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O capital e a nostalgia do ideário do laissez-faire:

um ataque à dignidade humana no âmbito das relações de trabalho

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3. Princípios de Direito do Trabalho

3.1. Introdução

É interessante fazer não só uma análise científica dos fenômenos da flexibilização e desregulamentação normativa, mas também, um estudo detalhado a respeito dos princípios de direito e, mais especificamente, dos princípios específicos de Direito do Trabalho, com abordagem do conceito de princípio de direito, suas funções, bem como os princípios específicos do Direito do Trabalho e sua divisão.

3.2. Conceito de princípios de direito

O significado da palavra princípio abrange tanto o conceito de começo, causa primária, quanto à acepção de preceito, regra, lei. [51] Cientificamente, diz-se que os "princípios gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa pura do Direito quanto o de sua atualização prática". [52] Sua importância é tamanha que Vicente Ráo afirmou que seu desconhecimento leva à criação de rábulas no lugar de juristas. [53]

3.3. Funções dos princípios

Ensina Maurício Godinho Delgado que os princípios ocupam funções diferenciadas no direito, atuando tanto na fase da construção da norma quanto na efetivação social da mesma. Na fase pré-jurídica os princípios balizam o caminho a ser seguido na elaboração de novos diplomas legais, atuando como um farol para as casas legislativas administrarem o feixe de interesses diversos que sempre cercam a produção de uma nova norma legal. Na fase jurídica os princípios atuam de formas diferenciadas, não havendo óbice para que tal atuação das diversas funções seja simultânea. Três são as funções dos princípios. A função descritiva (ou interpretativa ou, ainda, informativa) dos princípios caracteriza-se pela sua atuação no processo de compreensão do direito, atuando de forma a indicar uma direção coerente na interpretação da regra, sendo uma ferramenta hermenêutica auxiliar. Na função normativa supletiva os princípios exercem o papel de fontes normativas complementares, às quais o intérprete recorre na ausência de outras regras jurídicas aplicáveis ao caso. Essa função é citada de forma expressa pelo legislador brasileiro no art. 8º da CLT, [54] no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil [55] e, também, no art. 126 do Código de Processo Civil. [56] Essas duas funções eram as reconhecidas pela doutrina dominante até meados do século XX. Hoje, há também a chamada função normativa própria, acolhida por parte significativa da doutrina, que se caracteriza pela possibilidade de declaração de invalidade da regra em face de colisão com algum princípio. [57]

Esta última função é por demais relevante para o presente estudo, motivo pelo qual será esmiuçada um pouco mais.

3.4. Aprofundando o estudo da função normativa própria

Enfatiza Maurício Godinho Delgado que "a função fundamentadora dos princípios (ou função normativa própria) passa, necessariamente, pelo reconhecimento doutrinário de sua natureza de norma jurídica efetiva e não simples enunciado programático não vinculante". [58] O autor fundamenta seu pensamento na lição de Norberto Bobbio. [59]

Essa doutrina, que também encontra eco nas lições de Gustav Radbruch, [60] pode mudar o viés positivista que sempre orientou a matéria.

Conservadoras e notórias são as lições de Américo Plá Rodriguez, para quem "às regras se obedece, aos princípios se adere", [61] e, ainda, Miguel Reale, o qual afirma que "ao jurista, advogado ou juiz, não é dado recusar vigência à lei sob alegação de sua injustiça, muito embora possa e deva proclamar a sua ilegitimidade ética no ato mesmo de dar-lhe execução". [62]

Reconhece-se que o próprio Maurício Godinho Delgado se apressou em afirmar que a prevalência dos princípios sobre as regras é relativa, mas mesmo assim a possibilidade de prevalência existe! [63]

Aceitar a existência dessa terceira função dos princípios, a função normativa própria, é importante passo na efetivação dos direitos sociais. Impede que a força do capital encontre nas alterações legislativas um porto seguro para continuar um secular processo de concentração de renda. Evita o que costumeiramente ocorreu no século passado, quando a mesma legislação, que outorgava direitos, criava as brechas que evitavam sua concretização. [64]

Não se ignora que essa nova leitura das funções dos princípios gera desconfianças e incertezas, mas vale lembrar que o procedimento de julgar contra legem não é inovação no ordenamento jurídico brasileiro e curiosamente não causa temor algum na sociedade (ou pelo menos nos principais meios de comunicação) quando as decisões inovadoras favorecem os agentes do poder econômico. Nesse sentido, são esclarecedoras as palavras de Roberto Lyra Filho:

Confesso que me chocam e divertem, ao mesmo tempo, as hipocrisias do legalismo, pois são características do mito estatal e dos que se prostram diante dele, como fiéis muçulmanos voltados para Meca.

Existem muitas ilegalidades ordinárias e extraordinárias, que o sistema instituído absorve com bastante facilidade. As ilegalidades que o suscetibilizam são principalmente aquelas que as tocam raízes sócio-econômicas.

(...)

Por outro lado, um acórdão do Supremo Tribunal Federal tem esta sugestiva ementa: "Pedido de habeas-corpus onde se alega que, no dia do crime, o réu estaria preso e, assim, não poderia ter praticado o delito. Denegação, porque, no Brasil, o fato de alguém estar oficialmente preso não significa que realmente esteja". Com a mesma franqueza, a Egrégia Corte poderia ter acrescentado que a recíproca também é verdadeira.

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O melindre legalista do Estado, entretanto, reaparece, com rigor implacável, quando se trata de matéria sócio-econômica e político-social, diretamente posta em questão. [65]

A somatória dos elementos de convicção aqui expostos permite fundamentar a assertiva de que efetivamente os princípios de direito podem, em casos extremos, invalidar regra legal. Essa conclusão acentua a função dos princípios do Direito do Trabalho, sobretudo nesta época em que alterações legislativas, visando ora à flexibilização, ora à pura desregulamentação, são corriqueiras.

3.5. Alguns princípios específicos de Direito do Trabalho

Para a continuidade do raciocínio desenvolvido neste trabalho analisar-se-ão agora os princípios do Direito do Trabalho que estão diretamente conectados com o processo de flexibilização e desregulamentação: princípio da justiça social, princípio da proteção, princípio da irrenunciabilidade e princípio de continuidade.

O princípio da justiça social pode ser visto como princípio fundamental do Direito do Trabalho, que surgiu com o intuito de minimizar as injustiças sociais sensivelmente agravadas no período da Revolução Industrial. O mais importante balizador das normas e institutos trabalhistas é a luta pela justiça social, da qual este ramo do direito é propagador, conforme anota Jorge Luiz Souto Maior. [66]

A justiça social, como lembra Alfredo J. Ruprecht, "tem seu ponto de partida nas desigualdades econômicas que procura eliminar" e "tende a elevar o nível de vida dos trabalhadores, impondo deveres a uma determinada classe frente a outra classe social". [67]

O fundamento do princípio da proteção, também denominado de princípio tutelar, segundo Américo Plá Rodriguez, "está ligado à própria razão de ser do Direito do Trabalho" [68] e se expressa sob três formas: "a) a regra in dúbio, pro operário. Critério que deve utilizar o juiz ou o intérprete para escolher, entre vários sentidos possíveis de uma norma, aquele que seja mais favorável ao trabalhador; b) a regra da norma mais favorável determina que, no caso de haver mais de uma norma aplicável, deve-se optar por aquela que seja mais favorável, ainda que não seja a que corresponda aos critérios clássicos de hierarquia das normas; c) a regra da condição mais benéfica. Critério pelo qual a aplicação de uma nova norma trabalhista nunca deve servir para diminuir as condições mais favoráveis em que se encontrava um trabalhador". [69] Para Maurício Godinho Delgado, o princípio da proteção "não se desdobra apenas nas três citadas dimensões; abrange, essencialmente, quase todos (senão todos) os princípios especiais do Direito Individual do Trabalho". [70]

Um conceito bem amplo do princípio da irrenunciabilidade é dado por Américo Plá Rodriguez: "a impossibilidade jurídica de privar-se voluntariamente de uma ou mais vantagens concedidas pelo direito trabalhista em benefício próprio". [71] Alfredo J. Ruprecht acrescenta que "na realidade, não se proíbe a renúncia, mas se fulmina de nulidade o ato jurídico que envolve essa figura". [72] Exemplo do princípio da irrenunciabilidade se encontra no art. 468 da CLT. [73]

Ensina Maurício Godinho Delgado que, segundo o princípio da continuidade, ou ainda, princípio da manutenção do contrato, "é de interesse do Direito do Trabalho a permanência do vínculo empregatício, com a integração do trabalhador na estrutura e dinâmica empresariais. Apenas mediante tal permanência e integração é que a ordem justrabalhista poderia cumprir satisfatoriamente o objetivo teleológico do Direito do Trabalho de assegurar melhores condições, sob a ótica obreira, de pactuação e gerenciamento da força de trabalho em determinada sociedade". [74] Nos dias atuais, em que a manutenção no emprego se tornou algo muito valioso, tanto que pesquisas recentes apontam o desemprego como a principal preocupação dos brasileiros, a aplicação desse princípio tem grande importância social. [75] Ele se encontra consagrado na CLT pelos artigos 443, 445, 448 e 452. [76]

É importante ressaltar que esse conjunto de princípios é o próprio alicerce do Direito do Trabalho. É o que o destaca do Direito Civil. Se por qualquer motivo esses postulados perderem sua eficácia, não serão eles que desaparecerão, mas sim, o próprio Direito do Trabalho.


4. Princípios, flexibilização e desregulamentação normativa

4.1. Introdução

Expostos ligeiramente alguns princípios do Direito do Trabalho e feita uma rápida análise do fenômeno da flexibilização e da desregulamentação das regras jurídicas, é o momento de averiguar se essas duas paralelas têm alguma possibilidade de se encontrar antes do infinito.

4.2. Princípios de Direito do Trabalho e flexibilização

A flexibilização, assim entendida um processo de adaptação dos direitos trabalhistas às necessidades empresariais, sem nenhuma supressão – e conseqüentemente, transferência de renda dos trabalhadores para o empregador –, existe há muito em nosso Direito do Trabalho e pode conviver com os princípios supra-analisados. Admite-se, portanto, essa flexibilização normativa desde que se dê sem prejuízo aos trabalhadores e devidamente acompanhada de ampla negociação coletiva, permitindo-se ao empregador a necessária adaptação a certos momentos de crise econômica.

4.3. Princípios de Direito do Trabalho e desregulamentação normativa

Todavia, a desregulamentação das regras trabalhistas, com inevitável supressão de direitos, é incompatível com os princípios basilares do Direito do Trabalho. Impossível é falar em justiça social se o ordenamento jurídico ignorar a desigualdade entre os contratantes numa relação de trabalho, desequilíbrio esse que somente pode ser reparado a partir da previsão de direitos sociais irrenunciáveis. Por sua vez, o princípio da continuidade do contrato de emprego concede ao trabalhador seu maior patrimônio: a estabilidade no emprego, sem a qual o exercício das vantagens que lhe são concedidas pode se tornar ineficaz, em face do temor de perda do posto de trabalho pela reclamação contra o descumprimento de alguma norma. A desregulamentação também se choca contra o princípio protetor, uma vez que o cerne deste – aqui se pensando também nos seus desdobramentos: a máxima in dúbio, pro operário; princípio da norma mais favorável; e o princípio da condição mais benéfica – é o aumento quantitativo e/ou qualitativo das vantagens concedidas ao trabalhador, circunstância esta que vai de encontro a qualquer tentativa de supressão de direitos sociais.

Essa incompatibilidade absoluta exigirá dos juslaboristas ousadia para dar eficácia à chamada função normativa própria dos princípios peculiares do Direito do Trabalho, pois somente assim será possível evitar que alterações legislativas de inspiração neoliberal – como a pretendida mudança na posição hierárquica das normas autônomas no Direito do Trabalho brasileiro, que pode advir da aprovação pelo Senado Federal do Projeto de lei n. 134/2001 - eliminem direitos sociais, invalidando-as se impossível uma exegese que as compatibilize com a manutenção dos benefícios atacados pelo legislador.

Por outro lado, a desregulamentação total e sem freios das normas trabalhistas - com ignorância dos princípios - levaria, inexoravelmente, ao fim do próprio Direito do Trabalho, visto que implodiria os pilares sobre os quais ele se sustenta.

4.4. O caminho inverso percorrido dentro do Direito Civil

É curioso que a proposta de desregulamentação do Direito do Trabalho encontre tanto eco na doutrina e na jurisprudência, haja vista que a liberação do mercado de trabalho caminha na contramão do direito moderno, no qual o modelo jurídico clássico liberal, que vê o contrato individual assentado na vontade das partes conhecedoras de seus direitos e deveres, está sendo substituído pelo modelo dualista.

Esse modelo entende ser o direito estatal um instrumento de mudanças sociais, razão pela qual o Estado interfere cada vez mais nas relações sociais, por meio de seus regramentos. [77]

Corroborando o argumento, Jorge Pinheiro Castelo rebate a tese neoliberal de que o estado não deve interferir nas relações, dando às partes a liberdade para contratar. Preleciona que mesmo no Direito Civil, em setores modernos, os princípios rígidos e absolutos da autonomia privada deram lugar ao modelo intervencionista, impondo o fim da autonomia da vontade pura e simples e da possibilidade da renúncia de direitos. Cita dois exemplos: o Código de Defesa do Consumidor e as normas de proteção do meio ambiente. Justifica o autor sua posição: "Reconheceu-se em amplos setores do direito civil, onde não há igualdade entre as partes contratantes, mas verdadeira situação de subordinação ou vulnerabilidade de uma das partes à vontade e ao poder econômico da outra, que existem direitos de cidadania que se impõem preservar ainda que contra a ‘vontade’do seu titular e contra a vontade das grandes organizações empresariais, independentemente do impacto do seu custo econômico na produção". [78]

Neste momento histórico de afirmação dos direitos humanos de segunda e terceira geração (dentre os quais os direitos sociais e os direitos transindividuais, aqui inclusa a proteção ao consumidor) é absolutamente contraditório que o cidadão consiga fazer valer sua cidadania, [79] acelerando o processo de consolidação de novos direitos e, ao mesmo tempo, sinta escorrer pelos dedos o acervo legislativo protetor das relações de trabalho, conquistado junto ao Estado para fazer frente ao capital.

Sobre os autores
Tarcio José Vidotti

juiz titular da Vara do Trabalho de Ituverava (SP), mestrando em Direito Obrigacional Público e Privado pela Universidade Estadual Paulista - UNESP, em Franca (SP)

José Gonçalves Bento

analista judiciário, assistente de juiz na Vara do Trabalho de Ituverava (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIDOTTI, Tarcio José; BENTO, José Gonçalves. O capital e a nostalgia do ideário do laissez-faire:: um ataque à dignidade humana no âmbito das relações de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3908. Acesso em: 19 dez. 2024.

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