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Os princípios reitores do direito público e do direito privado e o princípio da autonomia da vontade regrada

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Agenda 01/03/2003 às 00:00

Sumário: 1. À Guisa de Introdução. 2. Conceito e Função dos Princípios do Direito: A Visão Pós-Positivista; 3. A Origem da Divisão Direito Público-Direito Privado; 4. Princípio da Soberania: O Fundamento do Direito Público; 5. Princípio da Autonomia da Vontade: Antigo Fundamento do Direito Privado; 6. A Feição Moderna do Princípio da Autonomia da Vontade: O Princípio da Autonomia da Vontade Regrada.


1. À Guisa de Introdução.

Infere-se do próprio título do presente trabalho que nos dispomos a discorrer sobre princípios jurídicos que fundamentam o direito público e o direito privado.

Assim, para se entender o que é o princípio da autonomia da vontade e o princípio da soberania, primeiramente é imprescindível se saber o que são princípios do direito e qual a sua função no ordenamento jurídico. Depois disso, discorreremos sobre os princípios da soberania e da autonomia da vontade. No último tópico, exporemos a nossa compreensão da evolução pela qual passou o princípio da autonomia da vontade e do porquê de o denominarmos de princípio da autonomia da vontade regrada.


2. Conceito e Função dos Princípios do Direito: A Visão Pós-Positivista dos Princípios do Direito

Se há um campo na ciência do direito que encontrou verdadeiro desenvolvimento teórico-dogmático nas últimas décadas este é o dos princípios do direito.

No jusnaturalismo, os princípios ocupavam uma função meramente informativa (para valorar como certo ou errado, conforme a norma de direito positivo se conformasse ou não às diretrizes dos princípios), mas sem qualquer eficácia sintática normativa. Já no juspositivismo a função era meramente subsidiária, por conta de uma norma antilacunas clássica em todos os ordenamentos romano-germânicos. Não que se reconhecesse a normatividade dos princípios neste sistema jusfilosófico. Contudo, ante a possibilidade de ruir o dogma da completude do sistema normativo caso não se colmatessem as lacunas que viessem a ocorrer, o que era tão caro ao juspositivismo, optou-se pela adoção de uma aplicação diferida dos princípios somente como forma de solução das lacunas, a saber: não são os princípios que gozam de normatividade, mas a norma que confere competência ao julgador para aplica-los, donde a validade mediata (não são os princípios que gozam de normatividade, mas a norma que os permite serem aplicados).

Superados os dois sistemas jusfilosóficos, o pós-positivismo, em fins da década de cinqüenta do século passado, se elevou como escola teórico-dogmática em tudo sobranceira, pois vislumbrou a impossibilidade de se abdicar da normatividade dos princípios, fruído a partir do desvendamento do conceito de sistema jurídico aberto, e não autopoiético, como o defendido pelo juspositivismo, orientado por princípios gerais do direito.

Com efeito, segundo Kant, o sistema é uma "[...] unidade sob uma idéia de conhecimentos variados [...]" ou "[...] um conjunto de conhecimentos ordenado segundo princípios [...]". Ou como o definia Eisler, referindo-se ao sistema lógico:

[...] 2. Lógico: uma multiplicidade de conhecimentos, unificada e perseguida através de um princípio, para um conhecimento ou para uma estrutura explicativa agrupada em si e unificada em termos interiores lógicos, como o correspondente, o mais fiel possível, de um sistema real de coisas, isto é, de um conjunto de relações das coisas entre si, que nós procuramos, no processo científico, ‘reconstruir’ de modo aproximativo. (grifamos)

Para esta escola jusdogmática, sendo o direito uma das manifestações da cultura humana (ao lado da língua, da ciência, da religião, da política etc), ele é concebido como um sistema de normas composto por regras e princípios, já que o conceito de sistema lógico, em si mesmo, exige a presença dos princípios para unir os vários elementos que o conformam, sendo que estes fluem do próprio modo de produção da sociedade em que inserido o direito, isto é, os princípios encontram sua fonte de origem nos valores agregados no correr das gerações de uma dada cultura, conformando a compreensão deste povo sobre aquilo que é justo e/ou injusto. Ora, se os princípios conformam a unidade do sistema jurídico, dando-lhe um vetor finalístico (as conhecidas características unidade e ordem), como se não reconhecer a normatividade dos mesmos? Ou em outros termos, não seria uma teratologia conferir aos princípios o papel de liame lógico entre regras sem que sejam, no mesmo passo, normas?

A resposta somente poderia ser positiva. Da mesma forma que um vegetal não pode gerar um animal, o que não é norma não pode gerar, muito menos fundamentar, uma outra norma.

Desta sorte, pode-se conceituar os princípios de direito no mesmo molde que feito por Vezio Crisafulli:

Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam e, portanto, resumem, potencialmente, o conteúdo sejam [...] estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contêm.

Desta conceituação é possível se extrair as seguintes características dos princípios do direito: a) generalidade; b) primariedade; c) dimensão axiológica; d) objetividade; e) transcendência; f) atualidade; g) poliformia; h) vinculabilidade; i) aderência; j) informatividade; l) complementaridade; e m) normatividade.

Para o pós-positivismo, sendo os princípios verdadeiras normas, desempenham eles três funções no sistema jurídico, a saber: a) fundamentação, b) norte para a interpretação e c) fonte de supressão de lacunas:

Embora o gênio de Hans Kelsen tenha se levantado contra tal posição, conforme se infere de suas ilações lançadas na sua mais importante obra – Teoria Geral das Normas -, a teoria pós-positivista fincou de vez as suas raízes, sendo simplesmente impossível desprezar-se as suas bases teorético-dogmáticas se se quiser dilucidar e fundamentar corretamente a natureza dos princípios jurídicos, e com ela os próprios fundamentos da Jurisprudência.

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3. A Divisão Direito Público-Direito Privado: Sua Origem Segundo a Dogmática.

É um tópico dominante na doutrina do direito romano-germânico que o direito, apesar de ser uno e indivisível, posto que conformado em um sistema orientado por princípios gerais do direito, é subdivido em direito público e direito privado.

Esta divisão encontra a sua razão de ser, para alguns, em face do interesse preponderante veiculado pela norma, segundo o preconizado por Rudolf von Ihering e os sectários da jurisprudência dos interesses, para quem:

Os conceitos não poderiam ser causais em relação às soluções que, pretensamente, lhes são imputadas: a causalidade das saídas jurídicas deveria ser procurada nos interesses em presença.

Para outros, no entanto, a divisão encontra o seu fundamento em razão de critérios formal e contenutístico das normas analisadas. Assim, v.g., para Miguel Reale:

Há duas maneiras complementares de fazer-se a distinção entre Direito Público e Privado, uma atendendo ao conteúdo; a outra com base no elemento formal, mas sem corte rígidos, de conformidade com o seguinte esquema, que leva em conta as notas distintivas prevalecentes:

Quanto ao Conteúdo ou objeto da relação jurídica a-1) Quando é visado imediata e prevalecentemente o interesse geral, o Direito é público; a-2) Quando imediato e prevalecente o interesse particular, o Direito é privado. Quanto à forma da relação b-1) Se a relação é de coordenação, trata-se, geralmente, de Direito Privado; b-2) Se a relação é de subordinação, trata-se, geralmente, de Direito Público.

A maior parte da doutrina encontra a origem da dicotomia direito público-direito privado no próprio direito romano.

Com efeito, a doutrina colhe no Digesto 1.1.1.2. de Ulpiano o fundamento histórico para o tratamento diferenciado. Eis o seu teor: "Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat; privatum, quod ad singulorum utilitatem", que em vernáculo quer significar: "O direito público diz respeito ao estado da coisa romana, a polis ou civitas; o privado à utilidade dos particulares".

Assim, na medida em que o direito público relacionava-se à cidade romana, vigoraria um princípio a lhe fundamentar sua existência, do mesmo modo em que, sendo o direito privado relacionado àquilo que tocava a satisfação de interesses dos particulares, demandaria um outro princípio.

Contudo, somente com o surgimento do direito moderno (mais precisamente com o jusnaturalismo e o liberalismo) é que a dicotomia ganhou o status de verdadeiro dogma.

Com efeito, para a sociedade burguesa nascente, importava que o Estado somente se ocupasse da administração da coisa pública, criando condições para que o particular, o empreendedor, o industriário, explorasse os meios de produção econômica de forma livre. Ao Estado se impunha a função de organização da nação e pacificação da sociedade, defesa do território, recolhimento dos tributos, imposição de penas, administração do espaço público, expedição de moedas, e o mais importante, a criação de regras jurídicas claras e objetivas que conferissem segurança jurídica para o homem poder transacionar com o seu próximo, enquanto que a economia seria necessariamente explorada pelo burguês. Não se pode perder de vista, entretanto, a função garantística de tal divisão, na medida em que o Estado Moderno surge como anteposição ao Estado Antigo, como seja, ao Estado Totalitário, em que tudo estava dependente da vontade do soberano.

Neste sentido, eis o que ensina o mestre teuto Gustav Radbruch:

Mas o que vem a ser direito público, o que é direito privado? Contentemo-nos com esta constatação: quando uma obrigação é fundamentada na ordem de um terceiro, ela é regularmente direito público, ao passo que obrigações de direito privado surgem regularmente de auto-sujeição do compromitente: pagar impostos e prestar serviços como jurado é-se obrigado a fazer, quer se queira, quer não; pagar objetos comprados e desempenhar determinadas tarefas só se faz por ter-se assumido as conseqüências decorrente de um contrato de compra e venda ou de trabalho. As relações jurídicas entre pessoas que se encontram em situação de supremacia e sujeição, em outras palavras: relações jurídicas entre soberano e súdito, são objeto do direito público; o direito privado somente se ocupa de relações jurídicas entre juridicamente iguais.

A base teórica se fundamentou em três dogmas, a saber: a) a sacralidade da propriedade, b) a liberdade total e irrestrita do direito de contratar, e c) a exclusividade da produção econômica em mãos do particular.

Assim, o vero fundamento da dicotomia que ora se trata não se prende, em verdade, numa dúplice natureza do direito, mas antes na necessidade de se criar condições ao pleno desenvolvimento da economia de industria que então nascia, o que demandava, em último grau, uma intervenção mínima do Estado no plano econômico.

A divisão surgiu, então, como um projeto ideológico, como no-lo informa Hans Kelsen:

Uma análise crítica mostra, no entanto, que esta distinção não tem qualquer fundamento no Direito positivo – pelo menos na medida em que não se limita a afirmar que a atividade dos órgãos legislativos e administrativos é em geral vinculada pelas leis num grau menor do que a atividade dos tribunais, que a estes é pelo Direito positivo quase sempre conferida uma menor margem de livre apreciação do que àqueles, mas pretende significar algo mais. Esta doutrina de uma essencial distinção entre Direito público e privado enreda-se, além disso, na contradição de afirmar a liberdade (desvinculação) perante o Direito (Freiheit vom Recht) – que reclama para o domínio do "Direito" público enquanto domínio da vida do Estado – como princípio de Direito (RechtsPrinzip), como a característica específica de Direito público. Eis porque ela somente poderia falar, quando muito, de dois domínios jurídicos configurados de maneira tecnicamente diversa, mas não de uma oposição essencial, absoluta, entre Estado e Direito. Este dualismo – de todo logicamente insustentável – não tem, porém, qualquer caráter teorético, mas apenas caráter ideológico.

Contudo, não se pode perder de vista que tal "ideologia" se sedimentou na cultura jurídica de índole romano-germânica, conforme aponta a lição de José Antônio Pimenta Bueno, o mais abalizado exegeta da Constituição de 1824, para quem, já em sua época, o direito necessariamente expressava esta "necessária e natural" atomização:

Com efeito, desde que o homem se reúne em sociedade, não pode deixar de reconhecer que é preciso que esta goze de segurança, de ordem, de meios para seu progresso; e que ele deve concorrer para a felicidade da comunidade social de que faz parte: esse é o interesse geral. Entretanto, quando se associa, o homem não renuncia às suas liberdades, aos seus direitos individuais, não se destina, resigna ou sacrifica a ir ser uma máquina, a viver ou trabalhar só para o serviço social, nem isso é necessário ao Estado; reserva a sua inteligência e faculdades, o direito de suas relações privadas, o arbítrio supremo de seus negócios, dos meios naturalmente lícitos de procurar o seu bem-ser: esse é o interesse ou seu direito particular; e para garantir o gozo dele é que o homem se associa. [...] A razão e a ciência de todos os países civilizados procuram distinguir e separar as relações, em que o interesse individual poderia contrariar direta ou indiretamente o interesse público, e em que por isso mesmo deveria ceder o passo a este, e aquelas em que por não afeta-lo, ou somente afetar mediada ou secundariamente, deveria ser independente, livre, entregue à inteligência e vontade do indivíduo.

Não se há de duvidar da concepção kelseniana, como seja, que inicialmente a dicotomia se apresentou mais por uma questão ideológica. Contudo, ao fim e ao cabo, ela se mostra indispensável para o estudo sistemático do direito, ou mesmo para a melhor compreensão da experiência jurídica, embora, repita-se, a divisão se prende mais a uma questão metodológica e propedêutica.

Desta sorte, no plano meramente formal, observa-se que as normas de direito público veiculam ditames da ordem política, e as de direito privado exclusivamente de ordem patrimonial. Assim, enquanto que no direito público o fundamento principiológico é a soberania do Estado, no direito privado o fundamento é a autonomia da vontade, como seja, a liberdade dada ao homem de se vincular por meio de relações jurídicas contenutisticamente patrimoniais.


4. Princípio da Soberania: O Fundamento do Direito Público.

Quando se analisa no plano dogmático a atomização do direito em público e privado, não se pode perder de vista que tal dicotomia somente tem campo de incidência onde existir o Estado. Ocorre que o direito não surge com o Estado – referimo-nos à experiência jurídica e não ao direito positivo, este sim originado no Estado -, mas sim no primeiro momento em que o homem decidiu se unir com outro/outros homem/homens em bando, surgindo desta união a necessidade de se criarem regras de conduta para a convivência pacífica entre eles, tendo por norte o conhecido princípio alterum non laedere.

É com o surgimento do Estado – e aqui não cabe discorrer sobre o fator preponderante de origem do Estado, se a religião, se a unidade nacional, se o poder político ou se à vontade das nações civilizadas, bastando ver, no plano histórico, que todos estes elementos foram vetores de união e criação dos mais diversos Estados, como o denuncia o caso do povo judeu, unidos pela crença na escolha por Iavé, portanto um fator religioso; o caso inglês, que adveio da unidade nacional no plano das tradições seculares; o caso alemão, advindo do poder político-militar de Bismarck; e o recente caso de Timor Leste, cuja independência nacional se alcançou pelo reconhecimento das Nações Unidas -, orientado pelas necessidades de independência nacional, auto-organização política da nação e pela necessidade de subordinar o povo de um dado território a uma fonte comum de normas jurídicas, é que surge o direito público, ou o direito ordenador do Estado e das relações do Estado, como o ensina Afonso Arinos de Melo Franco:

A verdade é que o Direito Público, predominantemente relacionado com a personalidade jurídica do Estado, com os seus interesses, instituições e órgãos, requer um método de estudo, uma formulação normativa e um processo de aplicação que lhe são próprios.

Como fica claro do que acima foi dito, inexistiria direito público sem que um dado povo gozasse de soberania, como seja, o poder de auto-ordenação adquirido no plano internacional. Com efeito, a soberania se exercita para fora do Estado, por meio da independência nacional, ou seja, a não subordinação a nenhum outro centro de competência normativa, e no plano interior por meio da imposição de observância das regras jurídicas editadas pelo Estado sob pena de sanção às condutas contrárias às leis editadas. Esta soberania é exercida pelo ente jurídico criado pelo próprio ordenamento normativo, a saber, o Estado, por meio de sua mais elevada norma: a Constituição. Assim, a Constituição ocupa não somente a primazia das fontes do direito público (e do privado também, segundo a teoria escalonada das normas de Kelsen), como, em verdade, é o seu verdadeiro fundamento.

Assim, resta evidente que o princípio norteador do direito público é o princípio da soberania, como o deixa evidente a lição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior:

O princípio máximo do direito público é o princípio da soberania. Trata-se de uma noção que, historicamente, apresentou várias conotações. De modo geral, corresponde à efetividade da força, pela qual determinações de autoridade são observadas e tornadas de observação incontrastáveis pelo uso inclusive de sanções, de um ponto de vista interno. De um ângulo externo, no confronto das soberanias, corresponde a uma não-sujeição a determinações de outros centros normativos. É, em síntese, o caráter originário e independente da capacidade de determinar, num âmbito definido de atuação, a relevância ou a irrelevância de qualquer outro centro normativo que ali atue. No direito contemporâneo, afirma-se que soberana é a lei, por força da constituição, que encarna a vontade social, e que confere ao Estado e aos seus entes públicos de modo geral a competência para editar atos soberanos, isto é, dotados de jus imperii.

No plano positivo verifica-se a procedência desta lição, ex vi do disposto nos artigos 1º, incisos I e II e 4º, incisos I, III, IV e V, da Constituição brasileira de 1988:

Artigo 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito, e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania; [...].

Artigo 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I – independência nacional; [...]

III – autodeterminação dos povos;

IV – não-intervenção;

V – igualdade entre os Estados; [...].

Tal princípio se auto-explica, uma vez que o Estado limitado em sua soberania, soberano não é. E sem soberania não existe Estado, pois a abdicação do poder de autoconstituição e autogoverno significa a corrosão do próprio fundamento que dá gênese ao Estado em questão. A correlação, desta sorte, é lógica e imprescindível.

Desta sorte, o direito público, num primeiro momento, se refere às normas que conformam o próprio Estado, como seja, às normas constitucionais que o criam e o organizam, mediante a divisão das funções soberanas – legislativo, executivo e jurisdicional -, repartição das competências, limitação do próprio poder do Estado, mediante a previsão de normas garantísticas da liberdade do cidadão. Num segundo momento, o direito público é composto por normas que regulamentam a atuação do Estado em sua multifacetária rede de relações: o Estado Nacional e os demais Estados, entre órgãos do Estado, entre órgãos do Estado e os cidadãos etc.

Assim, orientando-se pelo plano teorético dado por Miguel Reale, o direito público é complexo de princípios e regras jurídicas – orientados pelo princípio da soberania – que regulamenta: a) a criação e o modo de exercício dos poderes públicos, b) as relações do Estado enquanto pessoa soberana no plano internacional, c) a atuação do Estado quando esteja em jogo o interesse coletivo, d) quando, enfim, esteja em plano de incidência, a aplicação de regras subordinantes, como seja, normas cogentes que se aplicam a toda e qualquer pessoa – inclusive ao Estado -, tendentes à preservação do interesse comum, finalisticamente direcionadas ao estabelecimento e mantença do bem comum.

Exemplos destas normas nós podemos encontrar em temas tão variados como as regras processuais e as normas tributárias, o direito penal e o direito eleitoral, nas regras procedimentais da criação das fontes normativas e no regulamento da administração pública etc.

Assim, como no-lo diz Simone Goyard-Fevre, o direito público compõe-se de regras jurídicas tendentes a organizar, condicionar e limitar o poder político, na medida em que elas

[...] são a trama complexa, ainda que elaboradas de forma lógica, a partir da qual se tecem os acontecimentos da vida política dos povos e através da qual eles adquirem sentido na substância do mundo; elas orientam os comportamentos e as decisões do Estados, impondo uma disciplina, linhas de força e uma ordem às diversas representações e manifestações da existência política. Não há política que não requeira sua organização jurídica por meio de um corpus de regras cuja vocação é, a um só tempo, a de uma ordem-ordenamento que fixa as relações formais entre as normas constitutivas do sistema e uma ordem-comando que expressa a autoridades de que está investida essa instância política. Sistematicidade e normatividade são as duas características conjuntas e indissociáveis da ordem jurídica que estrutura o estofo da vida pública, dando forma e validade a seus conteúdos substanciais [...] sua vocação é, em primeiro lugar, organizacional: confere à diversidade dos fenômenos do mundo político um arranjo lógico e coerente que acompanha a organização racional dos poderes públicos consoante valores e exigências homogêneas. Conseqüentemente, o poder político, longe de se manifestar como uma simples potência que se exerce em circunstâncias particulares e contingenciais, em meio a tensões inevitáveis, é, ao mesmo tempo, condicionado formalmente pelo direito e limitado por ele, já que é nele que encontra seus critérios de validade. Entretanto, o ordenamento jurídico da política não poderia significar, portanto, a vacuidade – nem seu imobilismo rígido, isto é, a institucionalização estática, portanto, o caráter definitivo. O direito político evolui – e deve evoluir – de acordo com os problemas criados pela movimentação histórica e pelo progresso da sociedade.

Em suma, é o poder de auto-ordenação e de subordinação do/pelo Estado que vigora no ramo do direito público, orientado pelo princípio da soberania.

Contudo, não se pode perder de vista a limitação intra-sistêmica ao exercício da soberania, segundo os postulados do Estado Democrático de Direito.

Com efeito, tendo o Estado Moderno por matriz o Estado Liberal dos séculos XVII e XVIII, não se concebe que o próprio Estado, ou o Soberano exerça de forma ilimitada o poder estatal em face dos cidadãos, devendo, portanto, ser um poder limitado: Qual é esta limitação?

Sendo o Estado Democrático de Direito, a limitação encontra fundamento no princípio da legalidade, como seja, o poder estatal encontra limitação nas próprias leis que edita, por meio do Poder Legislativo, que segundo a doutrina clássica do liberalismo, é o corpo de representantes do povo. Não basta que o poder seja limitado pela lei, pois, com efeito, bastaria se optar por um conceito material de lei para se fundamentar o exercício arbitrário do poder, como o fazem os estados totalitários modernos. É imprescindível que a lei que a venha a limitar as liberdades civis provenha do Poder Legislativo, já que, na democracia representativa, da qual o Brasil é um exemplo claro, o mandato parlamentar confere aos membros do órgão legislador a legitimidade de criar tais limitações, como seja, assentindo os mandantes, pressupõe-se o assentimento dos mandatários.

Assim, é o princípio da legalidade o ponto de limite e garantia dos direitos e liberdades civis em face do poder estatal, já que em caso de inobservância, o ato será irrecusavelmente nulo, cuja eficácia será ex tunc.

Veja-se, neste sentido, a lição de Riccardo Guastini:

Em geral, "legalidade" significa conformidade à lei. Chama-se "princípio da legalidade" aquele em virtude do qual "os poderes púbicos estão sujeitos à lei", de tal forma que todos seus atos devem ser conforme a lei, sob pena de nulidade. Dito de outra forma: são nulos todos os atos dos poderes públicos que não sejam conforme a lei. Entende-se que esta regra se refere especialmente – ainda que não de forma exclusiva – aos atos do Estado que podem incidir sobre os direitos subjetivos (de liberdade, de propriedade etc) dos cidadãos, limitando-os ou extinguindo-os. Enquanto tal, o princípio da legalidade tem uma evidente função garantística.

Desta sorte, sendo o princípio da soberania o fundamento do direito público, este mesmo princípio – como é próprio da sistematicidade do ordenamento jurídico – encontra limitação no princípio da legalidade.

Sobre o autor
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira

advogado em Porto Velho (RO), bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia, professor de Direito na Faculdade Associadas de Ariquemes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Marcus Vinícius Xavier. Os princípios reitores do direito público e do direito privado e o princípio da autonomia da vontade regrada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. -123, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3871. Acesso em: 22 nov. 2024.

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