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Religião e Direito: 67 Anos do Estado de Israel e breve comparativo à realidade brasileira

Agenda 23/04/2015 às 10:11

A Importância da separação entre Estado e religião está no sentido de impedir um possível choque entre os valores destas duas instituições, que podem ser muitas vezes contraditórios. Tenta-se artificialmente preservar as esferas de influência de cada um

Direito e Religião em Israel:

Israel completa seu 67º aniversário no dia 23 de abril. Durante este período o povo judeu construiu um país moderno e vibrante, com renda per capita de aproximadamente US$ 33 mil dólares por ano, celeiro e exportador de tecnologias que revolucionam o mundo moderno, sendo o terceiro país com mais empresas listadas na Nasdaq, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

Uma das principais diferenças entre Israel e as demais nações do mundo é que o Estado de Israel tem como sua religião oficial a religião judaica. Não existe a separação clássica entre Estado e igreja, baluarte da maioria dos Estados ocidentais democráticos. Quais seriam as consequências práticas dessa ausência de separação?

Neste mês de abril, por exemplo, houve a celebração da pascoa judaica, o Pessach, que neste ano coincidiu com a data da páscoa cristã. Como em todos os anos, judeus de todo mundo celebraram a libertação da escravidão no Egito, e para lembrar o milagre e a fuga desesperada pelo deserto, deve-se comer durante 8 dias a Matza, o pão que não fermentou, sendo proibida pelas leis judaicas religiosas qualquer consumo de alimentos que contenham fermento durante este período, sejam estes pães, cereais ou massas.

Este costume é tão importante para os judeus que, por força da lei da Matza (Proibição de Fermento) de 1986, durante este período, em Israel, a oferta pública de alimentos à base de fermentos é proibida nos estabelecimentos comerciais localizados onde a maioria da população é de origem judaica,

Tal proibição já foi mais severa. Até 2008, quando um Tribunal Administrativo de Jerusalém decidiu sobre o assunto, a interpretação que se dava à lei era ainda mais abrangente, no sentido de proibir completamente a comercialização dos produtos à base de fermento. Para muitos judeus, especialmente os menor observantes, tal proibição constituiria uma flagrante afronta à Lei de Liberdade de Ocupação, uma lei Básica, considerada de hierarquia constitucional (Israel, assim como o Reino Unido, não tem uma constituição formal) e que garante o direito de todo cidadão ou habitante de exercer a ocupação, profissão ou comércio, que lhe convier. Afinal, além de judaico, o Estado de Israel é também democrático, sendo considerado por muitos a única democracia do Oriente Médio.

Ao longo dos anos, a difícil missão de harmonizar os valores judaico e democrático do Estado de Israel, aparentemente inconciliáveis, foi em última instância incumbida ao seu Poder Judiciário, sobretudo à Suprema Corte de Israel, que utilizando de técnicas similares ao que denominamos de choque de princípios constitucionais (embora não haja constituição), nos moldes dos ensinamentos de Norberto Bobbio, tentar equilibrar estes dois valores.

Neste sentido, durante a sua curta existência, muitos casos tendo como objeto o aparente conflito entre religião e Estado, foram decididos pela Suprema Corte ou por cortes de hierarquia inferior (e que não subiram à Suprema Corte por razões políticas), desde a referida proibição da venda da matza (houve também outro caso relacionado à venda de carne de porco), até questões envolvendo direitos das mulheres rezarem no Muro das Lamentações de maneira contrária aos costumes ortodoxos, e da obrigação dos judeus mais ortodoxos de cumprir o serviço militar obrigatório, cujo entendimento foi recentemente alterado no sentido de estender o alistamento obrigatório aos mesmos.

Note que todas estas decisões tratam da dicotomia e da relação institucional entre Estado e religião e não da relação de hierarquia da religião judaica sobre as demais. Na verdade, a hierarquia da religião judaica, ao longo dos anos, restou adstrita a 3 esferas: 1 – direito de imigração, ou Lei do Retorno, cujo critério é a descendência judaica ate o terceiro grau (emprestado do regime nazista que perseguia judeus até a terceira geração); 2- símbolos do Estado, entre eles a Menoráh, a Estrela de David e o hino nacional Hatikvá; 3; feriados nacionais.

No que se refere à legislação geral e às decisões das cortes israelenses, muitos têm uma visão distorcida de que estas leis e decisões são elaboradas e promulgadas com base em leis e preceitos religiosos da Torá e do Talmud, o que não corresponde à realidade. A maioria das leis do Estado de Israel é fruto de longas discussões no seu Parlamento, o Knesset, após as devidas consultas a órgãos técnicos, à sociedade civil e a vários especialistas. Decisões judiciais, sobretudo as que têm por objeto lides mais complexas, analisam e interpretam o posicionamento de seus colegas de toga europeus, (sobretudo ingleses) e americanos. Destarte, ainda hoje há grande influência da lei britânica, então vigente à época do Mandato Britânico, que foi recepcionada pela ordem jurídica do então nascente Estado de Israel quando de sua independência em 1948. Tais leis britânicas foram substituídas ao longo dos anos, seja tácita ou expressamente, pela legislação promulgada pelo Knesset, sendo que algumas delas continuam em vigor até hoje.

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As leis religiosas judaicas, entretanto, são aplicáveis a questões de Direito de Família, onde as cortes competentes para julgar tais questões são as cortes religiosas de cada uma das religiões. Enquanto os cidadãos judeus estão sujeitos aos tribunais rabínicos que aplicam o direito da Torá, muçulmanos, cristãos e drusos estão sujeitos aos respectivos tribunais religiosos de suas religiões. 

Tal arranjo foi herdado da ordem jurídica do Império Turco-Otomano, não tendo sido alterado até hoje. Uma das suas consequências práticas é a inexistência do instituto do casamento civil em Israel. Pessoas de religiões diferentes não podem se casar dentro do território de Israel, que, no entanto, reconhece o casamento civil entre pessoas de religiões diferentes, desde que celebrado no estrangeiro. 

Outro efeito legal disto é o fenômeno conhecido como “corrida à jurisdição”. Como as cortes civis têm competência concorrente para julgar questões relacionadas à partilha dos bens, pensão alimentícia e guarda dos filhos, as mulheres, na maioria das vezes, preferem “correr” à Justiça Comum, a fim de assegurar julgamentos mais favoráveis, já que não é incomum que a lei baseada em preceitos religiosos, seja esta rabínica, sharia ou canônica, favoreça o cônjuge do sexo masculino.  

Religião no Brasil

O Brasil, por sua vez, é considerado um país laico, não havendo, portanto uma religião oficial.  Não obstante, em muitos dos prédios oficiais dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário nos deparamos com crucifixos, capelas e outros símbolos da religião cristã ou católica, que é a religião da maioria de sua população. 

A controvérsia não é nova em nosso ordenamento. Em 1991, houve o julgamento de Mandado de Segurança impetrado pelo Sr. Antonio Carlos de Campos Machado, visando reverter decisão do Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, de retirar os símbolos religiosos da Assembleia Legislativa. Neste julgado, o TJ/SP negou a segurança do mandado, afirmando que a Mesa da Assembleia tinha competência exclusiva para colocação de enfeite, quadro e outros objetos na parede (TJ/SP, Mandado de Segurança nº 13.405-0, Relator Desembargador Rebouças de Carvalho, julgado em 02.10.1991-0).

Em 2007, a ONG Brasil para Todos encaminhou pedido ao Ministério Público e ao Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”) solicitando a retirada dos símbolos religiosos em tribunais e assembleias legislativas. No julgamento, o CNJ decidiu pela manutenção dos crucifixos, afirmando a prevalência do caráter cultural e tradicional destes sobre seu caráter religioso.

Em 2009, a juíza federal Maria Lúcia Lencastre Ursaia, da 3ª Vara Cível Federal de São Paulo, em Ação Civil Pública, iniciada com representação de Daniel Sottomaior Pereira, determinou que a presença de símbolos religiosos em prédios públicos não ofende os princípios constitucionais da laicidade do Estado nem de liberdade religiosa.

Em 2012 o Conselho de Magistratura do Rio Grande do Sul, atendendo a pedido da Liga Brasileira de Lésbicas, decidiu pela retirada dos crucifixos dos Tribunais daquele Estado.

Para além dos crucifixos presentes em prédios públicos, apenas feriados da religião cristã foram elevados por lei federal ao status de feriados nacionais. A Lei Nº 662 de 1949 estipula que os dias 1º de janeiro, 1º de maio, 7º de setembro, 15º de novembro e 25º de dezembro são feriados nacionais, sendo que este último é de caráter religioso apenas para os cristãos.

No mesmo sentido, a Lei Nº 9.093 de 1995 em seu art. 2 dispõe que são considerados feriados religiosos os dias de guarda, declarados em lei municipal, de acordo com a tradição local e em número não superior a quatro, neste incluída a Sexta-Feira da Paixão, outra data sagrada apenas ao cristianismo.

Tanto a elevação de datas simbólicas, ligadas unicamente ao cristianismo, ao status de feriado nacional, bem como a aposição de crucifixos em prédios públicos constituem afronta ao caráter laico do Estado brasileiro e às disposições do Art. 19 I da Constituição Federal que estabelece que “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada na forma da lei a colaboração do interesse público”.

Também não procede o argumento que os crucifixos devem permanecer nos órgãos públicos por serem considerados símbolos do Brasil, à luz do que preconiza o Art. 13 § 1º da Constituição  Federal que determina que são símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais.

Conclusão

A importância da separação entre Estado e religião está no sentido de impedir um possível choque entre os valores destas duas instituições, que podem ser muitas vezes contraditórios. Tenta-se artificialmente preservar as esferas de influência de cada um deles: enquanto o Estado teria domínio sobre a esfera pública, a religião ficaria reservada à esfera privada.

A liberdade de religião não implica apenas a possibilidade de escolher a religião, mas também o direito de não se submeter a nenhuma delas. A experiência de Israel mostra que a escolha da religião judaica como religião oficial não tem sido exercida em detrimento das outras minorias religiosas, como acontece em muitos Estados islâmicos, prevalecendo, na maioria das vezes, o caráter democrático do Estado judeu sobre o seu caráter judaico.

Parece, todavia, que mais avanços são necessários no sentido de garantir maiores liberdades aos cidadãos, sobretudo no que diz respeito à instituição do casamento civil e uma melhor definição quanto às competências das cortes religiosas para decidir sobre assuntos de Direito de Família.

O Brasil, por seu turno, precisa avançar no sentido de garantir a laicidade de suas instituições. Não se pode negar a importância dos valores e da cultura católica/cristã na formação do país, mas tal lembrança não nos deve ser oficialmente imposta pelos órgãos dos Poderes Judiciário Legislativo ou Executivo que devem elaborar, aplicar e executar a lei, independentemente de credo, cor ou religião. A escolha pela laicidade implica em abstenções e tratamento isonômico de todas as religiões, não se podendo escolher uma em detrimento das demais, nem mesmo para fins simbólicos ou estéticos, sob pena de violação a tal princípio.

Sobre o autor
Eduardo Ludmer

Dual qualified lawyer in Brazil and Israel with extensive experience and expertise in handling local and cross-border legal matters primarily practicing in the areas of intellectual property, corporate and business law and international arbitration.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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