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Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor na locação predial urbana

Agenda 01/03/2003 às 00:00

Se, de um lado, preocupou-se a Constituição Federal com a necessidade da destinação social da propriedade privada, enfatizando o direito à moradia, também de outro, com o mesmo grosso calibre, realçou a importância da relação de consumo, determinando que o Estado promovesse a defesa do consumidor.

Incumbiu então, ao legislador infraconstitucional, atender claramente à Norma Diretiva. Outra não poderia ser a conclusão, face ao soerguimento da moradia e do direito do consumidor a caráter de direitos fundamentais e princípios de ordem econômica.

Para o hipossuficiente da relação de consumo, sobreveio o Código de Defesa e Proteção do Consumidor, com o escopo de dar plena e irrestrita eficácia à norma ápice.

Nessa senda, uma das células mais importantes da economia nacional é a pessoa do consumidor. É para ele que são destinados os produtos e os serviços. É para ele que se destina a publicidade. Sem o consumidor, não há giro da economia. Sem ambos, consumidor e economia, impossível a manutenção incólume da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da iniciativa privada; da sociedade livre, justa e solidária; do desenvolvimento nacional; e, enfim, difícil se mostra a erradicação da pobreza e da marginalização, assim como a redução das desigualdades sociais e regionais.

Todos esses fundamentos do Estado Democrático de Direito e da República Federativa do Brasil esvair-se-iam céleres com o vento.

Aliás, não é nenhum sofisma ou exagero dizer que o primeiro direito do consumidor é o trabalho. Sim, pois fora do mercado laboral, não há possibilidade de auferir rendas e demonstrar existência de credibilidade negocial, donde resultar na inviabilidade de firmar contratos e/ou adquirir produtos. O direito ao trabalho é, pela Constituição, um direito social (artigo 6º, caput). Tal como ele, também o direito à moradia tem caráter de fundamento social (CF, artigo 6º, caput, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000).

Ressalte-se, ainda, que o art. 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil, estabelece expressamente para o Judiciário, ao aplicar a lei, a necessidade de atender aos fins sociais a que se dirige e às exigências do bem comum. E ainda, se omissa a lei, deve decidir o caso conforme a analogia, os princípios gerais do direito e os costumes (art. 4º, do mesmo diploma legal).

E mais: o artigo 126, do Código de Processo Civil, estabelece que o juiz não pode eximir-se de sentenciar ou despachar alegando lacuna e obscuridade da lei, posto vedado o non liquet. Com tudo isso, há instrumentos aptos para adequar a lei com todo o ordenamento jurídico positivo, como bem lembra o Ministro Sálvio de Figueiredo Texeira: "A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil... Se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, julgando contra legem, pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que mais atenda às aspirações da Justiça e do bem comum". (apud Theotonio Negrão. Código de processo civil e legislação extraprocessual em vigor. 33ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002, p. 224)

Observe-se, ainda, que não é o preceito que informa o princípio, mas exatamente o inverso. Só há norma posta porque princípios gerais anteriores a informaram. Parte-se, então, diretamente do princípio para se dar adequação, lógica e coerência sistemáticas à norma individual.

Pois muito bem.

A defesa do consumidor e a função social da propriedade espelham fundamentais princípios erigidos a dogma de calibre constitucional. Ambos têm imediata aplicabilidade nas relações econômicas e, via de conseqüência, nos direitos sociais, inclusive à moradia. Se não os houvesse no sistema jurídico posto, liberar-se-iam os abusos e o comprometimento da legitimidade jurídica da propriedade, e afastar-se-ia a sapiência dos aforismos: "odiosa sunt amplianda, favorabilia sunt restringenda" (restrinja-se o odioso, amplie-se o favorável) e "ubi eaden ratio legis, ubi eaden legis dispositio" (onde existe a mesma razão fundamental prevalece a mesma regra de direito).

Ou seja: a) deve-se ampliar o alcance dos princípios de ordem pública e interesse social consagrados primeiro na Constituição Federal e, em seguida, no Código de Defesa e Proteção do Consumidor; b) e, se tanto o Código do Consumidor como a Lei Inquilinária objetivaram proteger o mais fraco da relação jurídica, então que prevaleçam em suas relações as mesmas regras protetivas, pois só assim atender-se-á ao objetivo legal: igualar as partes, deixando-as no mesmo patamar jurídico.

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Eis a aplicação dos métodos teleológicos, axiológicos e sistemáticos. Todos, inegavelmente, prioritários aos métodos lógico e literal, sob pena de esvair a pretensão da lei e obstar que ela cumpra sua verdadeira finalidade.

Mas também os métodos lógico e literal dão guarida à aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas relações inquilinárias. Vê-se dentro do contexto histórico a presença do locatário como pessoa mais fraca da relação jurídica locatícia, tratando-se, portanto, da mesma vulnerabilidade fática do consumidor.

"Assim, na exata medida em que, aparentemente, a Lei de Consumo não deixa de proteger as locações prediais urbanas, aplicando-se apenas ao fornecimento de produtos e serviços, contraria o comando constitucional de proteção do consumidor.

"Sim, pois o consumidor é aquele que consome, ou seja, aplica as riquezas na satisfação de suas necessidades. A riqueza, semanticamente dissecada, é a fonte de bens morais ou materiais, tudo quanto é capaz de satisfazer as necessidades humanas.

"Não há como negar a qualidade de riqueza à utilização de imóveis urbanos, o que satisfaz uma necessidade humana, mormente considerando o déficit habitacional, principalmente nos grandes centros.

"Logo, a locação predial urbana, integralmente nos casos legais, é relação jurídica de consumo..." (Conclusão de estudo desenvolvido sobre o tema idêntico ao objeto do presente, gentilmente cedido pelo Mestre Luiz Antônio Scavone Jr.).

E não é tudo.

A posterioridade da Lei Inquilinária não afasta a Lei Consumerista. Outrossim, não tem cabência o princípio da especialidade das normas. A pensar desse modo, não haveria como aplicar da Lei n. 8.078/90 nos empreendimentos imobiliários, nos compromissos de compra e venda ou nas relações bancárias (exemplificativamente inseridas no rol do Código Consumerista). Se não houve expresso ou aparente conflito de normas, ou se não tratou inteiramente da mesma matéria, nada obsta a aplicação conjunta das leis (LICC, art. 2º, §§ 1º e 2º), sendo que uma servirá para completar a outra, ampliando-se a proteção da pessoa visada pelo legislador (na Locação: o locatário; no Consumo: o consumidor; ambos hipossuficientes).

Antes de haver conflito de normas, há convergência de ratio legis. Excluir a aplicação da Lei Consumerista na Lei Inquilinária é desprezar a ratio legis de ambas, desatendendo à finalidade política legislativa que as inspirou. Ademais, o que o Estado tem de proteger não é simplesmente o locatário em face do locador, ou o contrário; mas sim o morador e toda a sua família em face da falta de moradia e da necessidade de morar, dentro do seu orçamento familiar. (Cf. José da Silva Pacheco, ob. cit., p. 175)

Único óbice que se nos mostra plausível é a ausência dos elementos integrativos da relação de consumo na relação inquilinária. Inicia-se pela ausência do "destinatário final"; e segue pela ausência da habitualidade do fornecimento do produto descaracterizando a pessoa do fornecedor.

Ora, tais proposições não se mostram quantum satis à contrariedade, pois e quanto ao locador profissional? Ou, em relação ao simplório pai de família, que destina grande parte de seus rendimentos à sua moradia e de toda a sua família, pagando os locativos?

Observe-se que, a Constituição manda proteger o "consumidor", e não o "consumidor de produtos ou serviços", pois aqui pode-se limitar o campo de proteção, coisa que não foi determinada pela Norma Maior. Não parece haver muita dificuldade, ainda, em se concluir que todos os locatários são o "destinatário final" do imóvel. Enfim, anote-se que são exemplificativas as hipóteses de aplicação do Código Consumerista, outorgando-se elastério ao intérprete, de vez que apenas a exceção esteve expressamente mencionada (v.g., relações trabalhistas). Ademais, todas as vezes que a interpretação for conduzida no sentido de excluir direitos, máxime as garantias fundamentais, tem ela de ser feita de maneira restrita.

Se o locador for do tipo profissional, valendo-se de sua propriedade para auferir lucros; ou se o negócio é intermediado por imobiliárias, configura-se no mínimo fornecimento de serviço, sendo o locatário o consumidor final do serviço.

Ainda que não seja estritamente profissional o locador, inimaginável quer-nos parecer sua situação de superioridade em relação ao locatário, principalmente em casos de urgente necessidade na locação de imóvel para morada de toda a sua família, quando então se vêem com mais freqüência os abusos e as imposições leoninas do proprietário da coisa cedida. Deve-se, pois, reprimir e vedar a prática de atos atentatórios ao equilíbrio contratual e à correspondência das prestações, evitando-se o locupletamento indevido à custa do empobrecimento alheio.

Ao fim e ao cabo, apenas a incompatibilidade manifesta afasta a incidência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor nas relações locatícias, quando então deverão prevalecer as regras deste, se em compasso com os preceitos virtuais consagrados na Constituição Federal de 1988, sendo que uma das conseqüências lógicas da função social da propriedade é o seu "fornecimento", enquanto imóvel urbano, para o uso da sociedade ou, mais restritamente, para a moradia de certo grupo familiar.

Assim considerada, deve respeito às disposições do Código de Defesa do Consumidor, que nada mais é que uma das formas de limitação ao direito absoluto de domínio, vez que, ao admitir a propriedade, a Constituição determina, logo em seguida, que deve atender a sua função social, ou seja atender a determinadas limitações (Luiz Antônio Scavone Jr., em trecho da conclusão do trabalho já referido).

Em decorrência disso, amplos são os benefícios ao locatário, a começar pelo Sistema Nacional de Proteção do Consumidor, que visa atender as necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo. Segue-se, ainda, a disponibilidade dos instrumentos jurídicos postos à disposição do consumidor, entre os quais a assistência jurídica integral e gratuita para o consumidor carente.

Isso entre tantos outros benefícios da Lei n. 8.078/90, como a proteção contratual. Aliás, o sistema de considerar-se abusivas e nulas de pleno direito algumas mazelas em muito se assemelha à preocupação da Lei n. 8.245/91. Se são iguais, não se pode tratar com diferenças. Apenas para elucidar, citemos como exemplo o sistema das nulidades de ambas as Leis: no artigo 45, a Lei do Inquilinato considera "nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da presente lei"; e o Código de Defesa do Consumidor tachou como "nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços" "que estejam em desacordo com o sistema de proteção do consumidor" (art. 51, inciso XV). Ambos os Diplomas Congressuais, de forma aberta e abrangente, consideraram tisnadas pela nulidade absoluta as disparidades entre o contratado e o sistema protetivo de qualificação pública e de interesse social.

Uma interpretação de norma jurídica deve guardar correspondência mínima com o texto legal. Mas também, deve-se ater ao bem comum, aos fins sociais que se destina a lei, à vontade da norma, a todo o sistema normativo e, enfim, a questões históricas. Ademais, uma lei ordinária tem de ser promulgada para atender aos reclamos da Constituição, norma diretiva ápice de conduta de toda a nação.

Se a aplicação da lei infra-constitucional redunda em escapar dos ditames preconizados pela Constituição, então ela se mostra inconstitucional, ou não recepcionada, pois é aquela quem tem o condão assecuratório do direito de propriedade em consonância com as limitações previstas em todo o ordenamento jurídico (onde se encaixa o supedâneo da função social que o domínio tem de respeitar, por força do Estatuto Supremo).

Outrossim, a Constituição Federal, no art. 5º, inciso XXXII, determinou que o Estado promovesse a "defesa do consumidor", não se limitando a "consumidor de produtos e serviços", de tal sorte que não se mostra de todo válida a restrição ditada pela Lei n. 8.078/90 ao verberar o que ela define como consumidor. Como observado alhures, não se admitiria que lei infra-constitucional, ao atender comando da Carta Magna, desrespeitasse o conteúdo do próprio comando, qual seja, de tutelar as relações em que se identifique consumo, o que inclui qualquer necessidade econômica do homem, abarcando a cessão temporária de uso e gozo de imóvel urbano, desde que presentes, simultaneamente, na mesma relação jurídica, a figura do consumidor e do fornecedor, respectivamente como locador e locatário.

Somem-se a isso os preceitos virtuais e expressos da Constituição, consagrando a função social da propriedade e o direito social à moradia, como forma de diminuição do outrora absoluto direito ao domínio, formando um vínculo que desencadeia em liames entre o proprietário e a coletividade, entre aquele e à função social de seu bem e entre este ao direito do proprietário.

Somente a incompatibilidade manifesta afasta a incidência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor nas relações locacionais imobiliárias urbanas regidas pela Lei n. 8.245/91, quando então deverão prevalecer as regras deste, se em compasso com os preceitos virtuais consagrados na Constituição Federal de 1988, sendo que uma das conseqüências lógicas da função social da propriedade é o seu "fornecimento", enquanto imóvel urbano, para o uso da sociedade ou, mais restritamente, para a moradia de certo grupo familiar.

Assim considerado, as locações de imóveis urbanos devem respeito às disposições da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor, que nada mais são que uma das formas de limitação ao direito absoluto de domínio, vez que, ao admitir a propriedade, a Constituição determina, logo em seguida, que deve atender a sua função social, ou seja atender a determinadas limitações.

Portanto, o direito de propriedade, atendida a sua função social, está previsto na Carta Maior, como também o direito à moradia, da mesma forma que as condições necessárias ao seu exercício, incluída aí a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às locações de imóveis urbanos. Tal aplicabilidade se dá na exata medida em que o exercício do direito de propriedade, através da cessão temporária de um de seus atributos, encontra limitações na Lei n° 8.245/91 e, principalmente, nas disposições da Lei n° 8.078/90.

Sobre o autor
Alex Sandro Ribeiro

advogado, escritor e consultor, pós-graduado em Direito Civil pelo UniFMU, membro do 4º Tribunal de Ética da OAB/SP, consultor especializado em microempresas e empresas de pequeno porte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Alex Sandro. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor na locação predial urbana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3833. Acesso em: 22 nov. 2024.

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