- Introdução
Localizados no estudo da teoria geral dos recursos, os princípios da reformatio in pejus direta, indireta e reformatio in mellius, por serem ricos em detalhes, são sobremodo instigantes. A discussão acerca da aplicação dos referidos institutos está sempre em pauta e ultimamente tem sofrido algumas importantes alterações. A doutrina, sempre atenta aos temas, tem feito questionamentos valiosos, acrescentando bastante na elucidação de questões pertinentes ao assunto.
O que merece destaque, todavia, são os rumos hermenêuticos que os tribunais têm dado à aplicação desses institutos. Dessarte, este artigo trará um binômio essencial aos operadores do Direito nas épocas hodiernas, qual seja, doutrina e jurisprudência. A importância do estudo das decisões, hoje, inegavelmente, tem papel fundamental para correta interpretação e aplicação do Direito.
Por assim ser, preocupou-se em trazer não só os ensinamentos consolidados na doutrina pátria, mas, também, as recentes decisões dos tribunais que, de certa forma, influíram sobremaneira no estudo e aplicação dos institutos da reformatio in pejus e in mellius.
- Reformatio in pejus direta
Antes do estudo da reformatio in pejus direta, porém, faz-se cogente o esclarecimento do princípio devolutivo, bússola do processo em matéria recursal. Por ele, em linhas gerais, diz-se que o juízo ad quem está adstrito às matérias arguidas no recurso interposto pela parte inconformada, vale dizer, impera o tantum devolutum quantum appellatum. Desta sorte, se, por exemplo, a acusação não pediu para o tribunal reconhecer determinada qualificadora, este não poderá fazê-lo ex officio. Ressalte-se, desde logo, que, em processo penal, esse princípio sofre mitigação, como será trabalhado adiante.
Para finalizar essa sucinta explanação acerca do princípio devolutivo, confira-se os ensinamentos de Pacelli:
“Com efeito, ele poderá se satisfazer com parte do julgado e não concordar com o restante. Daí o tantum devolutum quantum appellatum, ou seja, a matéria a ser conhecida (devolutum) em segunda instância dependerá da impugnação (appellatum). ”[2]
Nesta senda, feita essa introdução, pode-se, agora, discorrer sobre a reformatio in pejus direta. Esse instituto está umbilicalmente ligado à ampla defesa. Ele funciona, em verdade, como proteção ao réu. Deste modo, caso o prazo recursal corra in albis para acusação, a defesa fica mais segura para recorrer, visto que terá certeza ao menos de uma coisa: a situação no poderá ser agravada (art. 617 do Código de Processo Penal).[3] Não fosse assim, o réu sentir-se-ia intimidado, tendo em vista a insegurança jurídica que teria ao recorrer, podendo sua situação ser piorada, ainda que em recurso exclusivo seu.
Neste aspecto, sábias são as palavras de Mougenot
“A probabilidade da apreciação negativa da apelação incutiria no réu o temor de recorrer da sentença que lhe causou gravame, prejudicando os princípios da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição, justificando, assim, a necessidade da proibição da reformatio in pejus. ”[4]
Pelo esposado, reitere-se, caso somente a defesa haja recorrido, a situação não poderá piorar, salvo nos casos de reexame necessário.
Claro está que a situação do réu, em recurso interposto somente pela defesa, não poderá ser piorada. Entretanto, pergunta-se: em havendo inconformismo por parte do Ministério Público, como fica a situação?
Aqui, há de ser ter redobrada atenção, pois, por óbvio, em recurso interposto pela acusação, a situação do réu pode ser piorada, caso contrário, o apelo perderia a razão de ser. Ora, se nunca fosse o pleito do parquet acolhido, por que motivo ele recorreria?
Em tom didático, expõem-se as seguintes situações:
- O Ministério Público recorreu pleiteando, por exemplo, uma qualificadora que restara prejudicada quando da prolação da sentença do juízo o quo. O tribunal, conhecendo da matéria nos estritos limites que lhe fora devolvida, reconhece a qualificadora e piora a situação do réu. Neste caso, não há qualquer nulidade, visto que o juízo ad quem observou o princípio do tantum devolutum quantum appellatum, vale dizer, somente atuou nos exatos limites em que foi provocado.
- O Ministério Público recorre pleiteando uma qualificadora “X”, o juízo ad quem, atento ao conjunto probatório, decide, ao invés de conhecer o pleito do parquet, que ao réu deve ser concedido um privilégio. Nesta hipótese, como mencionado alhures, haverá uma mitigação no princípio devolutivo, podendo o tribunal apreciar a matéria em sua totalidade, desde que para beneficiar o réu. Haverá, neste caso, a chamada reformatio in mellius.[5]
- O órgão de acusação recorre arguindo uma nulidade “X”, o tribunal, por sua vez, julgando extra petita, reconhece as nulidades “X”, “Y” e “Z” piorando, sobremodo, a situação do acusado. Ora, aqui há clara afronta ao princípio devolutivo, vale dizer, o órgão ad quem, devendo obediência ao processo acusatório, não pode atuar sem ter sido provocado. Assim, quanto à nulidade “X”, ele estava credenciado para conhecê-la, contudo, em relação às demais, feriu de morte o preceito do ne procedat iudex ex officio[6]. Nesse sentido, é de bom tom que se mencione, ainda, o entendimento sedimentado na súmula 160 da Suprema Corte, que diz: “É nula a decisão do tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não arguida no recurso da acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício. ”
Põe-se termo à terceira hipótese, valendo-se das objetivas palavras do promotor Capez, que leciona no sentido de que “a menos que a acusação recorra pedindo o reconhecimento da nulidade, o tribunal não poderá decretá-la ex officio em prejuízo do réu, nem mesmo se a nulidade for absoluta. ”[7]
Trabalhadas as hipóteses de reformatio in pejus direta, passa-se, agora, ao cotejo da reformatio in pejus indireta.
- Reformatio in pejus indireta
Nesta hipótese ocorrerá o seguinte: o juiz prolata uma sentença, e o réu, inconformado, vislumbrando uma nulidade absoluta que lhe aproveite, apela pleiteando a anulação in totum do decisum. O tribunal, dando provimento ao recurso, anula a decisão atacada. O magistrado de piso deverá, nesta hipótese, quando da prolação da segunda sentença, observar a pena estabelecida na decisão anulada. Do contrário, estar-se-ia violando, ainda que indiretamente, o princípio da reformatio in pejus indireta.
Na abordagem deste tópico é interessante ressaltar que houve uma mudança no entendimento jurisprudencial no que toca a dois relevantes assuntos. Primeiro, sentença proferida por juízo absolutamente incompetente; segundo, sentença proferida no tribunal do júri e o respeito à soberania dos vereditos (art. 5º, XXXVIII, ‘c’, da Carta Política).
Neste diapasão, enfrentando a primeira hipótese, segundo Nestor Távora assevera, é possível verificar como o Superior Tribunal de Justiça entendia:
“Se a anulação do primeiro julgado se deu em face da incompetência absoluta do juízo, mesmo que por recurso exclusivo da defesa, havendo a remessa ao órgão competente, este não estaria adstrito aos limites da primeira decisão, podendo piorar a situação do réu, aplicando-lhe inclusive pena maior, como vinha se manifestando o STJ, em respeito à lógica do juiz natural. ”[8]
Entrementes, em julgado mais recente, referido tribunal mudou seu entendimento, passando a adotar, assim, a tese de que, mesmo em casos de incompetência absoluta, o juiz competente estará vinculado aos limites da sentença proferida por seu antecessor.
Neste sentido, confira-se a decisão que trata da matéria ora em comento:
HABEAS CORPUS. CALÚNIA E DIFAMAÇÃO. PRIMEIRA SENTENÇA ANULADA EM FACE DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA. IMPOSIÇÃO DE PENA MAIS GRAVE EM SEGUNDA CONDENAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO QUE PROÍBE A REFORMATIO IN PEJUS. RESTRIÇÃO DO JUÍZO NATURAL À REPRIMENDA IMPOSTA PELO MAGISTRADO INCOMPETENTE. CONCESSÃO DA ORDEM. 1. (...) 2. (...) 3. Ao se admitir que em recurso exclusivo da defesa o processo seja anulado e, em nova sentença, seja possível impor pena maior ao acusado, se estará limitando sobremaneira o direito do acusado à ampla defesa, já que nele se provocaria enorme dúvida quanto à conveniência de se insurgir ou não contra a decisão, pois ao invés de conseguir modificar o julgado para melhorar a sua situação ou, ao menos, mantê-la como está, ele poderia ser prejudicado. 4. O artigo 617 do Código de Processo Penal, no qual está explicitada a vedação da reformatio in pejus, não estabelece qualquer ressalva quanto aos casos de anulação do processo, ainda que por incompetência absoluta, não devendo o intérprete proceder à tal restrição. 5. Mesmo que haja anulação do feito por incompetência absoluta, deve-se ter presente que se este acontecimento só se tornou possível diante de irresignação exclusiva da defesa, como na hipótese vertente, razão pela qual não é admissível que no julgamento proferido pelo Juízo competente seja agravada a situação do réu, devendo prevalecer o princípio que proíbe a reformatio in pejus. Doutrina. Precedentes. 6. (...)
STJ, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 21/10/2010, T5 - QUINTA TURMA)
Quanto à questão da incompetência absoluta do juízo, com julgado deveras didático do Superior Tribunal de Justiça, encerra-se a primeira problemática.
Por derradeiro, no que tange à reformatio in pejus indireta, resta saber que entendimento prevalece no tribunal do júri, haja vista que, nele, por mandamento constitucional, diz-se que impera a soberania dos vereditos (art. 5º, XXXVIII, ‘c’, da Carta Magna).
Dessarte, no julgamento do júri, haveria duas possibilidades: a) o primeiro júri reconhece, por exemplo, um homicídio simples (art. 121, caput, CP), e o segundo, de modo idêntico, reitera a votação. Neste caso, o juiz sentenciante estará vinculado ao quantum da primeira sentença, não podendo, em hipótese alguma, majorar a sanção. b) o primeiro júri reconhece o homicídio simples, porém a defesa, querendo alegar a tese do privilégio, recorre sozinha da decisão. Acontece, entretanto, que no novo júri, além dos jurados não reconhecem o homicídio privilegiado, entendem tratar-se de homicídio qualificado, piorando, em muito, a situação do réu. Neste caso, pergunta-se: como deverá proceder o magistrado?
Para responder a essa indagação, faz-se uso das preciosas lições de Guilherme Nucci:
“Se o recurso for exclusivo da defesa, determinado a instância superior a anulação do primeiro julgamento, cremos que a pena, havendo condenação, não poderá ser fixada em quantidade superior à decisão anulada. É certo que os jurados são soberanos, mas não é menos certo afirmar que os princípios constitucionais devem harmonizar-se. Embora defendamos com veemência o respeito à soberania dos veredictos, é preciso considerar que a ampla defesa, com os recursos a ela inerente, também é princípio constitucional. Retirar do acusado a segurança para recorrer, invocando a nulidade que entender conveniente, sem o temor de que nova decisão poderá piorar sua situação, não é garantir efetiva ampla defesa. Por tal razão, cremos mais correta a posição daqueles que defendem a impossibilidade da reformatio in pejus também nesse caso.
Lembramos, ainda, que, no segundo julgamento, os jurados não estão impedidos de votar os quesitos da maneira como desejarem, mas o juiz presidente, no momento de fixação da pena, está atrelado ao princípio de que não poderá haver prejuízo ao réu. ”[9]
Finalizando o presente tópico, vale frisar que, hoje, seguindo a corrente defendida por Nucci, o STJ e o STF têm entendido ser compatíveis o princípio da vedação à reformatio in pejus indireta e a soberania dos vereditos, preservando-se, dessarte, o devido processo legal.[10]-[11]
- Reformatio in mellius
A regra encartada no art. 617 do CPP veda a reformatio in pejus, que já foi consideravelmente tratada nos tópicos anteriores. Entrementes, pela leitura do referido dispositivo, percebe-se não haver óbice algum à chamada reformatio in mellius, ou seja, mesmo tendo sido o recurso interposto somente pela acusação, é possível que a situação do réu melhore, ainda que o MP haja pedido sua condenação.
Guilherme de Souza Nucci, no entanto, faz alguma ressalva quanto a esse princípio. Para ele, para haver a reformatio in mellius, deve existir, no mínimo, uma manifestação defesa; assim, em havendo total conformismo desta, não haveria razão para aplicar tal instituto.
Para melhor elucidação do pensamento do autor, analise-se:
“Quanto à reformatio in pejus para acusação, ou seja, melhorar a situação do réu, quando houver recurso exclusivo da acusação, configurando autêntica reformatio in mellius para a defesa, há quem sustente, sob o prisma de que, no processo penal, enaltece-se o princípio da prevalência do interesse do acusado. Parece-nos, no entanto, que a prevalência desse interesse deve contar, no mínimo, com a provocação da defesa. Caso tenha havido conformismo com a decisão, não vemos razão para aplicar o princípio. ”[12]
Em que pese o respaldo do autor, entende-se que, nesse caso, há posição mais alinhada aos princípios de um Estado Constitucional e Democrático de Direito. Não obstante a relevante contribuição de Nucci para o Direito Pátrio, melhor entendimento é firmado por Tourinho Filho, que, em sua obra de processo penal, leciona:
Se o Ministério Público recorre para agravar a pena, nada obsta possa o órgão ad quem agravá-la, mantê-la, diminuí-la ou, então, absolver o réu. Se este foi condenado pelo órgão de primeiro grau por uma infração e absolvido quanto a outra, num simultaneus processos, havendo apenas recurso do Ministério Público objetivando convolar a absolvição em condenação, nada impede possa o tribunal, entendendo que a condenação foi iníqua, proferir decisão absolutória, malgrado a regra do tantum devolutum quantum appellatum.[13]
Nesse mesmo sentido, entendendo pela total possibilidade de o tribunal analisar o recurso em sua totalidade, podendo, inclusive, julgar extra petita, há valiosa lição de Pacelli, que, nesta ocasião, encerrando o estudo do instituto da reformatio in mellius, cai como luvas.
Nesta senda, verifique-se o entendimento do autor:
“Nesse sentido, o que alguns autores denominam reformatio in mellius, que consistiria na alteração favorável da situação do réu em recurso exclusivo da acusação, seria perfeitamente possível, pela ausência de qualquer obstáculo de índole constitucional. De fato, não há que se falar em ampla acusação e tampouco em prejuízo para os interesses da persecução penal, na decisão que favorece o acusado. Nunca é demais lembrar: ao Estado, e a toda sociedade, interessa (e deve interessar), na mesma medida, tanto a condenação do culpado quanto a absolvição do inocente.
De tal perspectiva, nada justifica a vedação da reformatio in mellius, que na verdade será sempre in pejus para a acusação (recorrente). Não há sequer norma legal expressa nesse sentido, como há, por exemplo, em relação à forma prejudicial ao acusado (art. 617). ”[14]
- Conclusão
Por tudo que foi exposto, e tendo em vista a complexidade e relevância dos institutos ora estudados, espera-se ter conseguido alcançar o objetivo precípuo do texto, qual seja, trazer posições doutrinarias variadas acerca do tema, bem como a inserção das recentes decisões que deram novo direcionamento à jurisprudência.
Deve-se reiterar que o Brasil está adotando novos meios para solução das controvérsias, e, dentre eles, a jurisprudência tem ganhado força incomensurável. Desta sorte, em face a tantas mutações no entendimento dos tribunais pátrios, ficam uma lição e um alerta: é preciso estar atento aos sinais que as cortes fornecem. Hoje há que se ter, para lograr êxito nas carreiras jurídicas, conhecimento de um trinômio essencial: lei, doutrina e jurisprudência
Encerrando-se o presente artigo, espera-se ter contribuído com o leitor no que pertine à abordagem dos temas ora estudados.
[2] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16. ed. atual. de acordo com as leis nº 12.403, 12.432, 12.461, 12.483 e 12.529, todas de 2011, e Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011. São Paulo: Atlas, 2012, p. 866
[3] Esclareça-se que não se admite nem mesmo correção de erro material da sentença, vale dizer, não é tolerado que se piore a situação do réu de modo algum, quando somente ele houver recorrido e não seja caso de reexame necessário. Nesse sentido: HC83545.
[4] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 833.
[5] Neste sentido: STJ, 5ª T., REsp 172.717, Rel. Edson Vidigal, j. 22.2.2000, DJU, 20.3.2000, p. 93.
[6] O estado-juiz não deve atuar se não for provocado. Neste caso, não deve conhecer daquilo que não lhe foi devolvido.
[7] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 472.
[8] TÀVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 9. ed. ver. ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 1065.
[9] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 898.
[10] STF – Segunda Turma – HC 89544 – Rel. Min. Cezar Peluso – DJe 15/05/2009.
[11] STJ – Sexta Turma – HC 178.850/RS – Rel. Min. Assusete Magalhães – DJe 13/09/2013.
[12] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 897.
[13] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 4. v., 30. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p.439.
[14] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16. ed. atual. de acordo com as leis nº 12.403, 12.432, 12.461, 12.483 e 12.529, todas de 2011, e Lei Complementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011. São Paulo: Atlas, 2012, p. 861.