer ou modificar este princípio, fazendo uma distinção da lei no sentido formal e da lei no sentido material. As leis, no sentido material, devem ser também leis no sentido formal.

DAVID (1997:207/208) afirma quanto à aplicação do princípio:

Uma dificuldade se apresenta. Como pode-se, na prática, pôr em aplicação este princípio e fazer com que as leis, em uma sociedade tão complexa como a da União Soviética, sejam todas feitas pelo parlamento? A doutrina soviética vê na prática dos decretos-leis e no reconhecimento e extensão de um poder regulamentar autônomo, observados nos países burgueses, o resultado de uma conspiração contra a soberania do povo. Mas os juristas dos países burgueses apresentam esta evolução de outra maneira: como o resultado da multiplicação das tarefas assumidas pelo Estado, imposta pelas necessidades de uma administração eficaz. Como, na União Soviética, se conseguiu conciliar o respeito pela soberania popular a uma sociedade de administração eficaz?

Um meio de o conseguir poderia consistir no aumento da esfera de competência e dos poderes dos sovietes locais, que exprimem, com o mesmo direito que os sovietes supremos, a vontade popular. Esta descentralização do poder não é a via que, de uma maneira geral, foi seguida até agora, se bem que os sovietes locais tenham visto sua competência aumentar desde alguns anos.

Foi utilizada uma outra via. A prática dos decretos-leis é desconhecida na União Soviética, e jamais se consentiu qualquer delegação do poder legislativo aos órgãos da administração estatal, em especial aos conselhos de ministros. As exigências da eficácia são satisfeitas, sem que sejam atingidos os princípios, pela prática de uma delegação permanente que o Soviete Supremo admite no intervalo das suas sessões, não ao governo, mas ao seu próprio Presidium. As leis são, assim, obra exclusiva da autoridade legislativa. Na realidade, elas são freqüentemente obra do Presidium, cujas decisões são ratificadas pelo Soviete Supremo: para o compreender basta considerar o número e a duração das sessões do Soviete Supremo. O Soviete Supremo da União Soviética tem geralmente duas sessões em cada ano, que não duram mais de dois ou três dias cada. O Soviete Supremo só é chamado a votar diretamente certas leis particularmente importantes (Constituição, leis que aprovam os planos de desenvolvimento econômico e social, códigos ou princípios fundamentais da legislação). Pretende-se que os representantes do povo votem eles próprios a lei; esta será votada por unanimidade, depois de um debate que exaltará o progresso assim realizado na edificação do socialismo. Todas as outras disposições são adotadas por decreto do Presidium do Soviete Supremo ou por regulamentos do Conselho de Ministros. O Soviete Supremo pode modificar livremente a Constituição da União Soviética, e não pode existir, nestas condições, nenhuma espécie de controle judiciário da constitucionalidade das leis.

O Conselho de Ministros está autorizado pela Constituição a elaborar decretos e regulamentos, mas esta atividade só se deve exercer "com fundamento e para execução das leis vigentes". Não se reconhece, na União Soviética, a existência de um poder regulamentar autônomo. Na realidade, as fórmulas muito amplas empregadas nos textos da lei deixam às autoridades administrativas um grande espaço de ação, e a maior parte das medidas que organizam a vida na União Soviética são tomadas pelo Conselho de Ministros ou pelas autoridades que lhe são subordinadas.

De resto, quer se considere a atividade do Presidium ou a do Conselho de Ministros, é necessário, para ter uma visão realista da situação, ter em conta as estreitas ligações que existem entre esses dois organismos e o partido comunista da União Soviética. A Constituição de 1977 as evidenciou no seu art. 6, segundo o qual "o partido comunista da União Soviética é a força que dirige e orienta a sociedade comunista"; desta forma o secretário geral do partido comunista tornou-se chefe do Estado soviético, função que pertencia antes de 1977 ao Presidium do Soviete Supremo. A nova Constituição, na realidade, apenas consagrou o que já existia de fato. Antes de 1977 já era o partido comunista que, na realidade, dirigia a política da União Soviética. No interior do partido as decisões são tomadas, teoricamente, pelo comitê central do partido comunista, e de fato pelo seu órgão político (Politburo) assistido pela Secretaria.

DAVID (1997:208/209) afirma quanto ao federalismo soviético:

A União Soviética, formada por 15 repúblicas socialistas soviéticas (R.S.S.), é um Estado federal. Sua extensão territorial e a multiplicidade das nacionalidades que nela coexistem tomam necessária esta estrutura federal, que o regime czarista não soubera estabelecer. O Soviete Supremo é composto de duas assembléias. Desde a Constituição de 1977 (art.110) o número de deputados é igual em cada uma delas. Ao lado de um Soviete da União, onde os deputados são eleitos proporcionalmente ao número de habitantes, sem considerar a divisão em repúblicas, o Soviete Supremo comporta um Soviete das Nacionalidades, onde se considera esta divisão, bem como, eventualmente, a existência nas R.S.S. de repúblicas, regiões ou distritos autônomos. O federalismo soviético é, contudo, atenuado pelo modo fortemente centralizado como se organizou o partido comunista na União Soviética; os governos das diversas R.S.S. são, de fato, dominados por este partido.

Sendo a União Soviética um Estado federal, a repartição dos poderes é feita entre autoridades federais e autoridades das repúblicas federadas.

No que diz respeito às competências legislativas, produziu-se uma evolução depois da morte de Stalin. A Constituição de 1936 previra a elaboração de leis ou códigos federais para toda uma série de ramos do direito: organização e processos judiciários, direito penal, direito civil. Contudo, os trabalhos que visaram a elaboração de códigos federais só tiveram como resultado simples projetos que não foram publicados. Depois de 1953, produziu-se uma reação contra a excessiva centralização da época stalinista. A Constituicão da União Soviética foi modificada, e o novo princípio então admitido foi retomado pela Constituição de 1977 (art. 73), salvo algumas exceções que sem dúvida permanecerão (código aéreo, código alfandegário, código do comércio marítimo). O Soviete Supremo é encarregado de garantir a unidade da legislação em todo o território da Uniao Soviática, e o faz de preferência pelo estabelecimento dos "princípios fundamentais da legislação", em conformidade com os quais cada R.S.S. promulga seus próprios códigos e leis.

DAVID (1997:209/210) afirma quanto aos princípios fundamentais do Direito e Códigos recentes:

Foram promulgados princípios fundamentais em 25 de dezembro de 1958, nas áreas de organização judiciária, direito e processo penal; os princípios fundamentais do direito civil e do processo civil foram promulgados a 8 de dezembro de dezembro de 1961; os princípios fundamentais do direito de família e os do direito agrário foram promulgados em 1968, os da legislação sobre trabalhos corretivos e sobre a saúde pública em 1969 e os da legislação do trabalho e da legislação sobre as águas em 1970; os da legislação sobre a educação nacional em 1973, sobre as infrações administrativas em 1980, e sobre a habitação em 1981. A obra de codificação, empreendida na base destes princípios, foi ativamente executada nas diversas repúblicas. A maior das repúblicas socialistas soviéticas a R.S.F.S.R., promulgou a sua nova lei de organização judiciária assim como o seu novo código penal e o seu novo código de processo penal em 1960; adotou, em 1964, o novo código civil e o novo código de processo civil; em 1969, o novo código do casamento e da família, e em 1970 adotou o seu código agrário.

As disposições decretadas nos "princípios fundamentais" são geralmente reproduzidas textualmente nos códigos, sob reserva de indispensáveis adaptações. As leis ou códigos estabelecidos na base destes princípios são, contudo, muito mais pormenorizados que estes últimos:a lei de organizacão judiciária da R.S.F.S.R. comporta, assim, 64 artigos, enquanto que os Princípios Fundamentais comportam 39; o número de artigos é para o código penal da R.S.F.S.R. de 269 (Princípios: 47) para o código de processo penal da R.S.F.S.R. de 413 (Princípios: 54) o código civil da R.S.F.S.R. comporta 569 artigos fundados sobre 106 artigos dos Princípios. Estes números são interessantes de notar, porque fornecem indicação da margem de autonomia dada a cada R.S.S. De uma maneira geral, esta autonomia é utilizada de uma forma moderada. Não existe nenhum organismo que vise a coordenação dos códigos e assegure a sua identidade, mas a prática utilizada é a comunicação às outras R.S.S. do projeto do código que se estabeleceu e, de fato, há realmente interesse em que os códigos sejam tão próximos quanto possível um dos outros.

DAVID (1997:209/210) afirma quanto aos decretos do Presidium:

As condições nas quais se reúnem e funcionam os sovietes supremos da União Soviética e das R.S.S. fazem com que as leis propriamente ditas (zakon), votadas pelos sovietes supremos, sejam pouco numerosas. Só se recorre a este processo quando se quer dar uma solenidade particular a uma lei. Na prática, quase sempre as leis são substituídas por decretos (oukaz) elaborados pelo Presidium do Soviete Supremo; esta prática mostra-se tão natural que foi mesmo seguida, em certos casos, para introduzir modificações na Constituição. Os sovietes supremos limitam-se a aprovar em bloco, em cada uma das suas sessões, os oukaz aprovados no intervalo das sessões pelo seu Presidium, sem entrarem em discussão das dispoições tomadas por estes decretos.

Leis e decretos constituem a base da ordem jurídica soviética. Os dois são fáceis de conhecer. São, com efeito, publicados nos diversos jornais oficiais da União Soviética e das R.S.S. Coleções de leis e decretos cronológicos ou sistemáticos foram publicadas no que diz respeito ao direito da União Soviética assim como ao das diversas R.S.S.

DAVID (1997:210/211) afirma quanto a outras medidas de regulamentação:

As medidas tomadas com fundamento e para execução das leis pelo Conselho de Ministros e pelos diferentes ministros da União Soviética ou das R.S.S. são de natureza e formas muito diversas: decretos elaborados pelo Conselho de Ministros ou por um ministério, por vezes subscritos pelo comitê central do partido comunista; convenções coletivas ou condições gerais de entrega ou de transporte aprovadas por um ou vários ministérios interessados; estatutos- modelos de kolkozes ou de sovkozes ou de empresas artesanais, ou estatutos de um trust ou combinat determinado; instruções dirigidas a esta ou àquela administração ou a este ou àquele grupo de empresas. A complexidade desta regulamentação á considerável, ultrapassando a que já se deplora nos países burgueses. A razão desta complexidade é o segundo fator a que fizemos referência, e que modifica o papel atribuído à lei em um país socialista, a saber: a coletivização da economia nacional.

DAVID (1997:211/212) afirma quanto ao papel da administração na economia soviética:

Devido à coletivização dos bens de produção e ao dirigismo autoritário ao qual está submetido o desenvolvimento da economia nacional, a administração échamada a assumir, no domínio econômico, em um país socialista, tarefas sem relação com as que ela deve executar nas democracias liberais. A diferença não á apenas de ordem quantitativa, mas é também de ordem qualitativa. Estando as empresas do setor econômico coletivizadas, e aparecendo como outros tantos "estabelecimentos públicos", toma-se arbitrário, apesar da autonomia contábil e de gestão que lhes á reconhecida, traçar limites claros entre o ato administrativo, considerado sob as suas diversas formas, e o ato contratual concluído pelas empresas ou grupos de empresas.

Nas democracias de tipo liberal — porque elas se afastam cada vez mais do tipo liberal — encontramos uma imensidade de regulamentos, decretos, deliberações que visam a aplicação das leis votadas pelo parlamento. Existe, contudo, nestes países, um vasto setor onde se pode exercer o livre jogo da economia privada. As empresas comerciais, industriais ou agrícolas estão sujeitas, cada vez mais, a uma regulamentação no quadro da qual devem organizar a sua atividade; conservam, contudo, uma grande liberdade no que diz respeito à orientação que darão à sua atividade, à maior ou menor expansão que adquirirão, ao lugar onde estabelecerão sucursais, aos contratantes com os quais farão negócios, etc. A liberdade do dirigente da empresa e o princípio de liberdade contratual sofrem restrições cada vez maiores; contudo, ainda são a regra, e á por isso que ainda se fala, apesar de todas as restrições, de democracias liberais.

O inverso é verdadeiro na União Soviética, que á uma democracia socialista. As empresas, neste país, têm como razão de ser a execução do plano de desenvolvimento econômico da nação. A sua atividade á, por sua vez, fixada e limitada pelos estatutos que receberam do Estado e pelas disposições do plano: devem fazer o que lhes é imposto pelo plano; não podem fazer nada que exceda a esfera de ação que lhes foi concedida pelo seu estatuto particular. Desta dupla regra resulta a importância, sem precedente, reconhecida à regulamentação administrativa na União Soviética; a administração deve, atravás de seus regulamentos, decretos, etc., à parte todas as funções que lhe competem nos países liberais, realizar a maior parte da função econômica, que em outros países é desempenhada pela iniciativa das empresas privadas. Daí resulta um volume numeroso de medidas de natureza diversa tomadas pelos diferentes ministérios; um autor ocidental julgou poder afirmar que, nos primeiros 50 anos do regime, cerca de 390.000 deliberações ministeriais tinham sido tomadas, das quais cerca de 15.000 continuavam em aplicação em 1967.

A doutrina faz, nas democracias liberais, uma diferença nítida entre o decreto ou regulamento e a circular administrativa, por um lado, e o ato administrativo ou o contrato, por outro. Estas diferenças se atenuam no direito soviético.

DAVID (1997:212) afirma quanto aos atos regulamentares e instruções de serviço:

A diferença entre atos regulamentares e circulares ou instruções de serviço reside essencial-mente no fato de os primeiros estabelecerem regras obrigatórias para todos, enquanto que as segundas se limitam a dar às administrações diretivas que não criam regras de direito. Todavia, nas próprias democracias liberais, as administrações não questionam a legalidade das instruções de serviço que recebem; aplicam estas instruções em pé de igualdade com as regras de direito. Esta atitude e esta confusão são reforçadas na União Soviética, visto que neste pais os atos importantes da vida econômica são todos efetuados por instituições públicas. Estas podem ter uma personalidade autônoma, mas não estão, por esse fato, menos dependentes de um ministério. É pouco provável que façam distinção entre os atos regulamentares e as circulares que lhes são comunicadas.

DAVID (1997:212/213) afirma quanto aos atos administrativos e contratos:

A distinção entre o ato administrativo e o contrato perde também a sua clareza nas condições criadas pela estrutura econômica soviética. Os contratos entre estabelecimentos públicos têm por base os dados do plano de desenvolvimento econômico da nação. A sua função essencial é a concretização dos dados do plano. São, aparentemente, o equivalente dos contratos que são concluídos livremente — anarquicamente, dizem os marxistas — nas economias liberais. Pareceu vantajoso, na União Soviética, conservar-se a técnica dos contratos no setor coletivizado; mas isso se deve mais a uma preocupação de boa gestão administrativa, do que ao desejo de reconhecer uma esfera de ação e de liberdade própria aos dirigentes das empresas. Seria perfeitamente concebível que se suprimisse inteiramente o contrato nas relações entre estabelecimentos ou organizações do setor coletivizado; para isso, bastaria desenvolver mais pormenorizadamente o plano, fazendo intervir organismos administrativos apropriados; os contratos tomar-se-iam, então, inúteis. Isto não pode conceber-se nas economias liberais; não é, de maneira nenhuma, impossível na economia socialista, onde o problema das relações entre atos administrativos de planificação e contratos levanta somente a questão das respectivas vantagens da centralização e da descentralização na vida administrativa e econômica; não se trata, como nas democracias liberais, de encontrar uma solução ótima de equilíbrio entre as exigências contraditórias da autoridade e da liberdade.

DAVID (1997:213/214) afirma quanto à dificuldade de documentação:

Em relação às observações que acabam de ser feitas, e com o esquecimento das fronteiras entre atos regulamentares, instruções de serviço e até contratos, torna-se muito difícil reunir uma documentação jurídica satisfatória sobre qualquer ponto relativo à vida administrativa ou econômica soviética. A linha divisória entre o que interessa ao público em geral ou somente a uma ou algumas empresas, o que, por conseqüência, deve normalmente ser publicado, e o que não tem nenhuma necessidade de se publicar, não está traçada de maneira clara na União Soviética, considerando uma distinção de princípio entre atos regulamentares e outros atos. Critérios mais sutis podem ser utilizados; ou, mais provavelmente, um total empirismo preside a escolha que é feita. Este empirismo está de acordo com a tradição. Os antigos órgãos (prikaz) que precederam, na Rússia, a instituição dos ministérios organizavam, cada um por sua conta, compilações dos atos administrativos que interessavam à atividade dos seus agentes, e essas compilações eram postas exclusivamente à disposição dos ditos agentes. A situação pode exprimir-se em termos modernos, dizendo que não existiam regras de direito público propriamente ditas, mas apenas um costume ou uma prática administrativa sem atos regulamentares, mas apenas instruções de serviço para uso dos agentes. Esta tradição dos antigos prikaz russos voltou a ser moda na prática soviética. Cada ministério organizou uma ou várias compilações das disposições, de natureza administrativa, que interessam aos agentes do dito ministério ou às instituições cuja atividade é dirigida e controlada pelo ministério. Essas compilações são destinadas ao uso interno dos ministérios; são distribuídas apenas pelos serviços ou instituições dependentes do ministério que as organizou; não são postas no comércio, nem se encontram regularmente nas bibliotecas públicas soviéticas. Só são publicados nos jornais oficiais os atos aos quais se deseja, por alguma razão, dar publicidade. Todos os outros atos têm um caráter de certa maneira confidencial, como é o caso das circulares da maior parte das nossas administrações, O receio da espionagem econômica fez com que se regressa-se na União Soviética, neste caso, a uma antiga prática russa. Ela não facilita a tarefa daquele que, sem qualquer má intenção, deseja estudar o funcionamento das instituições soviéticas. Os próprios autores soviéticos se lastimam da dificuldade que sentem no acesso às fontes. A situação do direito soviético, a este respeito, não é satisfatória do ponto de vista da ciência jurídica. É justo observar, contudo, que, nas democracias liberais, o estudo do direito é muitas vezes reduzido à teoria, sendo a prática das esferas interessadas difícil de conhecer, e considerada muitas vezes, por essas próprias esferas, como tendo um certo caráter confidencial e não interessando a estranhos.

Do mesmo modo que se observam, no que diz respeito aos domínios respectivos do ato administrativo e do contrato, alternativas de progresso e retrocesso, de centralização e descentralização, também se observam, segundo as épocas, alternativas de maior ou menor publicidade às medidas decretadas pela administração. A oportunidade de codificar, quanto a substância, o direito administrativo, como se pretendeu fazer na França depois de 1945, é discutida, mas ainda rejeitada de maneira geral; em compensação, existe simpatia em favor de um código que regularia o processo não contencioso da administração.

DAVID (1997:214/217) afirma quanto à interpretação e aplicação da lei. O regime soviético, orientado pelo partido comunista, aplica-se à criação, pelas suas leis, de uma ordem social inteiramente nova. As leis que promulga, e toda a regulamentação administrativa que lhe está subordinada, preparam a política e exprimem a vontade dos dirigentes. Este direito apresenta-se com um caráter particularmente imperativo e exige ser interpretado em estrita conformidade com a intenção daqueles que são os seus autores. Espera-se dos juristas e dos juízes soviéticos uma interpretação que conduza à aplicação da lei tal como foi concebida pelos seus autores. O elemento imperativo do direito, mais do que o seu elemento racional, é naturalmente posto em relevo em um direito novo.

Apesar disto, a interpretação das leis na União Soviética não deve ser uma interpretação literal. A tradição da família romano-germânica ainda persiste; a doutrina marxista não implica, de maneira nenhuma, que as leis devam ser aplicadas literalmente, empregando processos puramente gramaticais de interpretação. Esta atitude acabaria por fazer da lei um tabu", tendo um valor em si, independentemente da política que é a sua razão de ser; ela estaria, portanto, em oposição radical com a doutrina marxista.

A interpretação das leis pelo juiz soviético vai, então, ser uma interpretação não só gramatical, mas também lógica, tendente a dar aos textos das leis o sentido que eles comportam, considerando o conjunto do sistema e dos princípios que guiam, de forma incontestável, a política dos governantes soviéticos. A atitude soviética, no que diz respeito à interpretação das leis, não pode ser bem compreendida se não se levar em consideração o fator importante que constituiu a doutrina marxista-lenjnista. As leis e decretos do direito soviético foram elaborados por um legislador imbuído da doutrina marxista-leninista; para dar realização à intenção do legislador é necessário interpretá-la à luz desta doutrina. Assim, não se corre o risco de chegar a uma subversão legislativa. Qualquer comparação com a situação que se apresenta nos países burgueses, a este respeito, seria falsa. Nos países burgueses não existe qualquer guia seguro para o juiz; é a sua própria ideologia que o juiz, na realidade, faz triunfar, quando pretende tomar em consideração as necessidades da sociedade; o sentido da lei é, na verdade, deturpado em favor dos interesses da classe burguesa. O recurso aos princípios da doutrina marxista, por parte dos juristas soviéticos, tem, pelo contrário, como resultado, o esclarecimento do sentido da lei que está em plena harmonia com esta doutrina.

O papel da doutrina marxista, enquanto guia da atividade dos juízes, foi durante muito tempo primordial; sendo as leis pouco numerosas, o juiz devia, em casos freqüentes, procurar a solução do litígio nos princípios do marxismo-leninismo. Ë a esta necessidade que se referem as primeiras leis do regime, prescrevendo aos juízes que se inspirem nos princípios da política do governo dos sovietes ou que preceituem segundo o seu sentimento socialista de justiça. Hoje, a vacuidade destas fórmulas parece a muitos incompatível com o rigor que se pretende dar ao princípio de legalidade socialista e com a rigorosa disciplina que se pretende fazer reinar na sociedade. As leis soviéticas são numerosas e pormenorizadas; é ao fazer a sua aplicação que o juiz soviético satisfaz o sentimento socialista de justiça, ao qual já não tem necessidade de se referir como a uma fonte autônoma do direito. As fórmulas gerais que se encontravam nos códigos da NEP eram indispensáveis na época, quando disposições pormenorizadas ainda não tinham podido ser elaboradas e postas a funcionar pelo legislador soviético, e era necessário, também, fiscalizar cuidadosamente os elementos capitalistas autorizados a subsistir. A sua utilidade é muito menor na época atual, quando não se pretende, de modo algum, na União Soviética, se ver as prescrições da lei escamoteadas em nome de vagas considerações de eqüidade.

A elaboração dos Princípios Fundamentais, promulgados desde 1958, permitiu ver as correntes entre as quais se divide, a este respeito, a doutrina soviética. Toda espécie de fórmulas gerais desaparecera nos projetos dos Princípios Fundamentais, tal como foram originariamente publicados; somente o art. 4 dos Princípios Fundamentais do direito civil determinava que os direitos e as obrigações civis podem nascer, fora dos casos previstos pela lei, "em virtude dos princípios gerais e de acordo com o espírito das leis civis". Em compensação não se encontrava no mesmo projeto a famosa disposição do código civil de 1922 (art. 1), que omitia a proteção da lei para os direitos civis, no caso em que estes fossem exercidos contrariamente ao interesse geral. Entretanto, uma disposição retomando em substância este artigo foi, finalmente, reintroduzida nos Princípios Fundamentais de direito civil: "Os direitos civis são protegidos pela lei, excluindo o caso em que forem utilizados contrariamente à finalidade destes direitos em uma sociedade socialista no período de edificação do comunismo" (art. 5, ai. 1). Os Princípios Fundamentais do processo civil acolheram, da mesma forma, uma disposição que não tinha sido conservada no projeto: "Na falta de lei que regule relações litigiosas, o tribunal aplica a lei que regula relações análogas; na falta de uma tal lei, o tribunal inspira-se nos princípios gerais e no espírito da legislação socialista" (art. 12, ai. 3). A possibilidade de admitir incriminações por via de analogia, que consagra o art. 16 do código penal da R.S.F.S.R. de 1922 (de acordo com o precedente do código penal de 1885, até uma revisão efetuada em 1903), desapareceu em 1958.

Na verdade — a discussão que se efetuou a esse respeito demonstrado —, a União Soviética está dividida em duas tendências contraditórias. Por um lado, deseja-se ver aplicar a lei com o máximo rigor; por outro lado, quer dar-se lugar a preocupações de eqüidade, excluir todo o formalismo, não ver na lei um "tabu". A oposição destas duas tendências não acontece apenas na União Soviética. Neste país, contudo, ela apresenta o caráter particular de se ligar a uma opção de ordem política. A questão não é somente saber se o direito deve ser mais ou menos rígido ou flexível; é saber, em relação à doutrina marxiçta. em oue medida se pode e deve visar, desde agora, a decadência e o desaparecimento do direito. Ainda hoje, certamente, se impõe o respeito pela legalidade socialista; mas tem-se dificuldade, quando se é marxista, em se resignar à injustiça do direito; recorre-se a uma fórmula legislativa que pode permitir-nos escapar dela na ocasião própria, ao mesmo tempo que se saúdam na lei as múltiplas disposições que libertam o juiz do formalismo.

DAVID (1997:217) afirma quanto à interpretação autêntica da lei:

No que diz respeito à interpretação da lei, um traço do direito soviético que merece ser mencionado éa existência de instituições habilitadas a fornecerem uma espécie de interpretação autêntica da lei, e a dirigirem aos órgãos encarregados de administrar a justiça, diretrizes que dizem respeito à interpretação da lei. As instituições aqui visadas são, além do Presidium do Soviete Supremo, o Supremo Tribunal da União Soviética e o árbitro-chefe da União Soviética.

A função do Supremo Tribunal da União Soviética é hoje, como veremos, fornecer aos juízes estas diretrizes, possivelmente mais do que revisar as decisões tomadas em casos particulares. Desta forma, o Supremo Tribunal interveio, em 17 de dezembro de 1971, para determinar aos tribunais como deveriam aplicar o art. 7 dos fundamentos da legislação civil, relativo à defesa da honra e da dignidade dos cidadãos, quando lhe pareceu que esta disposição era diversamente aplicada pelos tribunais: em alguns casos toda crítica era reprimida, em outros, pelo contrário, nenhuma sanção existia se o réu tinha agido de boa-fé. As diretrizes do Supremo Tribunal devem ser seguidas pelos juízes; é a Prokuratura que deverá intervir, se elas deturparem o sentido da lei ou forem contrárias ao direito; não parece que esta hipótese se tenha jamais apresentado.

O que acaba de ser dito, no que diz respeito à interpretação autêntica dos códigos ou leis soviéticos pelo Supremo Tribunal, pode ser repetido no que concerne ao árbitro-chefe da União Soviética, O árbitro-chefe da União Soviética examina a jurisprudência dos organismos de arbitragem pública, assim como o Supremo Tribunal examina a jurisprudência das jurisdições soviéticas. Formula diretrizes para uso dos organismos de arbitragem pública, da mesma maneira que o faz o Supremo Tribunal.

Como curiosidade vale a pena conhecer o que previa o Código do Casamento da União Soviética, conforme mencionado por PROUVOST (1921:2/3), que, já naquela época, tinha regras jurídicas que somente há pouco tempo passaram a ser adotadas em países mais conservadores, como é o nosso:

86 – O casamento, do esposo sobrevivente, pode ser dissolvido pelo divórcio.

87 – O divórcio pode se basear também sobre o consentimento mútuo dos esposos e sobre a vontade expressa por um deles.

104 – Se um dos esposos muda de domicílio, o outro não é obrigado a segui-lo.

105 – Casamento não ocasiona a comunhão de bens entre os esposos.

106 – Os esposos podem celebrar entre si todos as convenções permitidas pela lei. Se eles concluem entre si convenções que tenham por finalidade a diminuição dos direitos de propriedade da mulher ou do marido, serão consideradas nulas legalmente e à parte prejudicada é autorizada ao seu não cumprimento.

107 – Os esposos conservam seu nome de família conjugal durante todo tempo de duração do casamento e mesmo após a dissolução do casamento pela morte ou pela declaração judicial da morte de um deles.

133 – O fundamento da família é a filiação efetiva; nenhuma diferença é estabelecida entre o parentesco natural e o parentesco legítimo.

§ 1 – As crianças cujos pais não são casados têm os mesmos direitos que as crianças nascidas de pessoas casadas regularmente.

140 – Três meses pelo menos antes do nascimento da criança, a mulher grávida não casada deve comparecer à Seção do Registro dos atos do Estado civil para declarar indicando a época da concepção, o nome e o domicílio do pai da criança.

§ 1 – Declaração semelhante pode ser feita também por mulher casada, se a criança concebida não tem por pai seu marido.

143 – Se as relações da mãe com o homem mencionado por ela na declaração prevista no artigo 140 demonstram que ele é o pai da criança, o Tribunal profere uma decisão nesse sentido e determina que ele custeará todas as despesas da gravidez, nascimento e sustento da criança.

144 – Se no curso do julgamento do processo, o Tribunal constata que na época da concepção, o homem apontado como pai mantinha relações íntimas com a mãe, mas que ele não era o único, o Tribunal os convoca a todos como réus e os obriga a participar das despesas previstas no art. 143.

148 – Os pais podem entrar em acordo para que seus filhos menores de 14 anos sigam alguma religião. Na falta de acordo entre os pais sobre esse assunto, as crianças com idade inferior a 14 anos são consideradas sem religião.

160 – As crianças não têm direito aos bens de seus pais: da mesma forma, os pais não têm direito aos bens de seus filhos.

O mencionado autor esclarece (p. 3):

O Código Bolchevista do Casamento comporta 262 artigos votados em 16 de setembro de 1918 pelo Comitê Executivo Central dos Sovietes.

A situação atual é a seguinte.

O papel da lei na formulação do Direito nos países da família civil law é muito mais relevante do que de qualquer outra fonte jurídica, como se sabe.

Fazendo parte dessa família romano-germânica, a Rússia de todos os tempos, e, principalmente, a atual, a lei é prioritária para a formulação do novo Direito russo. Também não seria possível de outra forma, pois somente através da lei, votada pelos legislativos federal e das unidades federadas, se conseguiria alcançar as mudanças tão radicais que fazem com que o Direito russo atual seja de um estilo totalmente diferente do que era da época anterior a 1991 e principalmente do que era antes de 1993.

Está acontecendo uma verdadeira implantação do Direito estrangeiro na Rússia, com influências decisivas da França, Canadá, Estados Unidos e do Conselho da Europa.

Parece que a grande dificuldade que sempre houve da parte dos russos em aceitar a influência estrangeira, agora foi definitivamente vencida pela onda globalizante, a ponto de a resistência que ainda existe estar totalmente neutralizada tanto que o Direito russo perdeu absolutamente sua individualidade.

No entanto, para fazer valer a força da lei, primeiro tem-se que definir qual a lei irá ser levada em conta de preferência. Esclareça-se que o sistema federativo da Rússia não tem a segurança por exemplo dos Estados Unidos ou do Brasil e as unidades federadas têm mais ou menos independência, de acordo com a força política de cada uma, como vimos no começo deste estudo. Existe uma disputa interna, onde, ao mesmo tempo em que o poder central tenta reduzir a força dos líderes das unidades, estes tentam diminuir a força centrípeta do Kremlin. Assim, acontece de muitas leis elaboradas pelas unidades federativas contradizerem a Constituição federal e acabarem prevalecendo:

De fato, algumas dessas leis contradizem a Constituição russa ou vão além de seus propósitos. Em muitos desses documentos, surgem áreas consideradas como de legislação compartilhada, mas que, na Constituição, são atribuídas exclusivamente a Moscou. (SERGUNIN, 2000:74)

ALMEIDA (1998:51/52):

As mais modernas codificações civis estão a surgir em alguns dos Estados que compunham a União Soviética, nos quais vigoravam códigos cuja matriz era o Código Civil russo de 1964. Neste notava-se, apesar da diferente inspiração ideológica, uma forte influência da estrutura e dos conceitos do BGB. Ora, nos novos códigos, essa influência atenuou-se. É o caso do Código Civil da Federação Russa, cuja primeira parte (disposições gerais, propriedade e obrigações) entrou em vigor em 1995. Sem cortar com a tradição germânica, autonomizou-se dela, na medida em que recebeu novas influências (incluindo do código holandês) e adoptou algumas soluções inovadoras.

3.8 – AS DIVISÕES DO DIREITO

DAVID (1996:259) fala sobre a semelhança formal com os direitos burgueses no período bolchevista:

As divisões do direito soviético continuaram aparentemente, sob certas reservas, a ser as mesmas existentes nos direitos da família romano-germânica. Algumas diferenças podem existir: o direito da família está separado do direito civil; a categoria do direito comercial desapareceu; foram admitidas novas categorias de direito dos kalkozes e de direito da habitação. No entanto, existem também variantes entre os diferentes direitos da família romano-germânica; as que se notam no direito soviético não parecem justificar, em si, a classificação deste direito numa família particular.

Contudo, os autores soviéticos não admitem que se leve em consideração, sob um aspecto puramente formal, estas distinções, sem preocupação pelo conteúdo que cada ramo do direito possa ter. A semelhança entre o direito soviético e os direitos não-socialistas do continente europeu é, no que se refere às suas grandes divisões, segundo estes autores, puramente formal e superficial, porque, na realidade, sendo diferente a estrutura econômica dos dois grupos de países, as questões que se apresentam, e que se referem ao direito civil, constitucional, administrativo e penal, também são muito diferentes, O direito está de fato dividido em um certo número de ramos que recebem o mesmo nome; mas aqui termina a analogia, porque diferentes problemas se colocam, quanto à sua essência, em um Esta. do socialista e em um Estado não-socialista, e a doutrina marxista-leninista leva, por outro lado, a considerar estes problemas sob um novo ângulo não-individualista.

A situação atual é a seguinte.

À medida que o tempo vai passando, como já dito em outros trechos deste estudo, o Direito russo vai ficando cada vez mais parecido com o Direito dos outros países da família romano-germânica, e, por via de conseqüência, os ramos do Direito vigorantes na Rússia vão sendo os mesmos dos outros países dessa família, ou seja, diferenciado o Direito nos dois grandes ramos: Privado e Público. Nesse aspecto não há nada de importante a ser mencionado neste estudo.

3.9 – OS CONCEITOS JURÍDICOS

Também aqui teremos dois épocas para mencionar: a socialista e a atual.

DAVID (1996:259/260) fala sobre o Direito Constitucional russo da época socialista:

Não é necessário insistir para que se note até que ponto o direito constitucional soviético difere do direito constitucional dos países burgueses.

Dois traços principais são característicos do sistema constitucional nos países socialistas. O primeiro é o papel primordial que é reconhecido, no plano político, ao partido comunista. O segundo é o exercício do poder político e administrativo pelos sovietes dos diferentes escalões. A política tcheca em 1968 causou apreensões, porque parecia, a alguns, admitir muito livremente as críticas, e, por esse fato, colocar em perigo a primazia incontestada do partido comunista; isto mostra a enorme importância que se dá ao primeiro aspecto. Os acontecimentos na Polônia em 1981 confirmam esta preocupação. O próprio nome União Soviética marca o caráter fundamental que se atribui ao segundo. A inclusão de um país na família socialista resulta essencialmente da admissão destes dois princípios; um regime político no qual o partido comunista compartilhasse a realidade do poder com outros partidos, ou no qual já não existissem conselhos populares modelados segundo os sovietes russos, não mais seria olhado como um país socialista, no sentido em que a palavra é entendida na União Soviética.

A estrutura soviética do Estado não estava prevista no programa inicial do partido comunista; porém, veio a se impor logo no início da revolução de 1917, devido aos reduzidos efetivos com que contava então o partido, e à necessidade de demonstrar que o poder passara a pertencer ao povo. Entretanto, o poder de fato continua a ser do partido, que designa os candidatos a sovietes dos diversos escalões, e que provê à formação e à designação dos profissionais para todos os empregos previstos em uma relação (nomenklatura) elaborada por seus órgãos dirigentes.

DAVID (1996:260) fala sobre outros ramos do Direito:

Outros ramos do direito. Ninguém contestará o caráter sumamente original que apresentam, em relação às dos países burgueses, as instituições do direito constitucional soviético. No entanto, a originalidade do direito soviético não está limitada a este ramo do direto; a passagem para um Estado socialista, fundado sobre a doutrina marxista-leninista, conduziu em todos os domínios a uma renovação quase total das maneiras de ver e das estruturas. 11 desta maneira que se encara o direito administrativo, o direito do trabalho e o do seguro sócia, o direito criminal ou o direito civil.

DAVID (1996:261/262) fala sobre o Direito Administrativo: Analisemos, assim, o direito administrativo. Para um jurista do mundo capitalista o essencial é, nesta matéria, a proteção do indivíduo e a afirmação dos seus direitos contra uma administração cujos abusos convém prevenir ou sancionar. O jurista soviético não é indiferente a este problema, mas não o considera sob a mesma ótica. Para ele é vão querer procurar uma proteção para o indivíduo sem ter efetuado a renovação total que a doutrina marxista-leninista traz à sociedade, através da coletivização dos bens de produção. Por Outro lado, a coletivização dos bens de produção basta, regra geral, para resolver o problema que inquieta os juristas do mundo capitalista; os direitos e os interesses do indivíduo serão, do ponto de vista dos juristas soviéticos, automaticamente protegidos e garantidos se a sociedade estiver, no plano econômico, fundada sobre os princípios do marxismo; uma plena concordância dos interesses do indivíduo e da sociedade é, de fato, assegurada, afirmam eles, num regime socialista.

Os problemas que o direito administrativo apresenta, e que interessam em primeiro plano aos juristas dos países socialistas, são problemas inteiramente novos. Os bens de produção tornaram-se, na União Soviética, propriedade socialista. A tarefa essencial do direito é tendo em conta esta mutação, a organização da exploração destes bens, e também a proteção contra a delapidação e as usurpações de todas as espécies. Todo um conjunto de regras e de novas instituições deve ser imaginado, instalado, submetido a múltiplos controles, se pretender que a coletivização dos bens de produção seja mais do que uma medida de ordem moraI — a supressão da exploração do homem pelo homem — e que reverta, de fato, em benefício do conjunto dos cidadãos.

O colóquio efetuado pela Associação Internacional de Ciências Jurídicas em Varsóvia, em 1958, demonstrou que juristas dos países socialistas e dos países não-socialistas têm bastante dificuldade em se compreender. Os juristas dos países não-socialistas não concebem um direito administrativo que não esteja centrado sobre a proteção dos indivíduos e que não seja dominado por um controle jurisdicional da administração. Os juristas dos países socialistas dirigem a sua atenção para outro lado; para eles, o essencial é o êxito da política do governo, que visa a edificacão do comunismo; e à idéia de controle jurisdicional preferem um novo tipo de controle, exercido pelos representantes do povo e pelas organizações de massa. Mas a Constituição de 1977 (art. 58, al. 2) aproximou um pouco essas concepções divergentes: "Os atos dos funcionários que constituam uma violação da lei, um excesso de poder, ou que ofendam os direitos dos cidadãos podem ser objeto de um recurso perante os tribunais, nas modalidades previstas pela lei". Este texto é importante, porque estende consideravelmente o controle jurisdicional, mas, apesar disto, o direito administrativo soviético se distingue do direito administrativo dos países burgueses. O marxismo-leninismo leva os juristas a procurar uma solução para os problemas, partindo de princípios diversos dos admitidos nos países capitalistas.

DAVID (1996:262/263) fala sobre o Direito Civil:

Analisemos da mesma forma o direito civil. O problema fundamental que ele apresenta aos juristas burgueses é o da defesa dos interesses individuais, assim como o da propriedade privada que está na base da economia numa sociedade capitalista, O essencial é reconhecer a propriedade individual tanto no direito das coisas como no dos contratos ou no das sucessões. Na União Soviética, pelo contrário, a regulamentação do que se chama a "propriedade pessoal" apresenta apenas um interesse secundário O direito civil centrou-se na nova noção de propriedade socialista, da qual se estudam as diferentes formas, o regime jurídico e as garantias. A importância primordial deste novo tipo de propriedade torna-se evidente ante uma simples leitura da Constituição soviética; verificamo-la igualmente lendo os Princípios Fundamentais do direito civil (1961), com a enumeração feita nestes Princípios dos bens que, por um lado, são propriedade do Estado (art. 21), propriedade dos kalkozes (art. 23) ou propriedade das cooperativas (art. 24) e, por outro, daqueles que, podem ser objeto de uma propriedade pessoal (art. 25) ou familiar do dvor (art. 27). A proteção da propriedade socialista levanta problemas completamente diferentes os da propriedade individual. É muito mais difícil protegê-la de forma adequada e eficaz. Pode contar-se com o indivíduo, sempre pronto a lutar pelos seus direitos e interesses, para defender a sua propriedade privada; a proteção da propriedade socialista deve ser organizada por instituições especiais que visem a defesa do interesse geral. O direito civil Soviético, na medida em que tem por objeto a propriedade socialista — e é apenas neste campo que os juristas se defrontam com os problemas mais importantes — apresenta-se muito diferente, pelo seu conteúdo, do direito civil dos países não-socialistas, onde não há estes problemas.

DAVID (1996:263/264) fala sobre a rejeição da distinção entre Direito Público e Direito Privado:

A origina idade do direito soviético manifesta-se, por outro lado, na rejeição pela doutrina soviética da summa divisio dos direitos da família romano-germânica. Esta distinção remonta ao direito romano. É fundamental no sentido em que a parte essencial do direito foi sempre considerada, nestes países, como sendo o direito privado. O direito público, intimamente ligado com a política e mal se distinguindo da ciência administrativa, foi deixado prudentemente de lado pelos juristas durante séculos, e ainda continua, em diversos dos seus ramos, incerto e instável, em comparação com o direito privado.

A doutrina marxista-leninista tomou o sentido oposto desta atitude. Numa carta a Koursky, Lenin empregou uma fórmula que se tornou famosa: "No que se refere à economia, deixou de existir direito privado, tudo se tomou direito público". Esta fórmula foi retomada por todos os juristas soviéticos. Não se deve interpretá-la como se o direito público tivesse absorvido o direito privado; significa, apenas, que não se pode admitir, em matéria econômica, o dualismo entre o direito público e o direito privado, ou seja, a existência de dois corpos de direito autônomos.

Negar a distinção entre o direito público e o direito privado é afirmar a unidade profunda do direito; esta unidade deriva do fato de que, em todos os seus ramos, o direito é essencialmente o reflexo da organização econômica da sociedade.

O marxismo-leninismo identifica o direito com a coerção. Não va regras de direito nas fórmulas, conformes à justiça ou inspiradas pela moral, que são espontaneamente seguidas pelos homens nas suas mútuas relações. Considera apenas como regras jurídicas aquelas que são impostas, de modo mais ou menos aberto ou hipócrita, pela classe dirigente, com o fim de garantir os seus interesses econômicos e perpetuar a sua "ditadura". O direito é apenas um aspecto da política, um instrumento a serviço da classe dirigente. Numa tal concepção deixa de haver lugar para um direito privado que pretenderia, independentemente de qualquer preocupação e de todo o caráter político – e está aí a essência da noção de direito privado que o opõe ao direito público —, dar expressão a considerações de boa organização e de justiça social. Dizer que todo o direito é público, como disse Lenin, é exprimir, de um outro modo, a idéia de que todas as relações de direito são comandadas por uma idéia política, e que as regras de direito não são de forma alguma a expressão dos princípios de uma justiça imanente. O direito é política e, reciprocamente, o que não é política não é direito.

À rejeição da distinção entre direito público e privado ligam-se certas conseqüências práticas importantes.

DAVID (1996:264) fala sobre o caráter imperativo do Direito:

Todo o direito, e não apenas aquele que chamamos direito público, sendo um aspecto da política, vai inevitavelmente ser dirigido no sentido de assegurar o sucesso desta, de modo a dar ao maior número possível de leis o caráter imperativo, e ao maior número possível de regras o caráter de regras de ordem pública. Será tanto mais assim, quanto é certo que o regime soviético não está satisfeito com a sociedade atual. Aspira transformá-la completamente para criar um novo tipo de sociedade. Todas as relações, todos os comportamentos devem ser modificados de modo a criar as condições nas quais será possível renunciar à opressão e ao direito, e onde os cidadãos possam agir uns para com os outros num clima de compreensão mútua e fraterna. As regras supletivas, que correm o risco de perpetuar os erros do passado, devem desaparecer em proveito de regras imperativas, as únicas suscetíveis de criar e de impor a nova sociedade.

Não bastará apenas afirmar que o direito civil é, na realidade, direito público, e dizer que as suas regras devem ser imperativas. Num grande número de casos reforçar-se-á esse caráter imperativo de maneira a garantir ainda mais o êxito da política dos dirigentes soviéticos, associando sanções penais à violação das regras do direito civil. A inexecução dos contratos, nos setores coletivizados da economia soviética, comporta sanções penais; o membro do kolkoz que não execute o mínimo de trabalho previsto em proveito do kolkoz é punido criminalmente; a criação de uma empresa privada sob a forma simulada de uma cooperativa é um delito penal; a compra para revenda é uma infração punida pelas leis penais.

DAVID (1996:264/265) fala sobre a procura de uma nova sistemática:

Os autores soviéticos, imbuídos da preocupação de romper completamente com as sociedades burguesas que eles consideram fundamentalmente injustas, sentem-se por vezes constrangidos por terem conservado, mesmo que apenas de um ponto de vista puramente formal, as categorias do direito burguês. Parece-lhes que, renovado inteiramente na sua própria concepção e quanto as suas soluções de base, o direito soviético deveria normalmente fazer apelo a uma nova sistemática, implicando a rejeição das categorias do passado. Estas tentativas não foram até hoje coroadas de sucesso; merecem ser mencionadas, porque estão ligadas a certas crises que o direito soviético atravessou, e servem para fornecer indicações sobre a maneira como se concebe, na União Soviética, a evolução do direito e o seu desaparecimento no futuro. As querelas doutrinárias surgidas nesta ocasião concentraram-se por duas vezes sobre a questão de saber se convém ou não reconhecer, no sistema do direito soviético, a existência de um ramo especial a que se chamaria "direito econômico".

Na União Soviética, e na maior parte dos países socialistas, renunciou-se, no plano legislativo, à consagração da existência deste ramo. A solução oposta prevaleceu na Tcheco-Eslováquia e na República Democrática Alemã. É na Tcheco-Eslováquia que parece ter sido feito maior esforço para apresentar o direito de uma maneira nova, tendo em conta a sua estrutura socialista. À parte a distinção feita entre código civil e código econômico, notar-se-á especialmente, a este respeito, a nova terminologia usada no código civil: substituiu-se a noção tradicional de contrato, para as relações entre organizações do setor coletivizado e os cidadãos, pela noção de serviços, devidos pelas primeiras aos segundos. Com a promulgação de um código de comércio internacional, reconheceu-se, por outro lado, a diferença profunda que existe, em um país socialista, entre relações internas e relações do comércio internacional.

DAVID (1996:267) fala sobre a preponderância da doutrina marxista:

A ditadura do povo por um lado e a coletivização da economia nacional por outro conduzem a uma mudança da natureza de todos os conceitos, que tomam um sentido diferente nas novas condições em que são utilizados. Com um vocabulário herdado do antigo direito russo, os juristas soviéticos tratam de problemas que já não são os mesmos e que eles examinam por um prisma inteiramente novo. As palavras tomaram, nestas circunstâncias, um sentido diferente. Devemos, ao estudar o direito soviético, libertar-nos da jurisprudência dos conceitos e ter presente no espírito que os conceitos não têm um valor absoluto. Os adversários do regime soviético negam que exista na União Soviética uma democracia e liberdade reais. Parece mais justo considerar que estes conceitos tomaram, na sociedade soviética, um novo sentido. Numa preocupação da clareza, pode lamentar-se que uma nova terminologia não tenha sido elaborada de modo a definir claramente esta mudança de sentido. Devemos adaptar-nos à terminologia soviética. Apenas é importante saber que os conceitos do direito soviético, qualquer que seja a terminologia usada, na realidade, não são mais os conceitos dos países burgueses. Seria necessário um estudo sobre a substância do direito soviético para compreendermos toda a grandeza da mudança verificada. Mas tal estudo não cabe no âmbito do presente trabalho. Contentar-nos-emos em fornecer aqui alguns exemplos característicos, tecendo algumas considerações sobre a propriedade e sobre os contratos no direito soviético.

DAVID (1996:267/268) fala sobre a Concepção burguesa e concepção socialista da propriedade:

A noção central do direito soviético — aquela que os juristas soviéticos orgulhosamente afirmam ter recriado completamente — é a noção de propriedade. O jurista ocidental surpreende-se pela ênfase dada a uma noção que, em direito francês pelo menos, ocupa um lugar restrito entre as suas preocupações.

Contudo, é absolutamente natural que o regime da propriedade seja colocado em primeiro plano pelos juristas soviéticos. A doutrina marxista considera que o direito é, antes de tudo, condicionado pela estrutura econômica da sociedade: o essencial, para esta, reside na forma como os bens são apropriados. É no que se refere ao regime da propriedade que o marxismo exige uma mutação total das idéias, uma revolução que fará sentir os seus efeitos, por conseqüência, sobre todos os ramos do direito e na própria consciência dos homens.

De resto, a simplicidade aparente do assunto, constituído pelo regime da propriedade, não passa nos próprios países capitalistas de uma ilusão. A descrição do direito das coisas feita na França está, seguramente, longe de esgotar o conteúdo deste ramo do direito, do qual dá uma idéia inteiramente falsa. As restrições aplicadas aos direitos dos proprietários são, assim, omitidas e não se ouve sequer falar do direito do urbanismo, nem do estatuto das formas de exploração da propriedade rural que são tratados em outros lugares’. A própria autonomia do direito contratual, relacionada com o direito dos bens, é apenas uma conseqüência do individualismo exagerado que reina nestas sociedades e da função de primeiro plano que, conseqüentemente, se quer atribuir à vontade; a venda, a locação e outros tantos contratos poderiam ser olhados, na ausência de tal atitude, como fazendo parte do direito das coisas concebido em termos amplos.

O direito soviético rejeita a estreita concepção que os juristas franceses têm do direito de propriedade. Este é, para eles, o conjunto das regras que se relacionam não somente com a apropriação dos bens e com a transferência do direito de propriedade sobre os bens, mas também com o modo de gestão destes e com as operações jurídicas que lhes dizem respeito.

DAVID (1996:268/269) fala sobre a Dificuldade de uma comparação:

O regime da propriedade difere, em muitos aspectos, na União Soviética, do dos países capitalistas.

A distinção que se considera, nos direitos da família romano-germânica, como fundamental — a dos móveis e imóveis — não apresenta grande interesse aos olhos dos juristas soviéticos. A distinção que fazem, na aplicação da doutrina marxista (distinção não menos fundamental), é a dos bens de produção e dos bens de consumo.

À unidade — pelo menos aparente — do regime da propriedade nos países romanistas opõe-se, por outro lado, a variedade, no direito soviético, de tres regimes: regime de propriedade pessoal, da propriedade cooperativa e, o mais importante e o mais inovador de todos, o regime da propriedade estatal.

Acrescentemos que o direito soviético, repudiando as tradições romanistas, rejeita a noção de direito real. Todo o direito é feito para regular, segundo os juristas soviéticos, as relações entre os homens, e é necessária uma mentalidade capitalista para conceber um direito que ligue uma pessoa e uma coisa, o proprietário e o objeto da sua propriedade.

Por todas estas razões parece aos juristas soviéticos que a propriedade se tornou, em um país socialista, uma coisa completamente diferente do que era em um país capitalista: a tal ponto que não se chega mesmo a conceber uma verdadeira e significativa comparação entre os regimes da propriedade, tal como eles existem nos dois tipos de países. Os juristas soviéticos, quando formulam esta opinião, têm em vista, antes de tudo, o direito capitalista que era conhecido por seus países antes da revolução socialista. A sua maneira de ver é menos justificada, se se considerar o direito atual dos países não-socialistas do continente europeu, com toda a complexidade que atualmente o direito das coisas comporta, ou se se considerar, ainda mais, a law 01 property inglesa. No entanto, ainda nestes dois casos o ponto de vista soviético continua largamente justificado: existem grandes diferenças entre os direitos capitalistas e o direito soviético, resultantes dos princípios diferentes sobre os quais a sociedade está edificada nos países capitalistas e socialistas.

DAVID (1996:269/270) fala sobre a propriedade pessoal:

Um primeiro tipo de propriedade que existe na União Soviética é a propriedade pessoal. A propriedade privada foi assim rebatizada para mostrar que devia ser utilizada unicamente para satisfação das necessidades do seu titular, segundo o destino do seu objeto, e não para dela obter uma renda, ou numa perspectiva de especulação.

A propriedade pessoal está, salvo esta importante ressalva, sujeita, de uma forma geral, às mesmas regras que a propriedade privada dos direitos capitalistas: o seu titular pode servir-se da sua coisa, aliená-la a título oneroso ou gratuito, dispor dela por testamento.

A única coisa verdadeiramente notável, no que concerne a este tipo de propriedade, é, em relação com a proibição do seu uso para fins lucrativos, a categoria restrita de bens que podem ser o seu objeto: bens de consumo no sentido marxista, opostos aos bens de produção. O artigo 13 da Constituição soviética de 1977 estabelece que: "Podem ser de propriedade pessoal os objetos de uso e de comodidade pessoais, os bens da economia doméstica auxiliar, uma residência e as economias provenientes do trabalho..." Em alguns países socialistas, como a Iugoslávia, as pequenas empresas artesanais (com até cinco empregados), que fazem parte da "pequena economia", podem ser objeto da propriedade pessoal.

DAVID (1996:270) fala sobre a propriedade das cooperativas:

A originalidade do direito soviético é, ao contrário, total, logo que se considerem a propriedade "socialista" sob os dois aspectos que ela comporta: a propriedade das cooperativas e a estatal.

Consideraremos em primeiro lugar a propriedade cooperativa: o seu tipo é a propriedade dos kolkozes. A terra, como se sabe, foi nacionalizada; não pertence, portanto, aos kolkozes, que apenas têm sobre ela um perpétuo direito de usufruto. É inútil acentuar que esse perpétuo direito de usufruto não tem nada a ver com o usufruto do direito francês: o adjetivo perpétuo basta para desmonstrá-lo, visto que, na nossa concepção, o usufruto é um direito temporário por essência. Mas há mais: a este direito sobre a terra, que é concedido aos kolkozes, corresponde um conjunto de obrigações que afastam esse direito de usufruto soviético da concepção romano-germânica do usufruto, e fazem com que não se possa conceber o direito dos membros do kolkoz sobre a terra, como um desmembramento da propriedade, ou como um verdadeiro direito real.

O kolkoz é obrigado a cultivar ou explorar, de uma determinada maneira, o solo que lhe foi concedido; pode ser obrigado a fazer certas prestações ao Estado; é também obrigado a organizar-se e a gerir-se segundo as regras do direito kolkoziano. A propriedade cooperativa dos kolkozes confere àqueles que dela são titulares, além de certas prerrogativas, todo um feixe de obrigações. ii difícil, senão impossível, compará-lo à propriedade das cooperativas, tal como a encontramos nos direitos romanos-germânicos, nem equipará-la à noção de estate, da common law.

DAVID (1996:270/272) fala sobre a propriedade estatal:

É ainda mais diferente a propriedade estatal que vamos encontrar no domínio da agricultura com as fazendas do Estado (sovkozes) e no domínio da indústria. A propriedade socialista vai ter por objeto duas categorias de bens, cujo regime é inteiramente distinto: capital fixo e capital circulante ou, mais concretamente, o solo, os edifícios, a instalação e as máquinas por um lado, e, por outro, as matérias-primas e os produtos. O regime jurídico destas duas categorias de bens é muito diferente, porque os primeiros destinam-se a permitir a produção (e não podem ser, portanto, alienados), enquanto que os segundos se destinam, pelo contrário, a ser alienados.

Em princípio coloca-se a mesma questão tanto para uns como para outros: quem é o seu proprietário? Esta questão suscitou, na doutrina, longas discussões que bastam para marcar a originalidade da instituição soviética. Estas discussões levam a uma conclusão: é a de que, num regime socialista, o mais importante não é saber quem é o proprietário; é, antes de tudo, saber por quem e como serão explorados os bens. Com esta conclusão, estamos longe da ótica capitalista, visto que nos países capitalistas o proprietário é, em princípio, soberano, e a maneira como ele explora a sua propriedade não é uma questão jurídica.

A propriedade estatal tem por titular o povo ou a nação, dos quais o Estado é provisoriamente, o representante. A teoria da propriedade estatal parece, por esta razão, evocar a teoria do domínio dos administrativistas franceses, mais do que a teoria da propriedade dos civilistas. Toda a comparação feita com a doutrina dos países capitalistas revela-se aqui inadequada por um certo número de razões.

Os bens cuja propriedade pertence ao Estado, e que estão nas mãos das empresas industriais estatais, são de categorias diversas. Uns, constituindo o capital básico, foram atribuídos gratuitamente pelo Estado a essas empresas, em virtude de uma espécie de concessão, cujos termos podem ser sempre unilateralmente modificados pelos poderes públicos: a empresa, no que lhe diz respeito, não tem, propriamente, qualquer direito contra o Estado. Os outros, pelo contrário, constituem o produto do trabalho daqueles que trabalham na empresa: esta circunstância e o fato de serem destinados à alienação (em proveito de outra empresa ou do consumidor) impõe reconhecer-lhes um regime diferente.

O essencial do regime de propriedade socialista, em um e outro caso, resulta da sua afetação às necessidades da produção e do consumo. O mais importante não é dizer a quem pertencem os bens, nem como a propriedade (ou o seu uso) pode ser transmitida. A questão fundamental é a da "gestão operacional"; trata-se de saber como os órgãos públicos, aos quais est~s b.~ns estão confiados, devem utilizá-los e dispor deles, de acordo com as disposições da planificação econômica da nação. A existência deste plano faz do direito da propriedade, na União Soviética, uma matéria diferente, e o objeto de uma regulamentação diversa da que observamos nos países capitalistas. Ë verdade que, mesmo nestes, o Estado desempenha atualmente uma função importante na economia. Mas os planos "maleáveis" que podem aí existir são completamente diferentes do plano "rígido" da União Soviética, o qual não se limita a fixar os objetivos gerais, mas determina a tarefa exata que cabe a cada empresa. A diferença quantitativa entre a medida de intervenção do Estado nos países socialistas e capitalistas transforma-se, dada a sua importância, numa diferença qualitativa; a propriedade socialista já não tem muita relação, embora a palavra propriedade tenha sido conservada, com a propriedade dos países capitalistas, mesmo quando se considera, nestes países, a propriedade do Estado.

DAVID (1996:272) fala sobre a diferente função do contrato:

Os contratos econômicos. O direito soviético dá a mesma definição de contrato que os direitos da família romano-germânica; e, contudo, o contrato representa, no direito soviético, algo de muito diferente porque, nas condições da economia soviética, o contrato cumpre uma função muitas vezes diferente da que lhe é atribuída nos países burgueses. Juristas da família romano-germânica e juristas soviéticos falam freqüentemente de duas coisas diferentes, quando têm em vista o contrato.

A diferença entre o contrato do direito soviético e o dos direitos romanistas surge quando se consideram os "contratos econômicos", isto é, aqueles que intervêm no setor coletivizado da economia soviética. Este setor coletivizado da economia é administrado de acordo com as diretrizes dadas pelos organismos de planificação, pelas empresas do Estado (trusts, sovkozes), cooperativas ou kolkozes. Detenhamo-nos a ver como os trusts, empresas do Estado que asseguram toda a produção industrial da União Soviética, exercem a sua atividade.

Toda a matéria é dominada, na União Soviética, por um princípio: o da planificação. As empresas do Estado existem para executar o plano de desenvolvimento econômico e social da nação, que é aprovado pelo Soviete Supremo, e apenas existem com esse fim. Devem fazer o que é necessário para a execução do plano e não podem empreender atividades ou trabalhos que não estejam relacionados com este plano. A empresa que segundo os dados do plano deva produzir tantos quilômetros de trilhos é obrigada a executar as tarefas previstas; não pode, sob pretexto de que esta atividade lhe convém mais ou seria mais lucrativa, fabricar, em lugar ou além de trilhos, tubos metálicos ou laminados. Um sovkoz, a quem foi distribuída uma terra para que fosse assegurada a sua exploração agrícola, não pode tirar partido do seu subsolo ou explorar uma jazida. Cada um deve dedicar-se à tarefa que lhe foi destinada.

DAVID (1996:273) fala sobre a planificação socialista e dirigismo burguês:

A planificação agrícola "rígida" de um país socialista não tem nada a ver com a planificação "flexível" de um país capitalista. Na França, ou em outros países burgueses, pode existir um plano de desenvolvimento nacional, ao qual corresponde um certo dirigismo. Mas este plano é apenas um enunciado dos objetivos que o governo julga desejável e se propõe atingir. O governo, se quiser alcançar os seus objetivos, será levado a tomar diferentes categorias de medidas: facilidades de crédito, concessão de subsídios, regulamentação alfandegária ou mão-de-obra, etc. Espera-se obter a cooperação necessária, tornando vantajosa para as empresas particulares a consideração deste plano. Contudo, este não impõe às empresas qualquer obrigação determinada; não lhes impõe que desenvolvam uma certa atividade e que assegurem tal produção. Na União Soviética as coisas passam-se de forma diferente. Neste país, todos os bens de produção se tornaram propriedade da nação. As empresas industriais e comerciais são todas empresas estatais. A planificação toma, por isto, um outro caráter. Sob a forma de atos administrativos, vão ser tomadas disposições concretas; cada uma das empresas que depende do Estado deve cumprir uma determinada tarefa no quadro do plano; quando as empresas tiverem cumprido esta tarefa, os objetivos do plano terão sido atingidos.

DAVID (1996:273/274) fala sobre os contratos planificados e não-planificados:

Para compreender o que é o contrato no setor coletivizado da economia soviética, é necessário ter no espírito o fato primordial de que a tarefa a cumprir por cada empresa é, antes que intervenha qualquer contrato, determinada por um ato administrativo de planificação. Este ato serve, em certa medida, de causa ao contrato a realizar.

A função do contrato só pode ser apreciada em relação ao ato administrativo em questão. O plano, segundo as épocas ou segundo os ramos da economia, pode ter sido mais ou menos autoritário, ou mais ou menos pormenorizado. A função do contrato variou e continua a variar em relação ao caráter e aos dados dos atos administrativos que lhe servem de suporte.

Os atos administrativos de planificação podem, assim, entrar em pormenores, especificar os produtos que devem ser entregues, os seus preços, as datas de entrega, e dizer também entre quem deverá realizar-se o contrato. O interesse do contrato é, neste caso, em um nível mais psicológico que econômico, dar a garantia de que as obrigações que resultam dos atos administrativos de planificação foram bem compreendidas por aqueles a quem são impostas; estes, subscrevendo o contrato previsto pelo plano, mostram que consideram essas obrigações como perfeitamente exeqüíveis e empenham a sua responsabilidade pessoal, colocando a sua assinatura num documento que reafirma os dados dos instrumentos administrativos de planificação.

De fato, é excepcional que o contrato tenha apenas esta função. A maior parte das vezes os atos administrativos de planificação não chegam a ser tão específicos; deixam um campo mais largo à iniciativa das empresas e o contrato é, por conseqüência, chamado a desempenhar, no próprio plano econômico, uma função mais importante. Duas hipóteses merecem ser aqui distinguidas: a dos contratos planificados e a dos contratos não-planificados, para usar a terminologia soviética.

DAVID (1996:274) fala sobre o contrato juridicamente imposto:

Numa primeira hipótese, os atos administrativos de planificação fixam já, de forma precisa, entre que empresas se vai efetuar o contrato. Impõem à empresa A contratar com a B. É a situação a que havíamos aludido. Contudo, tínhamos até aqui entendido que todos os dados do contrato a realizar seriam determinados pelos atos administrativos. Na maioria dos casos acontece algo diferente; espera-se das partes que elas "concretizem" no contrato as obrigações que lhes foram impostas pelo plano. A quantidade de produtos que devem ser transferidos e os seus preços serão, sem dúvida, pelo menos como regra geral, determinados pelo plano. Existem, para toda uma série de mercadorias, "condições gerais de entrega" estabelecidas pelas autoridades administrativas que fixam as cláusulas do contrato a se realizar, com um caráter geralmente imperativo. Contudo, resta ainda um certo número de pontos, importantes na prática, para os quais a experiência provou que nada podia substituir um acordo direto entre os interessados. O contrato vai servir para fixar esses pontos: qualidade e sortimento da mercadoria, embalagem, escalonamento das entregas, etc. A empresa comercial está mais apta do que as autoridades administrativas para conhecer as necessidades e os desejos do público: as medidas de sapatos que serão pedidos, a preferência por tecidos de certa cor, etc. A empresa de construção está também mais apta que a administração para saber as dimensões exatas das tábuas, dos tubos, das placas ou de outros materiais que deseja receber. Na grande maioria dos casos o contrato vai ter a seguinte utilidade: concretizar os dados do plano, no interesse da melhoria da qualidade dos trabalhos a realizar ou das mercadorias a entregar.

DAVID (1996:274/275) fala sobre o contrato economicamente necessário:

A segunda hipótese é aquela em que os atos administrativos de planificação não determinam a existência de uma obrigação de concluir um contrato a cargo da empresa A ou da empresa B. Tudo o que fazem é impor a uma e a outra destas empresas o cumprimento de uma determinada tarefa, deixando-lhes a escolha dos meios pelos quais a concluirão. A obrigação de redigir contratos resulta indiretamente, na grande maioria dos casos, da necessidade de cumprir a tarefa prevista pelos atos de planificação. Mas estes não dizem entre quem o contrato deve ser concluído. Deixam à empresa a escolha do seu contratante; escolha, é claro, limitada: a empresa soviética só pode, salvo se o contrário estiver previsto, dirigir-se a uma outra empresa soviética, e é necessário que o que ela pedir a essa empresa entre no quadro das atividades que, em virtude do plano, são da competência desta outra empresa. Contudo, esta nova hipótese aproxima-se, em certa medida, da liberdade dos contratos, tal como é concebida nos países burgueses.

Contudo, subsistem diferenças importantes. Numerosos elementos do contrato a realizar são previamente estabelecidos, sem que as partes os possam modificar, por toda uma série de atos que regulamentam a economia soviética (condições gerais de entrega dos produtos, disposições que fixam a nomenclatura dos produtos, decretos que impõem a redação dos contratos dentro de certos prazos, medidas de fixação autoritária dos preços, etc.). Uma diferença essencial reside, sobretudo, em todos os casos, no fato da tarefa concreta que ela deve cumprir ser fixada pelos atos de planificação para cada empresa; o plano não se limita a indicar qual será, num plano geral, e para um certo tempo, a política econômica do governo.

A tendência atual, na União Soviética, é desenvolver a prática aqui considerada e facultar às empresas, em todos os casos em que isso seja praticável, a escolha do seu contratante. A designação pela administração das próprias empresas entre as quais se deve efetuar o contrato tende a tornar-se excepcional, e a ser feita apenas em casos particulares: por exempio, quando um dos contratantes ocupa uma posição de monopólio, como será no caso dos fornecimentos das matérias-primas tais como o carvão de pedra, o ferro, o petróleo, etc. Espera-se, dando às empresas uma maior liberdade, permitir-lhes estabelecer programas de produção a longo prazo e deste modo fazer com que o contrato não seja somente um instrumento de execução do plano, mas venha a desempenhar um papel na própria elaboração do plano. Deste modo, procura-se evitar a má adequação da produção às necessidades: assiste-se bastantes vezes à constituição de estoques invendáveis em setores onde as necessidades dos consumidores permanecem insatisfeitas. Contudo, é difícil dar aos contratos este duplo papel, e regressar assim, numa certa medida, a uma economia de mercado, conservando o princípio da planificação centralizada que é olhada como o próprio fundamento de uma economia socialista. Ainda não está claro como, em que setores, e em que medida se poderá conseguir futuramente, na União Soviética, conciliar estes dois princípios opostos.

DAVID (1996:275/276) fala sobre a função do contrato:

As indicações precedentes mostram a função que o contrato desempenha no direito e na economia soviética. Esta função é muito diferente daquela que o contrato desempenha nas economias liberais, mesmo quando estas se tornaram economias dirigidas. O contrato existe sobretudo, na União Soviética, para assegurar a execução do plano, em relação ao qual ele é um instrumento subordinado.

Nos países não-socialistas o contrato é, pelo contrário, um instrumento plenamente autônomo, sobre o qual assenta em primeira linha o próprio mecanismo da economia; o plano, quando existe, é nestes países apenas um documento de ordem política, desprovido do valor propriamente jurídico, fundamental para organizar as relações entre as empresas, que lhe é atribuído na União Soviética. Desta diferença relativa à função dos contratos e às relações entre o plano e os contratos, vai resultar, no domínio da técnica jurídica, uma regulamentação muito diferente do contrato na União Soviética e nos países burgueses. Esta diferença de regulamentação pode ser observada, quer se considere a formação dos contratos, quer os seus efeitos, a sua execução ou as conseqüências da sua inexecução.

DAVI (1996:276) fala sobre a formação do contrato:

Consideremos em primeiro lugar a formação dos contratos. A situação apresenta-se diferentemente, na União Soviética, nas duas hipóteses que distinguimos. Se os atos administrativos de planificação previrem a realização de um contrato entre a empresa A e a empresa B, a conclusão desse contrato tornar-se-á obrigatória para essas empresas. Se não chegarem a acordo para concluírem esse contrato, nas condições (por vezes bastante pormenorizadas) previstas pelos textos administrativos, serão obrigadas a isso pela decisão de um organismo de arbitragem; os organismos de arbitragem pública funcionam, deste modo, em numerosos casos, como um contencioso pré-contratual. No entanto, este contencioso está na época atual em declínio, pelo fato de, como já foi dito, presentemente se preferir uma fórmula mais maleável de planificação, deixando às empresas a escolha dos seus contratantes. Neste caso, está vedado aos organismos de arbitragem pública intervir, quando uma empresa se recusar a contratar com outra.

DAVID (1996:276/277) fala sobre a execução do contrato:

Quando se considera a conclusão dos contratos, a legislação soviética afasta-se igualmente do ponto de vista burguês quando se examinam os efeitos dos contratos e as conseqüências da sua inexecução. Os direitos burgueses, que vêem no contrato um simples valor patrimonial, uma ocasião de lucro para os contratantes, satisfazem-se facilmente com uma execução pelo equivalente desses contratos: a parte que não cumpriu as suas obrigações é condenada em perdas e danos para com o seu contratante.

A situação é diferente no direito da União Soviética. A execução por equivalentes das obrigações contratuais não pode dar satisfação às empresas soviéticas, porque a finalidade destas não é o lucro. É necessário que os contratos sejam executados in natura, porque a execução do plano assim o exige; e isto é tanto mais verdade quanto é certo que, dada a estrutura da economia soviética, não se encontrará neste país a possibilidade de "substituição", ou de pedir a uma outra empresa para que substitua aquela que não executou as suas obrigações contratuais.

O princípio da execução in natura vai então ser — não em teoria como nos direitos romanistas, mas de fato — o princípio admito na União Soviética. E como se trata de garantir, assim, uma coisa importante, primordial mesmo, que é a execução do plano, vai-se conceber a execução das obrigações contratuais com um extremo rigor. Toda inexecução de um contrato planificado será severamente punida: o próprio contrato deve obrigatoriamente prever penas que, especialmente no caso de atraso, acrescerão à execução in natura. A cláusula penal do direito soviético não é uma avaliação condicional de perdas e danos; e uma pena privada que acresce à execução 8~ À outra parte nem sequer lhe é permitido desonerar o seu contratante; tal entendimento, contrário ao interesse de uma estrita execução do plano, não pode ser admitido no direito soviético. Além disso, sanções disciplinares, ou mesmo penais, podem eventualmente ser aplicadas no caso da inexecução das obrigações resultantes do contrato. A execução dos contratos que se enquadram na execução do plano é, na União Soviética, uma questão de ordem pública.

DAVID (1996:277/278) emite uma conclusão:

Com esta análise, que restará de comum entre o contrato do direito soviético e o contrato dos direitos burgueses? A palavra foi conservada e pode eventualmente servir para encobrir uma mesma realidade: os contratos que se situam "fora do plano" — contratos entre empresas comerciais estatais e consumidores, contratos entre cidadãos — pemanecem próximos dos contratos que conhecemos nos países burgueses. Por mais importantes que sejam — porque é para eles que se dirige todo o mecanismo de economia — estes contratos não são, na prática, os que interessam mais ao jurista, porque, na sua maior parte, são contratos simples, da vida corrente, que não apresentam grandes dificuldades jurídicas. Os contratos para os quais se volta a atenção dos juristas são os contratos do setor planificado: a sua regulamentação e a sua própria noção são completamente renovadas pela relação, inédita, que existe entre eles e uma planificação de tipo desconhecido entre nós. Não basta qualificá-los de contratos administrativos, como poderíamos ser tentados a fazê-lo. Na verdade, assemelham-se mais aos nossos contratos administrativos do que aos nossos contratos de direito civil ou comercial, mas diferenças essenciais — no que se refere à coletivização de bens de produção, à existência e às modalidades do plano soviético, e à ausência de uma oposição de interesses entre os contratantes — os distinguem dos contratos de todos os gêneros, que se celebram nos países não-socialistas. Convém reconhecer sem reservas, nesta matéria, a plena originalidade do direito soviético ".

A situação atual é a seguinte.

Os conceitos jurídicos a partir da implantação da nova ordem democrática no país são cada vez mais semelhantes aos do Direito dos países da família romano-germânica, com insignificantes diferenças.

Sobre o autor
Luiz Guilherme Marques

juiz de Direito em Juiz de Fora (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Luiz Guilherme. A Justiça e o Direito da Rússia:: reflexos da globalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3788. Acesso em: 22 nov. 2024.

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