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O agravamento da pena em razão da reincidência e o bis in idem

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Agenda 22/05/2015 às 14:20

Análise da quantificação da pena (art. 61 do CP) a partir da compreensão do bis in idem.

Sumário

 Introdução. I. A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. 1.1 Conceito da pena privativa de liberdade. 1.2 Origem e evolução da pena privativa de liberdade 1.3 Teorias da pena privativa de liberdade. II. A APLICAÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. III. A REINCIDÊNCIA. 3.1 Conceito de reincidência. 3.2 Esforço histórico na construção do instituto da reincidência. 3.3 Reincidência: legislação comparada. 3.4 A legislação brasileira acerca da reincidência. 3.5 Formas da reincidência. 3.6 Pressupostos da reincidência. 3.7 Efeitos da reincidência. 3.8 Espécies de crimes abrangidos pela reincidência. 3.8.1 A reincidência e o crime culposo. 3.9 A reincidência e a Lei 8.072/90. 3.10 A eficácia temporal da condenação para efeito da reincidência. 3.11 A reincidência nos crimes políticos e nos crimes militares. 3.12 As justificativas clássicas para o agravamento da pena em função da reincidência. 3.13 A justificativa dos doutrinadores brasileiros para o agravamento da pena em função da reincidência. 3.14 A reincidência como causa facultativa do aumento da pena. 3.15 A reincidência como circunstância atenuante. 3.16 O tratamento do reincidente e o fracasso da resposta tradicional. 3.17 O princípio do non bis in idem e o agravamento da pena em função da reincidência. 3.18 O princípio da culpabilidade e o agravamento da pena em função da reincidência. 3.19 Os efeitos da reincidência e a dignidade da pessoa humana. 3.20 A dispensa do registro criminal com o desaparecimento do instituto da reincidência. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

 

INTRODUÇÃO

A reincidência vem sendo objeto de estudos por praticamente todos os teóricos do Direito Penal. Sua estigmatização é quase unânime, sem embargo de vozes discordantes, como a do filósofo Alfred Fouille[1]. Mas ainda que a repressão penal à reincidência atualmente não sofra maiores restrições, alguns autores têm discordâncias ponderadas com relação ao tema. Labatut Glena, por exemplo, afirma que “Las tendencias penales modernas, enfocando el problema en su aspecto subjetivo, estimam que el hecho de la reincidência, isoladamente considerado, no tiene maior significación y que la simple repetición de un delito, en si misma, no da margen para suponer el fracasso de la pena anterior”[2].

Numa abordagem preliminar, temos que a reincidência corresponde à repetição da prática de crime, como dispõe o artigo 63 do Código Penal, estabelecendo como pressuposto da reincidência a existência de uma sentença condenatória transitada em julgado pela prática de crime, inserindo-se entre as circunstância agravantes, traçadas no artigo 61 do Código Penal.

Mas para melhor compreender o instituto é preciso distinguir o que são as circunstâncias legais indicadas, das quais as circunstâncias agravantes são espécies, assim como as circunstâncias atenuantes. E neste ponto, para Alberto Silva Franco, “as circunstâncias são elementos que giram em torno do fato criminoso, sem que interfiram em sua estrutura típica, influindo apenas na quantificação penal”[3]. Especificamente sobre as circunstâncias agravantes, assim Anibal Bruno as definiu, como sendo “as reveladoras de particular culpabilidade do agente que aumentam a reprovabilidade que a ordem jurídica faz pesar sobre ele em razão de seu crime”[4].

Heleno Fragoso adverte que a enumeração contida no artigo 61, do Código Penal, é taxativa. “As únicas circunstâncias agravantes comuns que existem, além dessas, são as previstas no artigo 62, do Código Penal, para os casos de concurso de agente”. Mais adiante, na mesma obra, alerta: “O aumento da pena não pode ultrapassar o máximo da escala penal, referente ao crime de que se trata”[5].

Ocorre que a disposição legal autoriza o indevido agravamento da pena em função da reincidência, pois, na verdade, representa ver o agente sendo apenado em duplicidade pelo mesmo fato: da primeira vez, pelo cumprimento da primeira condenação, e, num segundo momento, quando vê sua nova pena, por um outro crime, ser agravada exatamente pelo cometimento do primeiro crime, posição que revela faceta terrorista do sistema, indicando o julgamento de homens e não de condutas.

Mas para que se possa adequadamente aferir a eventual ocorrência da duplicidade da condenação – o que atingiria em cheio o princípio do non bis in idem -, é necessário incursionar no estudo da própria pena privativa de liberdade, seu conceito, origem, evolução e as teorias que explicam sua aplicação, o que se fará no capítulo I dessa monografia. Em seguida, no Capítulo II, analisar-se-á a própria aplicação da pena privativa de liberdade, no modelo trifásico de fixação pelo julgador, onde se verifica a efetiva incidência da circunstância agravante em razão da reincidência. Por fim, passar-se-á ao esquadrinhamento da reincidência especificamente, no Capítulo III, analisando seu conceito, o esforço histórico para construção do instituto, a legislação comparada, seus efeitos, suas espécies, as justificativas, e então, com suficiente envergadura, analisar com precisão a violação do princípio do non bis in idem.

O empirismo já tem indicado, desde o início, que a resposta tradicional do Direito Penal para o problema da criminalidade, com a intensificação da repressão estatal – donde se insere o agravamento da pena em função da reincidência -, não tem se mostrado eficaz para o combate do flagelo que assola todos os meios sociais. O agravamento da pena, nestas circunstâncias, efetivamente não resulta no desestímulo da prática delituosa, como interessantemente observa-se quanto à duração das penas e a recidiva; como acentuam Charles Sannié e Joseph Vincent, em artigo publicado na Revue Internacionale de Droit Pénal[6], a percentagem de recidivos entre os condenados a penas curtas, na França, à época do III Congresso Internacional de Criminologia, era de 22%. Essa proporcionalidade se eleva a mais do dobro com relação aos condenados a penas longas, o que significa que quase a metade dos grandes criminosos são reincidentes.

Enrico Ferri, ao estabelecer suas categorias antropológicas de delinqüentes, não previu o reincidente, mas o chamado delinqüente habitual, segundo ele “possuidor de uma fisionomia biopsíquica própria, que lhe caracteriza a grave periculosidade e a fraca readaptabilidade social”[7].

A sempre presente preocupação da sociedade com a criminalidade, tida pelos meios de comunicação de massa como galopante, tem conduzido renovada importância à repressão da reincidência – com o flagelante agravamento da pena -, atendendo-se assim o vaticínio de Benigno de Tullio: “Se se quer preparar o advento de uma política criminal que seja verdadeiramente útil ao indivíduo e à sociedade, além de digna à civilização atual, é necessário enfrentar e resolver, antes do mais, o problema da recidiva”[8]. E com isso, acaba-se por esquecer a preciosa lição de Eugênio Raul Zaffaroni:

Geralmente, quando o discurso jurídico-penal é utilizado para encobrir graves problemas sociais, gera indignação, e temos aí o fenômeno em um caso típico, que tenta achar uma solução com base em casos particulares arbitrariamente selecionados pelo sistema penal. Em qualquer país podem-se encontrar exemplos deste tipo de leis que são produto de um moderno pensamento mágico. ‘O pintor caçador do paleolítico pensava que com a pintura possuía a coisa mesma, pensava que com o retrato do objeto adquiria poder sobre o mesmo objeto; acreditava que o animal da realidade sofria a mesma morte que o animal retratado’ (Arnold Hauser, História social de la literatura y del arte. Madri, 1971, t. I., pág. 20), Nossos projetos de leis, movidos pelo desejo de acalmar campanhas pela ‘lei e pela ordem’, ou com fins ‘eleitoreiros’, lembram os caçadores paleolíticos.[9]

Em conclusão, verificar-se-á a ocorrência ou não da violação ao princípio do non bis in idem, e apontar-se-á, com a singeleza e a limitação que é imposta pela própria graduação, a alteração do modelo vigente.

I. A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

1.1 Conceito da pena privativa de liberdade

Pena é a perda de bem jurídico imposta por órgão judiciário a quem comete crime. Trata-se, como adverte Heleno Fragoso, “de sanção característica do direito penal, em sua essência retributiva. A sanção penal é em essência retributiva porque opera causando um mal ao transgressor”[10].

Já Eugênio Raul Zaffaroni, “pena é qualquer sofrimento ou privação de algum bem ou direito que não resulte racionalmente adequado a alguns dos modelos de solução de conflitos dos demais ramos do direito”[11].

Em verdade, a pena é tão somente uma manifestação de poder, como constatou há mais de um século Tobias Barreto: “O conceito de pena não é um conceito jurídico, mas político”[12].

1.2 Origem e evolução da pena privativa de liberdade

A origem da pena de prisão é relativamente moderna, posto que apareceu precisamente com o novo Estado decorrente da Revolução Francesa. Registre-se que no século XVI, com o crescimento das cidades, surgem casas de trabalho e casas de correção. Na Inglaterra, um castelo abandonado em Bridewill, em 1575, passa a ser utilizado como House of Correction. Na Holanda, em 1595, na cidade de Amsterdã, foi construída igualmente, casa de correção[13].

Estas casas de correção destinavam-se a vagabundos, desordeiros, ladrões e crianças abandonadas, com o propósito de fazê-los ganhar para seu sustento, reformá-los pelo trabalho compulsório e evitar que outros se dedicassem à vagabundagem e à vadiagem. Em verdade, esses estabelecimentos não eram utilizados como castigo, mas apenas para guardar as pessoas.

Juan Bustos Ramírez bem demonstra a razão pela qual, após o advento da Revolução Francesa, a pena de prisão se difundiu:

El humanitarismo radicaba em modificar la situación existente de tormentos, penas de galeras, y en general penas de caráter corporal; su utilitarismo en aprovechar, para el Estado y para regular el mercado de trabajo, esta mano de obra ociosa marginal, y su resocialización consistia justamente em disciplinarlos para el trabajo, piedra angular del nuevo Estado, y un tipo especial de trabajo, que el de la fábrica, de ahí la semejança entre cárcel y fábrica (Melossi y Pavarini, p. 201 ss.) (ejemplo característico desta idea es el de una comunidad de Estados Unidos, que ideó una celda que se iba inundando de agua y al preso se le daba una bomba para ir achicando el agua, de modo que si no trabajava, se ahogaba, de este modo se le queria inculcar la disciplina y el trabajo. Por otra parte, la pena privativa de libertad cumplía con los fundamentos ideológicos del nuevo Estado, conforme al pensamiento utilitario de Bentham, ya que podía graduarse (era divisible) y cumplir entonces los objetivos preventivo-generales del Estado (de aumentar o disminuir su gravedad conforme asus políticas criminales) y afectaba el bien fundamental de que disponía todo hombre, que era el de su libertad (para ofrecer su mano de obra, de modo que con ello también le quedaba claro el costo del delito al delincuente, lo cual era básico para la coacción psicológica que pretendia la prevención general).

Luego, desde un princípio, la pena privativa de libertad tuvo una función (resocializadora), en un determinado sentido, e de ahí que siempre ha ido muy ligada a la idea de trabajo[14].

Simultaneamente ao advento da Revolução Francesa, sob a influência dos Quaker, constrói-se na Filadélfia a prisão de Walneut, cujo regime se baseava no segregamento e no silêncio. Os condenados eram submetidos a um período inicial de isolamento, que subsistia durante todo o cumprimento da pena, para os autores de crimes graves. Os autores de crimes sem gravidade, podiam trabalhar em comum durante o dia, em silêncio. O sistema de completo isolamento (solitary system) foi introduzido nas novas prisões de Pittsburg (Western Penitenciary e Cherry Hill - Eastern Penitenciary) construídas entre 1818 e 1829[15].

A esse sistema se opôs o Auburn, adotado na prisão construída em 1829 na cidade deste nome, no Estado de New York. O sistema de Auburn permitia o trabalho em comum durante o dia, em completo silêncio, ficando conhecido como silent system. “O ideal da prisão, era, assim, a vigilância e controle total da pessoa do preso”, como relata Heleno Cláudio Fragoso[16].

A adoção da pena de prisão deu-se em substituição da pena de morte e das penas corporais, sendo introduzida, inclusive, porque se entendia tratar-se de castigo duro e feroz contra o condenado, mais ainda – e em substituição – à pena de morte e às penas corporais. Tanto é que Cesare Beccaria, segundo Heleno Cláudio Fragoso, argumentava contra a pena de morte sustentando que seu efeito efêmero do suplício era menos intimidativo que a prisão perpétua[17].

Mas os dois últimos séculos de experiência com a prisão tem mostrado, dia após dia, que os resultados são extremamente desanimadores, e ninguém, com seriedade, pode atualmente negar a falência completa da filosofia correcional. “A crítica tem sido tão persistente que se pode afirmar, sem exagero, que a prisão está em crise”[18], como lembra Cezar Roberto Bitencourt[19].

Que não se olvide, também, os efeitos devastadores da prisão sobre a personalidade do preso:

A privação da liberdade, o isolamento, a separação, a distância do meio familiar e social, a perda de contato com as experiências da vida normal de um ser humano, tudo isto constitui um sofrimento considerável. Mas, a este sofrimento logo se somam as dores físicas: a privação de ar, de sol, de luz, de espaço, os alojamentos superpovoados e promíscuos, as condições sanitárias precárias e humilhantes, a falta de higiene, a alimentação muitas vezes deteriorada, a violência das torturas, dos espancamentos e enclausuramentos com ‘celas de castigo’, das agressões, atentados sexuais e homicídios brutais.

Grande parte deste homicídios brutais, entre os próprios presos, nasce da convivência forçada, que faz com que qualquer incidente, qualquer divergência, qualquer desentendimento, qualquer antipatia, qualquer dificuldade de relacionamento, assumam proporções insuportáveis. O desgaste da convivência entre pessoas, que, eventualmente, não se entendam, aqui é inevitável. As pessoas que não se ajustam, os inimigos, são obrigados a se ver todos os dias, a ocupar o mesmo espaço, o que, evidentemente, acirra os ânimos, eleva a tensão, exacerba os sentimentos de ódio, levando, muitas vezes, a que um preso mate outro, por motivos aparentemente sem importância.

Tendo a disciplina como centro de uma prática, onde se exige a submissão total a uma ordem artificial e autoritária, determinante da normalidade ou anormalidade da conduta, é a prisão a instância social onde o controle se mostra em sua máxima autoridade sobre o indivíduo.[20]

Daí porque hoje encontramos posturas radicais, como a de Stanley Cohen, que considera que é tão grande a ineficácia da prisão que não vale a pena sua reforma, pois manterá sempre seus paradoxos e suas contradições fundamentais. e por isso Cohen chega ao extremo de sugerir que a verdadeira solução ao problema da prisão seja sua extinção pura e simples[21].

Mas restam ainda aqueles que mantêm a esperança, como Paul Ricoeur, para quem “entre a cultura da vingança e a utopia de um mundo sem penas, há lugar para uma ‘pena inteligente’ onde a sanção seria pensada além da pena, segundo seu sentido etimológico de aprovação/reprovação”[22].

1.3 Teorias da pena privativa de liberdade

O fundamento da pena é explicado pela doutrina tradicional através das teorias retributivas, da prevenção especial e da prevenção geral. Essas teorias têm como ponto central as idéias de retribuição e de prevenção.

A teoria retribucionista (também chamada de absoluta) foi a primeira saída desenvolvida para tentar justificar a pena. Quem pratica um mal deve sofrer um mal. A pena, segundo essa teoria, se funda na justa retribuição, mas é um fim em si mesma, não servindo para qualquer outro propósito a não ser o de recompensar o mal com o mal.

Hegel, em sua concepção dialética sobre a pena, afirmava que o crime é a negação do direito e é anulado pela pena como negação do crime e restabelecimento do direito.

Immanuel Kant é outro a adotar a concepção de que o segregado deve ser retribuído pelo mal causado, como ilustra pelo seguinte exemplo:

Mesmo que a sociedade civil concordasse em dissolver-se (por exemplo, se o povo que vivesse numa ilha decidisse separar-se e dispersar-se por todo o mundo), o último assassino que estivesse no cárcere teria de ser executado, para que cada um sofra o castigo que merece por seus efeitos, e para que não pese a culpa sobre o povo que não insistiu em seu castigo.[23]

A primeira objeção que é feita à esta teoria é que ela pressupõe a necessidade da pena, quando na verdade deveria fundamentá-la. Claus Roxin observa que “a idéia de retribuição compensadora só se faz plausível mediante um ato de fé, pois racionalmente não se compreende como se pode apagar o mal cometido, acrescentando-se um segundo mal, o sofrimento da pena” [24].

A teoria retribucionista afronta ainda a dignidade da pessoa humana, vez que vingança não resulta adequada concepção de um Estado Democrático de Direito.

Já as teorias chamadas de relativas tem por partida uma concepção utilitária da pena, e pretende justificá-la por seus efeitos supostamente preventivos. Estas teorias subdividem-se em prevenção geral e prevenção especial.

A teoria da prevenção geral prevê a aplicação da pena com o intuito de intimidar a generalidade de pessoas, para que estas não se vejam incentivadas a cometer crimes ante a temorização que a ameaça da pena e de sua efetiva aplicação deveria provocar. Entre seus adeptos, Jeremy Bentham[25], Cesare Bonesana (Marquês de Beccaria)[26], Gaetano Filangieri[27], Arthur Schopenhauer[28] e Ludwing Feuerbach[29].

A primeira ponderação que se faz acerca desta teoria é que ela deixa sem explicação os critérios pelos quais deve o Estado recorrer à pena criminal. Em segundo lugar, a prevenção geral não prevê os limites da reação punitiva, o que tende a criar um direito penal do terror, isto porque o Estado, pretendendo intimidar quem não se encontra motivado pela norma, acabaria por elevar mais e mais os limites das penas, o que culminaria, como já dito, com o terror estatal. A terceira ponderação é sobre a inadmissibilidade de que a pena seja imposta com critérios alheios ao autor do crime, para através da punição produzir efeitos intimidatórios sobre outras pessoas. Immanuel Kant, com precisão, advertia que ao assim se proceder estar-se-ía misturando o homem com o direito das coisas, isto é, seria a instrumentalização do homem[30].

A teoria da prevenção especial, por sua vez, tem como ponto nuclear prevenir que o autor de crimes volte a cometê-los, e isto ocorrendo de três modos: “corrigindo o corrigível, isto é, o que hoje chamamos de ressocialização; intimidando o que pelo menos é intimidável; e, finalmente, tornando inofensivos mediante a pena privativa de liberdade os que não são corrigíveis nem intimidáveis”[31].

Mas se o objetivo da pena é corrigir a duração da reprovação penal, deveria prosseguir enquanto não houvesse efetiva correção, mesmo que essa perdurasse por tempo indefinido, o que, por óbvio, atinge em cheio o princípio da legalidade. Depois, dependendo do delito – os passionais, por exemplo -, é absolutamente desnecessária a ressocialização do agente, eis que já perfeitamente integrado à sociedade e que logicamente não precisam ser reintegrados[32].

Diante de tais considerações, tal como ocorre com a teoria da prevenção geral, igualmente se deixa de explicar os critérios mediante os quais deve o Estado recorrer à pena criminal, partindo-se do pressuposto da necessidade da pena.

Além das teorias tradicionais, vale lembrar a lição de Winfried Hassemer, que fala da prevenção geral positiva, e que pode ser sinteticamente explicada da seguinte forma: abandona-se a prevenção geral clássica intimidatória, por ele tachada de “negativa” e a substitui por uma prevenção geral “positiva”, que tem em mira a estabilização da consciência do direito - com o qual se pauta - de que o Direito penal não é senão mais um controle social só que formalizado e por isso sujeito à proteção dos direitos fundamentais do desviado; o Direito penal está orientado a conseqüências externas, isto é, pretende ligar com os demais controles sociais[33].

Apesar do avanço da posição assumida por Winfried Hassemer ao apresentar sua teoria geral punitiva, em relação às teorias clássicas, não consegue ele alterar a amarga constatação de que o sistema penal encontra-se totalmente deslegitimado, como demonstra Eugênio Raul Zaffaroni[34], de sorte que, por mais que se esforce não há como superar este panorama de violência e irracionalidade utilizada pelo sistema penal, que o torna deslegítimo, ante o sofrimento órfão de racionalidade que traz aos que em suas teias caiam.

Ao mito da ressocialização através da pena privativa de liberdade, rotulado no artigo 1º da Lei de Execução Penal como “harmônica integração social do condenado”, Eugênio Raul Zaffaroni, com o estilo que lhe é peculiar, sentencia:

Sabemos que la ejecución penal no resocializa ni cumple ninguna de las funciones ‘re’ que se la han inventado (‘re’ – socialización, personalización, individuación, educación, etc), que todo eso es mentira y que pretende enseñale a un hombre a vivir en sociedad mediante el encieno es, como dice Carlos Elbert, algan tan absurdo como pretender entrenar a alguien para jugar futbol dentro de un ascensor.[35]

Mesmo neste quadro desolador, revelando a completa ineficácia da pena privativa de liberdade, é preciso lidar com a realidade em voga, com os depósitos de seres humanos mantidos pelo sistema prisional, e entender como a sociedade lida com seus irmãos criminosos, que são produto de toda uma estrutura montada e mantida para o controle e a suposta manutenção do contrato social.

II. A APLICAÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

A reincidência é circunstância agravante que tem, entre outras conseqüências, o condão de majorar a pena do condenado. Mas para que seu efeito majorante seja aplicado, e consoante disposição do artigo 68 do Código Penal, devem ser percorridas três etapas pelo julgador, no método para a individualização da pena.

Na primeira etapa, o magistrado, atento aos ditames estabelecidos pelo artigo 59 do Código Penal, fixará a pena-base, sendo que, na hipótese de inexistir circunstâncias legais e causas especiais de aumento ou de diminuição da pena, consistirá esta na pena definitiva.

Em seguida, considerará se existem ou não circunstâncias legais, quer agravantes, quer atenuantes, que obrigatoriamente aumentem ou diminuam a pena, realizando, se elas estiverem presentes, a operação de aumentar ou diminuir a pena-base.

Só depois, e por fim, é que o juiz considerará se existem ou não causas especiais de aumento ou de diminuição da pena, previstas na Parte Especial ou na Parte Geral do Código Penal.

A Reforma Penal de 1984, neste aspecto, optou pela lição de Nelson Hungria quanto ao cálculo da pena, e pacificou os fervilhantes debates que se davam anteriormente quanto ao cálculo da pena, como reconhece a Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal[36].

Aliás, a sentença penal que no momento da fixação da pena não observar o critério trifásico, será anulada, como já decidiram o Supremo Tribunal Federal[37] e o Superior Tribunal de Justiça[38].

Tem-se assim que a reincidência, circunstância agravante que é (inciso I, artigo 61, do Código Penal), será considerada, para efeito de agravação da pena, no segundo momento de sua fixação pelo julgador.

III. A REINCIDÊNCIA

3.1 Conceito da reincidência

Entende-se por reincidência a situação do agente que pratica uma infração penal quando já condenado por crime anterior, mediante sentença penal com trânsito em julgado, como trata o artigo 63 do Código Penal: “Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior”.

Daí decorre que o réu pode manter a primariedade, embora condenado por vários crimes, desde que nenhum deles tenha sido praticado depois da primeira condenação transitada em julgado.

3.2 Esforço histórico na construção do instituto da reincidência

A preocupação em punir com mais rigor aos recidivistas é antiga.

Como condição destinada a influir sobre a natureza e quantificação da pena, isto é, no destino do réu, a reincidência não foi estranha aos romanos, assinala Aníbal Bruno. Esse reconhecimento se tornaria mais freqüente, porque formalmente mais definido, no Direito do Império, embora não lhe possa, através dos textos, precisar-lhe nitidamente as conseqüências.

O direito canônico também contemplou a reincidência em relação a determinados crimes, e sob a inspiração de tais precedentes os práticos construíram a noção da perseveratio in crimine e da consuetudo delinquendi como circunstantia aggravandi delictum et delinquentium acrius puniendi[39].

Mas um fato é destacado por Aníbal Bruno: a distinção que já se fazia, à época imperial, embora não muito escoimada de dúvidas, entre os dois tipos fundamentais da reincidência: a genérica e a específica, com a definição, inclusive das respectivas conseqüências. Assim é que, enquanto a primeira se limitava a privar o delinqüente de certos benefícios, como o perdão, por exemplo, a segunda implicava forçosamente na agravação da pena, ou conferia o caráter de crime a fato que, se praticado pela primeira vez, não ensejaria senão a aplicação de medidas disciplinares[40].

Segundo René Garraud, as disposições do Direito romano revestiam-se dos seguintes caracteres: “1º que os jurisconsultos romanos confundiram constantemente a reiteração e a reincidência; e 2º que não se ocuparam senão na recaída no mesmo delito”[41].

Os antigos criminalistas, por sua vez, assevera Garraud, já não incorriam nessa confusão: separavam nitidamente a reincidência da reiteração, pois formularam a regra de que, para que tivesse lugar o agravamento da pena em decorrência da reincidência, seria necessário que tivesse havido uma condenação anterior. Mas, em contrapartida, mantiveram-se adstritos à reincidência específica, pois só admitiam a recaída no mesmo delito, ou, pelo menos, em infração da mesma natureza. Tal ocorreria também com o Direito germânico medieval.

Na antiga França, já se havia sentido a necessidade de se tomar medidas severas contra certas categorias de malfeitores habituais, que vagavam pelas estradas perigosamente, ou se concentravam nos subúrbios de Paris ou de Marselha, vagabundos sem domicílio, desesperados miseráveis, que Victor Hugo depois descreveria em sua obra imortal. Muitos desses párias eram egressos das prisões, ou banidos que, a duras penas, conseguiam retornar à Pátria, mas que, sem opção, voltavam a delinqüir pelo pão de cada dia. Contra esses indivíduos, infelizes desajustados, a legislação do antigo regime pronunciava as mais rigorosas penas, ao mesmo tempo que organizava autênticas expedições para degredá-los, preferentemente para Cayenna. As declarações de 8 de janeiro e de 12 de março de 1812, informa René Garraud, facultavam aos juízes a aplicação de várias penalidades alternativas, todas infamantes e duras, desde a interdição de residência, à aplicação de penas de galera, ou o degredo para as colônias[42].

Esse rigor excessivo e desumanizante encontrou ressonâncias contrárias no ideário revolucionário, e uma revisão foi procedida na legislação, de modo mais nítida no Código de 1810, quando à reincidência foi atribuído tão somente o caráter de causa geral de agravação da pena.

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Lei posterior, ainda na França, imprimiu à reincidência uma nova e revoltante prática, que na verdade representa, em última análise, a essência da estigmatização social causada pelo instituto: a de mandar marcar com ferrete ao reincidente, com a letra “R” na espádua esquerda. Por sorte essa disposição teria duração efêmera, pois só vigeu até a promulgação do Código de 1810, cujo advento ensejou uma configuração mais nítida ao instituto, atribuindo-lhe o caráter de causa geral de agravação da pena.

Hoje, a idéia de usar um agravamento da pena contra o criminoso cujos antecedentes tiveram muitas condenações, “é uma idéia rudimentar que todas as legislações, as mais primitivas como as mais civilizadas, têm mais ou menos acertado”, no dizer de René Garraud[43].

No Direito brasileiro, já no Código do Império, em seu artigo 16, parágrafo 3º, previa como circunstância agravante “ter o delinqüente reincidido em delito da mesma natureza”. Apesar do laconismo do texto, só era admitida a reincidência se houvesse sentença anterior passada em julgado, segundo Tomas Alvez, citado por José Frederico Marques[44].

O Código de 1890, em “orientação muito acanhada”, no dizer de José Frederico Marques, limitou-se a definir a reincidência e fixar-lhe os requisitos, nos seguintes termos:

 

Art. 40. A reincidência verifica-se quando o criminoso, depois de passada em julgado a sentença condenatória, comete outro crime da mesma natureza, e, como tal entende-se, para efeitos da lei penal, o que consiste na violação do mesmo artigo.

Isso significou a adoção da reincidência específica no Brasil, em âmbito restrito, numa sistemática discrepante da adotada pelas legislações da época, e por isso, conclui Basileu Garcia, “a circunstância da reincidência tinha insignificante aplicação”[45].

Chegamos, por fim, ao atual Código Penal, cuja sistemática diverge profundamente das anteriores, pois imprimiu ao instituto uma nova feição e uma amplitude bem maior.

3.3 Reincidência: legislação comparada

As legislações estrangeiras tratam um tanto diferentemente o reincidente, notadamente a italiana, na qual a recidiva assume características especiais, que, sem dúvida, inspiram o nosso legislador de 1969.

Em primeiro lugar, o artigo 99 do Código Penal peninsular prevê três modalidades de reincidência: a simples, a agravada e a reiterada.

Além dessa gradação, o legislador italiano previu, como figuras autônomas, a habitualidade no delito e a profissionalidade, com tratamentos legais específicos. Esclarece Giulio Battaglini que, consoante o artigo 101 daquele diploma, são considerados delitos da mesma índole não somente os que violam a mesma disposição legal, mas também aqueles que, embora previstos por disposição diversas do Código ou de outras leis penais, “apresentam, igualmente, nos casos concretos – pela natureza dos fatos que os constituem ou dos motivos que os determinaram – caracteres fundamentais comuns”[46]. Partindo daí, há um alcance muito amplo dentro do direito italiano para a reincidência, e assim, ela viria a ocorrer entre o furto e a bancarrota, ambos tidos como violações do direito patrimonial, ou entre o crime militar de infração de ordens e o de resistência a funcionário público.

Admite ainda a lei italiana a chamada “reincidência facultativa”, regulada pelo artigo 100 do Código, que faculta ao juiz a exclusão da reincidência entre delitos e contravenções, desde que não se tratem de infrações da mesma índole, abolindo assim qualquer forma de reincidência obrigatória. Por fim a reincidência, no direito italiano, produz outros efeitos, além do aumento da pena, como também em matéria de anistia e indulto, de perdão judicial, de suspensão condicional da pena e de prescrição da pena[47].

No direito francês, a posição da reincidência difere mais em virtude da tripartição das infrações penais em crimes, delitos e contravenções. Tal enseja, segundo René Garraud, cinco combinações diferentes, vez que a reincidência tem como base fundamental a gravidade do delito. São as seguintes essas combinações:

I) Reincidência de crime em crime, ou melhor, de pena criminal em pena correicional (CP, art. 56); II) reincidência de delito em crime, isto é, de pena criminal em pena correicional (art. 57, do CP); III) reincidência de crime em delito, ou de pena criminal em pena correicional; IV) uma segunda reincidência de crime em delito, ou de pena correicional em pena correicional superior a um ano de prisão pronunciada por crime (CP, art. 58, § I); V) reincidência de delito em delito, ou de pena correicional em pena correicional[48].

Já o recente Código Penal português (DL 48/95), segue a mesma rota do código italiano, ao estabelecer a reincidência facultativa. O artigo 75º, 1, como pressuposto, reclama: “...se de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar, por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime”.

Outro código ibérico, o espanhol, assim estabelece:

14º. A recidiva geral.

Há recidiva geral quando no momento em que comete a infração o culpado foi condenado por um delito que a lei puniu com uma pena igual ou superior, ou por dois ou mais delitos punidos com uma pena menor;

15º. A recidiva especial.

Há recidiva especial quando, no momento em que comete o delito, o culpado foi punido anteriormente em virtude de uma sentença executória por um ou outros delitos previstos no mesmo título do presente Código[49].

No Direito belga, as regras sobre a recidiva, capitulados nos artigos 55 a 57 da lei penal daquele país, estabelecem critérios de gradação para as penas que atingem até o dobro do máximo previsto para o delito em si[50].

Posição semelhante às legislações latinas é a da lei penal grega, cujos artigos 88, 89 e 90 prevêem não só a recidiva como a habitualidade.

O sistema penal inglês, segundo René Garraud, admite um agravamento progressivo com o aumento do número e da gravidade dos delitos. Mas, para o penalista francês, “este sistema não pode ser admitido duma maneira absoluta, pois que colidiria com impossibilidades de facto e, com um exagero de penalidades, conduziria a uma extrema aplicação das penas”[51].

Em visão arrojada e sintonizada com o direito penal mínimo, o Código Penal Alemão, desde 1986, fez desaparecer a reincidência de suas circunstâncias agravante da pena[52], assim como também o Código Penal Colombiano[53].

3.4 A legislação brasileira acerca da reincidência

No Direito brasileiro, partindo-se do § 3º do artigo 16 do Código do Império, até se chegar à Lei 7.209/84, evidencia-se, com relação ao instituto da reincidência, uma linha nítida de evolução legislativa. Com efeito, laconicamente rezava aquele primeiro dispositivo legal ser condição da reincidência “ter o delinqüente reincidido em delito da mesma natureza”, o que causou muitas perplexidades, pois não só deixava por conta da doutrina a determinação do que se deveria entender por delitos da mesma natureza, como também com relação à exigência de condenação anterior, a que não se referira.

Um dos estudiosos do Código de 1830, Braz Florentino Henrique de Souza, partindo de textos penais vigentes em 1858, como os Códigos da Baviera, da Prússia, da Saxônia, da Lousiânia e Portugal, dentre outros, assim se expressa sobre delitos da mesma natureza:

Vê-se, pois, como já dissemos, que muitas dúvidas e contestações se podem levar por êste motivo; e daí a necessidade que temos de recorrer à ciência para pedir-lhe algumas luzes que nos possam conduzir à inteligência e boa aplicação da lei. (...) Ora, partindo dêste ponto de vista e considerando que em um código, onde se declara não haver crime sem prévia qualificação da lei, nem pena que por esta não for determinada, não pode também a natureza dos delitos resultar de outro princípio a não ser a qualificação que dêles fizer a lei, por isto entendemos que entre nós se podem considerar como sendo da mesma natureza os delitos que são definidos ou qualificados pelo legislador debaixo de uma mesma denominação, verbi gratia, o homicídio, furto, estelionato, etc[54].

Quanto à condenação anterior, que o texto brasileiro de 1830 omitiu, as dúvidas e polêmicas foram das mais acirradas. Traz Henriques de Souza à colação o que expressaram diversos autores, como Mendes da Cunha, que afirma que “a reincidência é não uma simples e indistinta repetição do crime; mas a repetição de um delito da mesma natureza, tendo sido o delinqüente pela primeira vez condenado”[55].

Esses inconvenientes viriam a ser corrigidos pelo Código de 1890, ao estabelecer: “Art. 40 – A reincidência verifica-se quando o criminoso, depois de passada em julgado a sentença condenatória, comete outro crime da mesma natureza, e, como tal entende-se para efeitos da lei penal, o que consiste na violação do mesmo artigo”.

Inobstante representar um avanço em relação ao legislador de 1830, o de 1890 limitou, para alguns “demasiadamente”[56], o instituto da reincidência, ao definir os delitos da mesma natureza como aqueles previstos no mesmo artigo, tratando assim da reincidência específica considerada estritamente.

Somente com o Código de 1940 é que o instituto viria a ter o atual alargamento, adotando a reincidência genérica, e incorporando ao texto explícita declaração sobre a validade das sentenças estrangeiras.

O advento do Código de 1940 alçou importância toda especial à reincidência. Para Roberto Lyra, a sua colocação no texto já constitui mostra eloqüente da importância que se lhe atribui, porque enquanto os códigos anteriores a haviam relegado a uma posição menor, servindo mais de adendo ou de fecho às outras agravantes genéricas, o legislador de 1940 houve por bem elevá-la à posição de agravante por excelência, pois que a colocou isolada em um dos incisos em que se desdobra o artigo 46, enquanto que as demais agravantes, que se referem ao fato delituoso e às circunstâncias que o envolveram, são distribuídas em nada menos que onze alíneas do inciso II do mesmo artigo. E vale ressaltar, Roberto Lyra adverte, a repulsa que algumas dessas agravantes incluídas no inciso II suscitam pelo seu caráter de hediondez, todas elas a merecer um certo destaque, como ocorre, por exemplo, com a emboscada, a traição, o emprego de veneno ou explosivos, todas a revelar substrato psíquico do agente profundamente deformado, mas, mesmo assim, colocadas em um plano secundário no confronto com essa agravante de conteúdo objetivo, que fala do passado delituoso do réu: a prática de um ou mais delitos que já foram objeto de julgamento e condenação[57].

Sem embargo, para Galdino Siqueira ainda se afigurou errônea e omissa nossa colocação legal, porque, além de conceituar a reincidência como mera circunstância, deixou de considerar os estados conexos, como o da habitualidade e o da profissionalidade, como vinham fazendo diversos códigos à época, notadamente o italiano[58].

A Lei 6.416/77 viria a imprimir novas modificações ao instituto, e uma de suas inovações substanciais foi a eliminação de pena específica, passando a exasperação a ser atribuição do prudente arbítrio do juiz. Uma outra inovação importante foi a introdução de um prazo de validade, para efeito da reincidência, da condenação anterior, ou, como chamou Damásio de Jesus, de uma “prescrição da condenação anterior para efeito da reincidência”[59], prevista em parágrafo, que se tornou único depois, com a Lei 7.209/84.

Uma terceira inovação, essa de caráter redacional, diz respeito aos crimes militares e aos crimes políticos, que não constavam no texto de 1940, e que passaram a ser objeto do seu artigo 47.

A redação revogada previa os efeitos da reincidência específica, que perdeu sua razão de ser. Como assinala Paulo José da Costa Júnior, “desapareceu, destarte, a agravação obrigatória da reincidência específica, que funcionava como verdadeira pena tarifada”. E arremata: “Nesse sentido colocou-se, também vanguardeira, a legislação de 1969, seguindo a orientação penal mais moderna, que deixou de atribuir à reincidência específica a importância que lhe era emprestada”[60].

Essas modificações ao Código de 1940 receberam severas críticas, não só dos parlamentares, durante a tramitação do Projeto de Lei inovador, como também de penalistas e da Comissão Especial de Advogados de São Paulo, reunida especialmente para estudar e debater a matéria.

No Congresso, o Deputado José Bonifácio Neto, através de emenda supressiva, chegou a sugerir, pura e simplesmente, a manutenção da redação anterior do Código[61].

Em São Paulo, a Comissão Especial da Associação dos Advogados do Estado, reunida sob a Presidência de Miguel Reale Júnior, assim se expressou:

Doutra parte, a intensidade do dolo ou o grau de culpa, mencionadas na redação proposta como suportes de um juízo de periculosidade, apenas podem servir de base para um juízo de culpabilidade, que não se preocupa com a prognose de atitudes futuras, mas tão somente com a reprovabilidade do fato praticado[62].

O Código Penal atual, modificado em consonância com a Lei 7.209/84, cujo projeto foi elaborado pelo Ministério da Justiça e estudado por diversas entidades jurídicas, introduziu diversas modificações na parte geral do Código Penal. Dentre as quais, as relativas à reincidência, que não divergem das oferecidas pela Lei 6.416/77, senão no que tange à técnica legislativa. Assim é que, enquanto o artigo 63 repete, pura e simplesmente, o contido no artigo 46 do Código, em seu caput, o artigo 64 apresenta, em dois itens, aquilo que fora objeto do parágrafo único do artigo 46 e o que, por impasse redacional, fora colocado no artigo 47.

As modificações operadas são mais assentes com a técnica legislativa, isso porque o antigo artigo 47, originado da Lei 6.146/77, parece ter advindo de um impasse: se fosse colocado como parágrafo do artigo 46, resultaria suprimido o artigo 47 e, com isso, teria que ser modificada toda a estrutura do Código, com o recuo de todos os demais artigos. Veja-se que o início do parágrafo único do artigo 46 e o início do artigo 47 são semelhantes, não se justificando a autonomia dada ao texto anterior deste último, sob a forma de artigo:

Art. 46 – Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no país ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.

§ 1.º - Diz a reincidência:

I – genérica, quando os crimes são de natureza diversa;

II – específica, quando os crimes são da mesma natureza.

§ 2.º - Consideram-se crimes da mesma natureza os previstos no mesmo dispositivo legal, bem como os que, embora previstos em dispositivos diversos, apresentam, pelos fatos que os constituem ou por seus motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns.

Art. 47 - A reincidência específica importa:

I – a aplicação da pena privativa de liberdade acima da metade da soma do mínimo com o máximo;

II – a aplicação da pena mais grave, em qualidade, dentre as cominadas alternativamente, sem prejuízo do disposto no n.º I.

A nova redação veio a corrigir este despropósito, como reconhece a própria Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal[63].

Registre-se uma pequena e oportuna modificação no texto referido, que, em vez de dizer “não se consideram os crimes militares ou puramente políticos”, reza: “II – não se consideram os crimes militares próprios e políticos”.

De qualquer modo e à guisa de conclusão, verifica-se um esforço legislativo, a fim de dar ao instituto da reincidência uma feição definida, mais assente com nossa realidade social.

3.5 Formas da reincidência

Roberto Lyra, analisando a questão de se saber se a reincidência só haveria após o cumprimento da primeira pena ou não, afirmou: “Não é necessário para verificar-se a reincidência, que o sentenciado haja iniciado e muito menos, vencido o cumprimento da pena”[64].

Alguns autores, como Francesco Carrara, entendem que a reincidência depende do total cumprimento da primeira pena, pois a agravante resultaria da ineficácia dos meios de correção de que dispõe o Estado. A maioria, porém, contenta-se com o caráter definitivo da primeira condenação (Luigi Lucchini, Enrico Pessina, Luigi Impallomeni, Vincenzo Manzini, Bernardo Alimena, Eugenio Florian e Ottorino Vannini)[65].

Daí o porquê a doutrina penal apresenta duas fases distintas da reincidência: a reincidência real, que ocorre quando o agente pratica a nova infração após cumprir, parcial ou totalmente, a pena imposta em razão do crime anterior; e a reincidência ficta, que se dá quando o sujeito comete o novo crime após haver transitado em julgado que o tenha condenado por delito anterior.

A Reforma Penal de 1984, assim como a primitiva Parte Geral do Código Penal de 1940, ante o comando do atual artigo 63, não deixa margem de dúvida que se optou pela reincidência em sua forma ficta, ou seja, que não se exige o cumprimento integral da primeira condenação.

Em resumo, dando continuidade a uma linha de tradição que vem de nossos primeiros diplomas penais, para que se configure a reincidência entre nós, não a condicionamos a que haja o criminoso descontado, mesmo parcialmente, a pena anterior.

3.6 Pressupostos da reincidência

A reincidência pressupõe uma sentença condenatória transitada em julgado por prática de crime. Somente há reincidência quando novo crime é cometido após a sentença condenatória de que não cabe mais recurso, ou que este não tenha sido interposto.

A condenação anterior deve se dar pela prática de crime e não de contravenção. A tal conclusão, chega-se através de uma simples leitura do artigo 63 do Código Penal, que fala em “crime anterior” e não “infração anterior”, que abrangeria tanto o crime quanto a contravenção.

Ao seu turno, o artigo 7º da Lei das Contravenções Penais guarda o seguinte teor: “Verifica-se a reincidência quando o agente pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no estrangeiro, por qualquer crime, ou no Brasil, por motivo de contravenção”.

Da conjunção dos dois dispositivos legais em comento, chega-se com perplexidade às seguintes conclusões: a) o agente comete uma contravenção e por este fato é condenado em decisão transitada em julgado. Pratica, posteriormente, um crime, e não é tido como reincidente; b) o agente comete uma contravenção, vindo a ser condenado em decisão firme. Comete outra contravenção, e é considerado reincidente.

Neste mesmo passo, merece registro a questão de se saber se anterior condenação à pena de multa, pela prática de crime, induz ou não a reincidência. E, neste sentido, o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo já decidiu que a condenação à pena de multa não tira o caráter da primariedade do réu[66]. Contudo, o entendimento contido naquela decisão é minoritário, quer no plano jurisprudencial, quer no plano doutrinário.

Heleno Fragoso[67] e Damásio Evangelista de Jesus[68], entre outros, sustentam que a condenação por crime à pena de multa induz a reincidência. No que toca à jurisprudência, algumas decisões demonstram a ampla posição que prevalece nos Tribunais[69].

Outra importante questão verificada é quanto à hipótese de ter havido uma causa extintiva da punibilidade em relação ao crime anterior, e qual a conseqüência deste fato para a caracterização ou não da reincidência no crime posterior.

Para se responder tal questionamento, deve ser considerado o momento em que ocorreu a extinção da punibilidade, isto é, se foi antes ou depois do trânsito em julgado da sentença condenatória. Se ocorreu antes do trânsito em julgado, então não se pode falar em reincidência. “É que a reincidência pressupõe sentença condenatória irrecorrível. Se esta não existir, não há a recidiva”[70].

Porém, se a causa extintiva da punibilidade vier a ocorrer após o trânsito em julgado da sentença condenatória, a prática de novo crime dará causa à reincidência. “Como indica o próprio nome, somente exclui a punibilidade, que é a possibilidade jurídica da imposição da sanção penal”[71]. Inobstante a causa extintiva da punibilidade venha a ser declarada após o trânsito em julgado da condenação, não haverá reincidência se essa ocorrer por anistia ou por superveniência de lei que deixe de considerar o fato como criminoso, pois, nesses dois casos, a extinção da punibilidade faz desaparecer o crime.

Ainda sob tal enfoque, importante traçar breve ponderação sobre a reincidência e a prescrição retroativa, que constitui forma da prescrição da pretensão punitiva do Estado, e que tem por fundamento a inércia da autoridade pública, “punindo-a com a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva quando não ultima o processo criminal nos prazos legais”[72].

Como hoje não há mais dúvida que tal prescrição se refere à pretensão punitiva, temos que, ocorrendo esta, não subsistem os efeitos secundários da condenação, dos quais o mais importante é a reincidência.

Também o perdão judicial não gera a reincidência, como vaticina o artigo 120 do Código Penal: “A sentença que conceder perdão judicial não será considerada para efeitos de reincidência”.

3.7 Efeitos da reincidência

Os efeitos penais objetivos da reincidência são os mais variados, e Júlio Fabbrini Mirabete os arrola:

a) agrava a pena (art. 63);

b) prepondera essa circunstância na fixação da pena (art. 67);[73]

c) quando em crime doloso, impede a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito ou multa (arts. 44, inciso II, e 60, § 2º);

d) impede a conceção do sursis quando se tratar de crimes dolosos (art. 77, inciso I);

e) impede que se inicie o cumprimento da pena em regime semi-aberto (a não ser que se tratar de detenção) ou aberto (art. 33, parágrafo 2º, ‘b’ e ‘c’);

f) aumenta o prazo para a concessão do livramento condicional (art. 83, inciso II);

g) aumenta o prazo para a prescrição da pretensão executória (art. 110, última parte);

h) interrompe o prazo da prescrição (art. 17, inciso VI);

i) revoga o sursis, obrigatoriamente em caso de condenação por crime doloso (art. 81, inciso I) e facultativamente na hipótese de crime culposo ou contravenção (art. 81, parágrafo 1º);

j) revoga o livramento condicional, obrigatoriamente em caso de condenação a pena de privativa de liberdade (art. 86) e facultativamente na hipótese de crime ou contravenção quando aplicada pena que não seja privativa de liberdade (art. 87);

k) revoga a reabilitação quando o agente for condenado a pena que não seja de multa (art. 95);

l) causa, eventualmente, a conversão de pena restritiva de direitos ou multa em pena privativa de liberdade (art. 44, § 5º);

m) possibilita o reconhecimento da infração penal prevista no artigo 25 da LCP;

n) impede o reconhecimento de causas de diminuição de pena (arts. 155, parágrafo 2º, 171, parágrafo 1º, etc.);

o) agrava a pena na condenação por porte ilegal de arma (art. 19, parágrafo 1º, da LCP);

p) impede a liberdade provisória para apelar (art. 594 do Código de Processo Penal);

q) impede a prestação de fiança em caso de condenação por crime doloso (art. 323, inciso III, do Código de Processo Penal); etc[74].

Aos dois últimos efeitos da reincidência (impedir a liberdade provisória para apelar e impedir a prestação de fiança em caso de condenação por crime doloso), a legislação penal brasileira, desde a edição da Lei 6.416/77, adotou o sistema de temporariedade com relação à caracterização da reincidência. A condenação anterior somente será considerada para o reconhecimento da reincidência se não houverem decorridos cinco anos entre a data do cumprimento da pena relativa ao delito anterior e a prática do crime posterior, e outra não é a interpretação que se pode dar ao disposto no artigo 64 do Código Penal.

Contudo, nossos Tribunais, de forma majoritária, inclusive o próprio Supremo Tribunal Federal, vêm entendendo inexplicável e paradoxalmente, que para efeito de concessão de fiança (Código de Processo Penal, artigo 323, inciso III), não importa o lapso temporal que haja transcorrido entre a anterior condenação suportada pelo réu e seu pedido de arbitramento de fiança[75]. De forma que, para essa finalidade processual a reincidência continua a ser eterna[76].

Também em relação a outro efeito de ordem processual gerado pela reincidência, de impedir que o réu apele em liberdade de sentença condenatória (Código de Processo Penal, artigo 594), é de manifesta inconstitucionalidade por entrar em rota de colisão com o disposto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, que consagra o princípio da presunção de inocência.

Sendo o réu presumido inocente, por força de dispositivo constitucional, não há qualquer lógica que, pelo simples fato de ser reincidente, não possa apelar em liberdade.

Em que pese aqui não ser o local adequado para se enfrentar a questão processual, dada sua relevância e amplitude, não se pode deixar de mencionar que importantes estudos feitos por destacados penalistas demonstram a incompatibilidade do artigo 594 do Código de Processo Penal em face do princípio da presunção de inocência. Ainda que poucas, mas importantes são decisões de nossas Cortes de Justiça, em reconhecer a apontada incompatibilidade.

3.8 Espécies de crimes abrangidos pela reincidência

Para que se dê a reincidência, é totalmente irrelevante a natureza do crime – antecedente e subseqüente – caracterizando a reincidência entre crimes dolosos, culposos, culposo e doloso, doloso e culposo, consumado ou tentado, idênticos ou não, apenados com pena privativa de liberdade, restritiva de direito ou multa, perpetrado no Brasil ou no estrangeiro.

3.8.1 A reincidência e o crime culposo

Pedro Vergara noticia que entre os autores modernos “é opinião vitoriosa que a reincidência é perfeitamente compatível e mesmo necessária, como necessidade de punir mais, entre delitos culposos”[77].

Mas reconhece que os clássicos se opunham a essa decisão da doutrina. “Nicolini e Roberti eram precisos: a agravação da reincidência só se refere aos delitos dolosos, fundando-se na maior perversidade do delinqüente, que se revela na repetição; por isso não pode estender-se aos delitos cometidos por culpa e contra a intenção do delinqüente”[78].

E, logo em seguida, conclui Pedro Vergara:

O nosso direito desviou-se, também, dessas diretivas. Em verdade, um delinqüente culposo pode revelar um estado de periculosidade extrema, pelo descontrôle dos seus impulsos, pela sua habitual negligência, pela sua constante imprudência, pela sua imperícia, muitas vezes patenteada[79].

Esta periculosidade, todavia, não era presumida em razão da simples reincidência em crime culposo – na vigência do Código Penal antes da reforma de 1984 -, porque o artigo 78 daquele diploma somente presumia a periculosidade dos reincidentes em crimes dolosos.

Mas se o que justifica o reconhecimento da reincidência em crimes culposos[80] é a reiterada negligência, imprudência ou imperícia do agente, após uma primeira condenação, causando novo resultado danoso, o que importa é considerar não o resultado causado, mas a conduta causadora.

O fulcro desse reconhecimento, portanto, não está no resultado, mas no fato de conservar-se o agente em um estado, situação ou posição de imprudência, negligência ou imperícia, capaz de causar novo evento danoso.

Mas pergunta-se, e se o autor de um homicídio culposo, por acidente de automóveis, viesse depois a ser condenado por outro homicídio culposo, causado por manuseio imprudente de arma de fogo? Não se reconheceria a reincidência específica, em face da identidade do resultado? Entretanto, as condutas, isto é, as ações físicas seriam inteiramente diversas.

A confusão nasce da falta de sistematização do assunto. Todos os crimes culposos tem a mesma índole. Portanto, não é o título do crime determinado pelo evento que importa, mas a reiterada negligência, imprudência ou imperícia do agente, após anterior condenação por delito culposo, transitada em julgado[81].

3.9 A reincidência e a Lei 8.072/90

O artigo 5º da Lei 8.072/90, a famigerada Lei dos Crimes Hediondos, instituiu o inciso V, no artigo 83 do Código Penal, estabelecendo: “cumprida mais de dois terços da pena, nos casos de condenação por crime hediondo, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, e terrorismo, se o apenado não for reincidente específico em crimes dessa natureza”. Com isso, reintroduziu em nosso ordenamento jurídico o conceito da “reincidência específica”, em postura que Alberto Silva Franco repudia com veemência: “No baú dos trastes penais, num canto de entretecidas teias de aranha, o legislador de 90 descobriu o conceito já tão dilapidado de reincidência específica e cuidou de reanimá-lo”[82].

Diversa é a posição de Alberto Silva Franco, que entende não ser essa a melhor exegese do texto legal:

Antes de tudo porque a interpretação da locução ‘em crimes dessa natureza’, por apresentar um feitio literal, de caráter puramente gramatical, não se acomoda à noção comum, correntia, de reincidência específica. Não se trata, no caso, de uma reincidência qualquer, isto é, do cometimento pela agente de um novo crime, indiferentemente de seus caracteres fundamentais, depois do trânsito em julgado da sentença que o tenha condenado por crime anterior. A reincidência, que deve ser levada em conta, tem características próprias, exclusivas: tem sua especificidade. E tal especificidade reside, exatamente, na comunicabilidade dos dados de composição típica dos dois delitos. Qual a sintonia que pode existir entre o delito de atentado violento ao pudor, simples ou qualificado e o tráfico ilícito de entorpecentes? O que relaciona o estupro, simples e qualificado, a delito de terrorismo? O que há de comum entre o crime de epidemia com resultado morte e o delito de tortura? Evidente, nada. Em ponto algum de releve os referidos tipos suportam um juízo aproximativo. Onde buscar, então, a conotação específica dessa reincidência? Depois, porque não pode o legislador, nem o intérprete decretar que delitos tão díspares, tão dessemelhantes, tenham igual ou mesma natureza. Tal postura atenta contra o significado de um conceito que possui um domínio próprio, autônomo, independente no campo doutrinário. Nada, portanto, mais razoável do que recorrer-se, na ausência de uma definição legal, à noção clássica de ‘reincidência específica’, evitando-se uma exegese que fraude conteúdo dessa noção na medida em que o torna um equivalente do conceito de reincidência genérica. Observa Roberto Lyra que a idéia de reincidência específica está vinculada à definição de crimes da mesma natureza e por tal se entendem não apenas os delitos previstos ‘no mesmo dispositivo legal’, mas também os que, ‘embora previstos em dispositivos diversos, apresentam, pelos fatos que os constituem ou por seus motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns. Portanto, abstraindo-se do dispositivo legal que encerra, juridicamente, a identidade absoluta (violação do mesmo dispositivo legal), há a identidade relativa (caracteres fundamentais comuns)’. Tais caracteres ‘resultam, em concreto, da natureza dos fatos que os constituem (elemento objetivo) ou dos motivos determinantes (elemento subjetivo) e não somente de sua objetividade jurídica’. Natural, portanto, que se considere reincidente específico quem praticou, obedecidos os termos do art. 63 do Código Penal, dois estupros ou dois atentados violentos ao pudor, ou quem realizou um latrocínio e, depois, uma extorsão qualificada pelo resultado morte. Fora de hipóteses que preservem a identidade conceitual da reincidência específica, não há como reconhecer tal qualificação subjetiva[83].

A nova norma, ao reavivar o conceito de reincidência específica, não o fez com o sentido de causar maior punição ao réu, mas apenas para o efeito de impedir o livramento condicional. Mas não se preocupou em dar uma noção transparente e nítida de “reincidência específica”, entendendo Damásio de Jesus que para efeito exclusivo da Lei 8.072/90 é reincidente específico o sujeito que comete crime hediondo, terrorismo, tráfico de droga ou tortura depois do trânsito em julgado de sentença que, no País ou no Exterior, o tenha condenado por esses mesmos delitos. Exemplificativamente, haverá reincidência específica se o primeiro crime for algum dos rotulados de hediondo e o segundo tráfico de drogas[84].

3.10 A eficácia temporal da condenação para efeito da reincidência

Para efeito da reincidência não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a cinco anos, computado o período de prova da suspensão condicional da pena ou do livramento condicional, se não ocorreu revogação (Código Penal, artigo 64, inciso I).

Já o Código Penal de 1940, por sua vez, previa o sistema de perpetuidade da reincidência, como se vê do caput de seu artigo 46.

Em linha evolutiva, o Código Penal de 1969, que jamais entrou em vigor, em seu artigo 59, parágrafo 1º, previa que “se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e o crime posterior decorrer período de tempo superior a 5 anos, perde a reincidência, qualquer relevância jurídica”.

Finalmente, através da Lei 6.416/77, introduziu-se a bem inspirada regra constante do Estatuto Penal natimorto, mas se manteve inalterada a redação do caput do artigo 46 (eliminando apenas os parágrafos 1º e 2º), e introduzindo novo parágrafo único assim redigido: “Para efeito de reincidência, não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a cinco anos”.

Com a edição da Lei 6.416/77, houve intensa polêmica a respeito de qual seria o termo inicial quando houvesse concessão do sursis. Pondo fim à polêmica, a Reforma Penal de 1984, no inciso I, do artigo 64, consignou que o período de prova da suspensão condicional da pena ou do livramento condicional, em não havendo revogação, computa-se para efeito do período depurador da reincidência, mas, nessas situações, o prazo qüinqüenal começa a fluir da audiência admonitória.

Em razão do decurso do lapso temporal referido, a sentença condenatória perde a eficácia de gerar reincidência. Vale dizer: o agente vindo a praticar um novo crime, cinco anos após a extinção da pena do crime anterior, não será considerado reincidente, nem, por óbvio, poderá ser-lhe aplicada as demais conseqüências que dela derivam, como sustenta Heleno Cláudio Fragoso, ao averbar que vencido o prazo de cinco anos, a condenação anterior não pode caracterizar maus antecedentes[85]. Em expressivo julgado do Superior Tribunal de Justiça, que acolheu esse entendimento, foi afastado o estigma da sanção criminal, em decisão que se harmoniza com o Direito Penal e a Criminologia modernos:

O art. 64, I, CP, determina que, para efeito de reincidência, não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração anterior houver decorrido período superior a 5 (cinco) anos. O dispositivo se harmoniza com o Direito Penal e a Criminologia modernos. O estigma da sanção criminal não é perene. Limita-se no tempo. Transcorrido o tempo referido, sem outro delito, evidencia-se a ausência de periculosidade, denotando, em princípio, criminalidade ocasional. O condenado quita sua obrigação com a justiça penal. A conclusão é válida também para os antecedentes. Seria ilógico afastar expressamente a agravante e persistir genericamente para recrudescer a sanção aplicada[86].

Contudo para Damásio de Jesus[87], Júlio Fabbrini Mirabete[88] e Magalhães Noronha[89], acompanhados por significativo número de julgados, entendem que mesmo decorrido o período depurador, a sentença condenatória anterior, que não prevalece para efeito de gerar a reincidência, é eficaz, porém, para caracterizar os maus antecedentes

3.11 A reincidência nos crimes políticos e nos crimes militares

Em relação aos crimes políticos, importa considerar que eles têm sido entendido de duas diversas maneiras pelos penalistas. Para alguns, o que caracteriza o crime político é o fato de ser infração penal contra a segurança interna e externa do Estado. Deve ser considerado o bem jurídico tutelado. Mas para outros, o que importa ser considerado para a caracterização do crime político é a motivação que o inspira.

Aníbal Bruno observa que há uma tendência na atual dogmática penal, no sentido de fundir no mesmo conceito os dois enfoques, mas “no direito italiano, já se considera delito político não só aqueles que ofendem um interesse do Estado ou um direito político do cidadão, mas também o delito comum determinado no todo ou em parte pelo motivo político”[90].

Para o nosso ordenamento jurídico, sejam os crimes políticos, penais ou relativos, não são aptos a gerar a reincidência, isto após a edição da Lei 7.209/84, que excluiu da locução “crime político” o advérbio “puramente”.

A condenação anterior de crime propriamente militar não é considerada para efeito de reincidência. O crime militar próprio não tem a mesma natureza dos crimes comuns. Pense-se, por exemplo, no tipo “dormir em serviço” para verificar que não guarda nenhuma correspondência dos tipos do direito penal (lembrando que os crimes militares próprios são aqueles que estão previstos no Código Penal Militar).

Ao reverso, em relação aos crimes impropriamente militares, que são aqueles que além de estarem previstos no Código Penal Militar, também encontram previstos no Código Penal comum, quando praticados por militares e por civis, contra o patrimônio militar ou administração militar (artigo 9º do Código Penal Militar), são considerados para efeito de reincidência.

3.12 As justificativas clássicas para o agravamento da pena em função da reincidência

Edgardo Alberto Doma, em sua obra “Reincidencia y Culpabilidad”, expõe a posição doutrinária de Giuseppe Zanardelli, de Francesco Carrara, da Escola Positiva, de Silvio Ranieri e de Vincenzo Manzini, que utilizavam no sentido de fundamentar a agravação da pena em decorrência da reincidência. Louvando-se na lição do argentino, podem ser resumidas as posições doutrinárias.

Para Giuseppe Zanardelli, o fundamento do aumento da pena pela reincidência se dá em razão do maior alarme social que produz o agente que já delinqüiu várias vezes. Vale dizer: o agente que já fora anteriormente condenado, demonstra um “obstinado desprezo pela lei”.

Francesco Carrara justifica o aumento da pena apoiando-se na premissa de que o sujeito que volta à delinqüir, depois de haver sido condenado anteriormente, demonstra maior insensibilidade frente à pena. Assim, renovar a pena anteriormente aplicada, isto é, na mesma quantidade, é inútil, pois a reprimenda foi ineficaz.

A Escola Positiva, surgida e desenvolvida no final do século passado, propugna pela agravação da pena em razão da reincidência, posto que isso é necessário em defesa da sociedade frente ao indivíduo que com sua atividade demonstra maior periculosidade que o delinqüente primário. Periculosidade há que ser entendida como probabilidade do agente vir a praticar novo crime. Todo delinqüente, pelo fato de incorrer em atividade delitiva, é perigoso, mas se distinguem graus quantitativos, e o reincidente demonstra maior periculosidade.

O fundamento utilizado por Silvio Ranieri, para justificar a majorante em questão, é o índice de maior capacidade para delinqüir do réu, o qual se considera como uma qualidade inerente da pessoa que implica na aplicação de uma pena mais grave.

Por fim, Vincenzo Manzini esclarece que o maior rigor na apenação do segundo delito reside na necessidade de que o Estado dirija sua tutela jurídica à proteção da ordem jurídica, turbada pela atividade do reincidente. Anota ainda que o reincidente possui uma vontade persistente de delinqüir.

3.13 A justificativa dos doutrinadores brasileiros para o agravamento da pena em função da reincidência

Roberto Lyra assim sintetizou o porquê do agravamento da pena em decorrência da reincidência: “Se perigoso é quem autoriza a suposição que venha a delinqüir, quem delinqüiu autoriza, não somente a suposição, mas a certeza da periculosidade”[91]; para ele, “o reincidente é sempre perigoso”[92].

Daí porque, em visão simplista, deve-se agravar a pena do agente, que voltando ao crime demonstra sua falta de sensibilidade e destemor diante das leis penais.

Ao seu turno, Paulo José da Costa Junior, invocando as lições de penalistas italianos, assim se posiciona: “A ratio da maior gravidade da reincidência está na relação psicológica menos valorativa entre a conduta subseqüente e a condenação anterior, alicerçando-se na insensibilidade do agente à emenda e à reeducação”[93].

Já para Julio Fabbrini Mirabete, a exacerbação da pena justifica-se plenamente para aquele que, punido anteriormente, voltou a delinqüir, “demonstrando com sua conduta criminosa que a sanção normalmente aplicada se mostrou insuficiente para intimidá-lo ou recuperá-lo. Há, inclusive, um índice maior de censurabilidade na conduta do agente que reincide”[94].

Não se pode deixar de consignar que inobstante as colocações acima expostas, de há muito, existiam aqueles que entendiam não haver razão para agravação da pena, uma vez que se o criminoso foi punido e já cumpriu sua pena, verificar-se-ia a ocorrência de bis in idem.

Neste sentido, era a lição de Joseph Carnot, Alauzef, Olivier de Tissot, Christian Reinold Köstlin, Adolf Merkel, Gesterling, Karl Joseph Mittermayer, Francisco Mário Pagano, Giovanni Carmignani, Alessandro Giuliani e Enrico Pessina, segundo Roberto Lyra[95], cuja doutrina pode assim ser explicada:

Não há razão alguma, depois que o primeiro crime foi castigado, para agravar a pena do segundo crime por causa de repetição. Pela pena sofrida, o primeiro crime foi expiado, a lei deu-se por satisfeita e o Estado reconciliou-se com o culpado, porque a pena extingue o crime: se na repetição deste se recorda o primeiro fato para agravar a pena, o crime já castigado será penalizado uma segunda vez, e o Estado evocaria pretensão já satisfeita e extinta com o pagamento[96].

A arrojada posição dos doutrinadores, todavia, têm sido ignorada pela maioria das legislações ocidentais, que insistem na manutenção do arcaico instituto da reincidência.

3.14 A reincidência como causa facultativa do aumento da pena

Entre os penalistas brasileiros, Heleno Fragoso[97] e Damásio Evangelista de Jesus[98], defendem a posição de que deve ser facultativo o aumento da pena resultante da reincidência, retirando-a do elenco de circunstância agravante obrigatória. “A reincidência pode não significar coisa alguma. Imagine-se o crime de sedução praticado por quem tenha sido condenado por homicídio culposo”[99].

Para alguns, a reincidência trata-se de uma presunção de intensa consciência da ilicitude[100], como Fabiano Augusto Martins Silveira; mas por ser presunção, o seu caráter obrigatório de agravação da pena merece amplas censuras, pois se a fundamentação técnica que se dispensa ao instituto harmoniza-se, portanto, com a presunção da intensa consciência da ilicitude, jamais com a certeza dessa intensidade, sob pena de professarmos um direito penal com saliências mecânicas e autoritárias[101].

3.15 A reincidência como circunstância atenuante

Roberto Lyra, entre outros, noticia que a reincidência chegou a ser apresentada como atenuante, “pois o hábito agindo sobre a vontade diminui os obstáculos que esta encontra e, portanto, a liberdade, donde ser a culpabilidade moral no reincidente menor do que no primário (Bourdan, Tissot)”[102].

Esse pensamento foi reavivado por Juarez Cirino dos Santos, que considera que diante do agente que efetivamente cumpriu pena privativa de liberdade, ante os notórios efeitos criminógenos do cárcere, a reincidência há que ser considerada como circunstância atenuante, já que “o novo crime é, preponderantemente, resultado da atuação deficiente e predatória do Estado, sobre os sujeitos criminalizados”[103].

Para Juarez Cirino dos Santos, se o novo crime é cometido sem o efetivo cumprimento da pena privativa de liberdade, a reincidência é um indiferente penal.

Talvez pensando assim é que Donnedieu de Vabres afirma, enfático, que o reincidente está próximo do “doente de vontade”, e arremata: “Se de acordo com a doutrina objetiva, idealista, o rigor do castigo deve ser proporcional ao grau de liberdade contida no ato, o reincidente deve ser alvo de uma pena cada vez menos severa”[104].

O autor oferece, em relação à França, uma análise estatística sobre o crescimento da reincidência:

Não só aparecimento dos métodos penitenciários, nos meados do Século XIX, não determinou a menor redução da reincidência, mas as estatísticas, desde 1826, até as vésperas da guerra, fixam a linha desta, quase constantemente ascencional. Principalmente entre os argüidos de crimes, a proporção dos reincidentes que no período qüinquenal de 1826 a 1830 não ultrapassa a 16%, eleva-se a 56% e a 59% no período de 1900 a 1910.[105]

O uso científico da teoria da culpabilidade não pode nos levar à outra conclusão senão a de que a fixação da pena deve levar em conta o grau de autonomia do agente, no momento da prática delituosa, daí porque a proposta de que a recidiva autorize a atenuação da pena.

3.16 O tratamento do reincidente e o fracasso da resposta tradicional

É preciso que se traga a lume o retumbante fracasso da resposta tradicional ao tratamento da reincidência, com a agravação da pena, como se comprova pelo índice cada vez mais elevado de reincidentes que chegam aos cárceres.

Francisco Muñoz Conde, em nota à tradução ao espanhol do Tratado de Direito Penal de Hans-Heinrich Jescheck, assim critica a resposta tradicional dada à questão da reincidência:

Uno de los problemas fundamentales que tiene planteado el moderno Derecho Penal es el del tratamiento de la reincidencia. La respuesta tradicional há sido la agravación de la pena, hasta límites que a veces llega a imponer penas privativas de libertad de larga duración por delitos de relativa poca importancia cuando el autor ha sido condenado y ha varias veces anteriormente (cfr. por ej. el tratamiento de los multirreincidentes en el art. 61, 6ª o en el art. 56, 3º, recientemente derogado por reforma de 12 enero 1980). El fracaso de dicho sistema se comprueba en el índice cada vez más elevado de reincidentes que llenan las cárceres sin possibilidad de recuperación social. Por otra parte, ninguna de las razones que se dan para justificar la agravación de la pena para el reincidente desde el punto de vista jurídico es convincente. No siempre el delicuente reincidente es más ‘perverso’, ni más ‘cumpable’, ni más ‘peligroso’ que el primario. Cada vez se impone com mayor fuerza la idea de que el problema de la reincidencia sólo puede ser abordado en la fase de la ejecución de la pena privativa de libertad, procurando que el delincuente no vuelva a delinquir una vez que cumpla la pena y evitando, en todo caso, su desocialización com una prolongación innecesaria de su internamiento. También la adopción de medidas puede ser mas efectiva que la agravación de la pena[106].

Eugênio Raul Zaffaroni, além de advertir sobre o efeito estigmatizante da intervenção punitiva com a redução do espaço social de quem por ela é atingida, alerta para a necessidade de se compatibilizar o discurso jurídico-penal com os dados elementares das ciências sociais:

Queremos dizer com isso simplesmente que os argumentos justificadores que criticamos, além das objeções internas que formulamos, mostram-se paradoxais, quando confrontados com os dados proporcionados pelas ciências sociais.[107]

Nenhum dos argumentos que pretendem justificar a maior gravidade da pena do segundo delito “conseguiu enfrentar a questão de que o plus de gravidade é uma nova reprovação ao primeiro delito” [108], conforme, com razão, observa Eugênio Raul Zaffaroni, concluindo que “toda maior gravidade da conseqüência jurídica do segundo delito (em forma de pena, de ‘medida’ ou de privação de benefício) é uma concessão ao direito penal autoritário, abrindo as portas para conceitos espúrios e perigosos para todas as garantias penais”[109].

A afirmação de Zaffaroni de que a reincidência deita raízes no direito penal autoritário é facilmente comprovada, ao se examinarem as justificativas mais usuais que sustentam a reincidência, que são: a) criação de um conceito de bem jurídico decorrente de uma hipotética “dupla lesão”, isto é, um dano imediato que é a lesão ao bem jurídico propriamente afetado e outro mediato (o político) de um imaginário alarme social causado pelo delito; b) renúncia ao direito penal do ato para utilização do direito penal do autor.

Melhor explicando, a primeira teoria exposta para justificar a reincidência (fundamentada no “alarme social”), procura mostrar que além do bem jurídico imediatamente tutelado, há outro bem jurídico lesionado com a prática do delito – a obediência ao Estado, que na precisa observação de Eugênio Raul Zaffaroni, “constitui uma espécie de doutrina de ‘segurança nacional’ transitando pela casa do direito penal”[110].

Já no que toca à segunda teoria explicadora, incide no grave equívoco de se julgar o que o homem é e não o que o homem fez, o que, se aceito, viria a quebrar um dos princípios do direito penal de garantia que é a intangibilidade da consciência moral da pessoa. O Estado não tem o direito de julgar o “ser” dos homens.

Entre nós, merece destaque a lição de Alberto Silva Franco, quando aduz que o próprio Estado que pune não deixa de ser um dos estimuladores da reincidência, em virtude do processo dessocializador e marginalizador que o condenado é submetido ao ser levado ao sistema penitenciário. “Não parece, por isso, razoável que, depois o mesmo Estado exacerbe a punição sob o pretexto de que o agente desrespeitou a sentença anterior, desprezou forma advertência expressa nessa condenação e, assim, revelou uma culpabilidade mais intensa”[111].

Alberto Silva Franco prossegue em sua feroz crítica à reincidência:

Por outro lado, mostra-se, hoje, bastante duvidosa, em sua constitucionalidade, a agravação obrigatória da pena, em razão do agente ser reincidente. Como já foi enfatizado anteriormente (art. 1º, item 2.05), o princípio do non bis in idem, que se traduz na proibição da dupla valoração fática, tem hoje seu apoio no princípio constitucional da legalidade. Não se compreende como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma infração. O fato criminoso que deu origem à primeira condenação não pode, depois, servir de fundamento a uma agravação obrigatória de pena, em relação a um outro fato delitivo, a não ser que se admita, num Estado Democrático de Direito, um Direito Penal atado ao tipo de autor ‘ser reincidente’, o que constitui uma verdadeira e manifesta contradição lógica. Como acentua Zugadia Espinar (Fundamento de Derecho Penal, p. 236, 1990), um mesmo fato não pode ser tomado em consideração ‘com plurais efeitos fundamentadores ou agravatórios da responsabilidade criminal’, mesmo porque a sanção repetida de uma mesma conduta possibilita ‘uma inadmissível reiteração no exercício do jus puniendi do Estado’ (Dias Palos, La Jurisprudencia Penal Ante La Dogmática Jurídica y la Política Criminal, p. 146, Colex, Madrid, 1991). Correta, portanto, a conclusão de que o princípio da legalidade não admite, em caso algum, a imposição de pena superior ou distinta da prevista e assinalada para o crime e que a agravação da punição, pela reincidência, faz, ‘no fundo, com que o delito anterior surta efeitos jurídicos duas vezes’ (Quintero Olivares, Derecho Penal, Marcial Pons, Madrid, 1989)[112].

Eugênio Raul Zaffaroni, de sua forma naturalmente demolidora, ataca também o instituto da reincidência:

Um instituto que leva a exaltar como valores a ordem e a obediência em si mesmas, que leva o Estado a se atribuir a função de julgar o que cada ser humano escolhe ser e o que cada ser humano é; que implica num bis in idem; que contribui para afastar o discurso jurídico da realidade, ignorando dados que se manifestam há séculos e que as ciências sociais demonstram de maneira incontestável; que, com tudo isto, contraria a letra e o espírito da consciência jurídica da comunidade internacional, moldada nos instrumentos jushumanistas; um instituto como este deveria desaparecer do campo jurídico, da mesma forma que desapareceram, a seu tempo, a tortura no âmbito processual ou a analogia no campo penal.

Não se deve pensar que a comparação com o desaparecimento desses outros institutos clássicos do direito penal autoritário seja um exagero, pois sob o manto da figura da reincidência e dos conceitos que lhe são próximos já se praticaram crimes terríveis contra a Humanidade, como o desterro de 1857 (BARBAROUX) e de 1885 (TEISSEIRE) e sua relação com as práticas desenvolvidas na Guiana (P. MURY, cit. por BERISTANI) e na América Latina; basta lembrar do tristemente célebre presídio de Ushuaia, no extremo sul do mundo, mantido, desde 1895 até seu desaparecimento em 1947, com base numa norma de desterro análoga à francesa. Centenas de milhares de seres humanos sofreram os horrores de penas mais graves do que suas culpas em função do instituto da reincidência: mais de 17.000, contando apenas os desterrados de Cayena. A história de reincidência e dos institutos que lhe são próximos não é menos sangrenta do que a doutrina[113].

Na verdade, o instituto da reincidência mostra ser um velho tentáculo do odiento direito penal do autor, construído sobre o agente-do-fato e não sobre o fato-do-agente (e já houve tempos em que o direito penal do autor foi a tônica).

Pode-se mesmo afirmar ter sido o direito penal do fato uma penosa conquista da humanidade, sobrevinda com a “secularização” do direito penal ou com sua desvinculação de propósitos políticos imediatistas. Fácil será, portanto, apontar, na história, períodos em que se pretendeu, por motivos religiosos ou por razões de Estado, fundar a pena criminal não naquilo que o “agente faz”, mas no que ele “é”. “Durante larguíssimo período” – afirma Sebastian Soler – “las penas más crueles han sido fundadas en la afirmación de que un sujeto era brujo o hereje. En nuestros propios tiempos hemos visto fundar las más extremas medidas sobre la base de la condición óntica de judío o de negro”[114].

Em conclusão, Eugênio Raul Zafaroni:

 

Cabe observar que o abandono da reincidência e das conseqüentes ‘medidas’ implica num enfoque muito mais efetivo da conflituosidade criminalizada: a não ser pela satisfação de interesses burocráticos da polícia, não há nenhum sentido em fazer com que um peso punitivo, por sua irracionalidade, e violador de Direitos Humanos, recaia sobre uma grande quantidade de infratores, autores de injustos penais de menor magnitude, somente porque são mais ou menos ‘incômodos’, enquanto a conflituosidade de maior peso e gravidade se oculta ou se dissimula.

O direito penal, que mantêm a reincidência e as ‘medidas’, é um direito penal ‘disciplinador’, que não tem sua maior preocupação no conteúdo de injusto da conduta conflituosa, privilegiando sim a submissão à ordem. Neste sentido, não há dúvida de que satisfaz os interesses puramente policialescos: a polícia mantêm sua imagem pública, na medida em que elimina as ‘perturbações’ mais notórias. As infrações gravíssimas não contam para essa imagem que podemos chamar de ‘burocrática’. A imagem pública do delito não se configura com estas últimas, mas sim com as primeiras. Por isso, o direito penal da reincidência serve fundamentalmente aos interesses da demagogia política, que pretende mostrar eficácia para obter clientela eleitoral, bem como aos interesses burocráticos dos policiais, que não querem receber as críticas dos políticos demagogos.

É de se considerar que o desaparecimento de todas as formas de maior gravidade punitiva fundada em um delito anterior traria ainda a vantagem de eliminar o registro de antecedentes penais (que se tornaria desnecessário), com o que desapareceria a consagração legal da estigmatização.

A irrecuperação de um direito penal de garantias pleno daria um passo extremamente significativo com a abolição definitiva da reincidência e dos conceitos que lhe são próximos, conceitos estes sempre evocativos dos desvios autoritários dos princípios fundamentais do direito penal liberal, e especialmente, do estrito direito penal do ato[115].

 

Abandonar o agravamento da pena em função da reincidência representa passo largo em direção ao avanço do sistema penal, trazendo a fixação da pena para trilhos sóbrios e humanistas, e deixando de lado a insanidade puramente repressiva do instituto – que apenas por esse objetivo se quer justificar.

 

 

3.17 O princípio do non bis in idem e o agravamento da pena em função da reincidência

 

Há vozes que se levantam contra a agravação da pena em caso de reincidência criminal, sob a alegação de que a reprovação mais severa em relação ao segundo crime, motivada na reincidência, ofende o princípio do non bis in idem, assim entendido não somente no sentido mais amplo, ou seja, na proibição de se apenar o mesmo indivíduo duas vezes pelo mesmo fato, senão, também, a proibição de imputar ao autor “conseqüências posteriores”[116], que violariam o princípio.

A vigente Constituição Federal não cita expressamente o princípio do non bis in idem, mas consoante lição de Alberto Silva Franco, o princípio em tela “tem hoje seu apoio no princípio constitucional da legalidade”[117].

Em que pese o princípio em comento também não esteja expressamente contemplado, por exemplo, na Constituição da Argentina e da Espanha, Edgardo Alberto Donna[118] e Joan Queralt[119], respectivamente, entendem que ele decorre do contexto e dos princípios gerais expostos naqueles textos fundamentais.

A reincidência, na medida em que se traduz em uma maior gravidade da pena do segundo delito, viola o princípio do non bis in idem, posto que esta maior gravidade é resultado do delito anterior, pressuposto da reincidência, ou seja, é conseqüência do delito anterior, realizando-se, assim, um duplo jogo de penas: primeiro se castiga o autor pelo fato cometido, logo este fato vale para que na segunda ou terceira condenação se aplica outra pena mais agravada. Os que rebatem a infração do instituto da reincidência ao princípio do non bis in idem, no entanto, alegam que a maior severidade no cumprimento da sanção não se deve à circunstância de que o sujeito haja cometido o delito anterior, senão ao fato de haver sido condenado nessa oportunidade e obrigado a cumprir uma pena privativa de liberdade, o que põe em evidência o maior grau de culpabilidade da conduta posterior em razão do desprezo que manifesta pela pena quem, não obstante tenha sofrido antes, recai no delito[120].

 

A agravação da pena, no caso da reincidência, nenhuma violação trará ao aludido brocardo (do non bis in idem), cuja aplicação no Direito Penal exige, aliás, criteriosa ponderação. É da influência da condenação ou da execução da pena sobre o caráter do delinqüente que se cogita em semelhante agravação. No reincidente há culpabilidade maior, porque a advertência que lhe foi feita na anterior condenação irrevogável e, melhor ainda, o regime penitenciário a que se submeteu no caso do cumprimento da pena não bastaram para regenerá-lo. Não se pune de novo o delito anteriormente praticado; pune-se mais severamente o delito novamente praticado, porque na perpetração do novo crime acentuou-se a tenacidade do propósito criminoso, revestindo-se de maior gravidade o seu elemento moral, isto é, a intenção criminosa[121].

Conceituando o princípio do non bis in idem, temos como sendo a impossibilidade de que as pessoas possam ser punidas mais de uma vez por um mesmo fato tido como delituoso. Daí decorre que, se alguém for julgado por um fato, qualquer que seja o resultado, não se pode julgá-lo novamente.

Bidart Campos, citado por Edgard Alberto Donna, faz a seguinte observação: “Es claro que no estaria protegida la libertad de los indivíduos si éstos estuvieram sujetos a soportar un número ilimitado de processos por cada hecho delictivo que se les atribuyera”[122]. Donna sustenta que a doutrina não tem extraído as conseqüências necessárias e lógicas que o princípio tem, uma vez que ele não pode ficar limitado tão-somente à impossibilidade de se reiniciar o processo, por fato que já fora anteriormente julgado, mas, também, a impossibilidade que a esses fatos praticados pela mesma pessoa se possa imputar conseqüências posteriores, que viriam a violar o princípio[123]. E para Donna, o instituto da reincidência viola o princípio em comento, assistindo-lhe razão, vez que inexiste quem demonstre cientificamente que a agravação da pena em razão da reincidência não é uma nova reprovação ao primeiro delito:

La idea central es la siguiente: se viola el princípio non bis in idem, porque la condena anterior se toma a los efectos de agravar la condena que se dicta o como algunos autores afirman, darle el ‘estado de reincidencia’, y en otros casos a fin de aplicar una pena supletoria, a la cual se da el nombre de medida de seguridad, de modo que existe una condena doble[124].

Também para Giulio Battaglini, “os que são contrários à agravação da pena falam em dilaceração do princípio da retribuição”. Objetam que, estabelecendo-se tal agravação (sistema seguido por quase todos os códigos), “chega-se na realidade, a responsabilizar duas ou mais vezes o mesmo agente pela mesma ação, violando-se a regra do non bis in idem”[125].

Em acertada posição, o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro sentencia:

Cada infração tem a pena correspondente. Não pode haver duplicidade. Vale dizer, o mesmo delito ser punido várias vezes, ou a sanção de um estender-se ao outro. Seria, sem dúvida, bis in eadem odioso[126]. [sic]

Para Janora Rocha Rossetti, a constante tentativa de se diferenciar o reincidente do não reincidente traduz preocupação do legislador em prevenir e reprimir o que se chama de uma “persistente inclinação ao delito”.

Sob tal aspecto, a reincidência configura típico e perfeito bis in idem penal – idéia discutida desde o remoto período da escola clássica – à medida que um primeiro fato dá ensejo a duas punições distintas: no processo originário, à condenação, e, num processo posterior, à agravação da pena[127].

Assim, em face do princípio em tela, devidamente observado, deve-se impedir o reexame de um episódio que já constituiu objeto de uma decisão penal transitada em julgado, sob pena de afrontar o princípio do non bis in idem.

3.18 O princípio da culpabilidade e o agravamento da pena em função da reincidência

Sérgio Salomão Shecaira define a culpabilidade como sendo “um juízo de censura (valoração feita ao agente do delito, que é imputável, e que, ademais, tem consciência potencial da ilicitude do fato delituoso que cometeu”[128]. Aponta ainda que a culpabilidade advém de forma imediata da Constituição Federal, do princípio da dignidade da pessoa humana e do seu direito à liberdade, e se sustenta, ainda no sistema implantado pela Lei 7.209/84, objetivamente, como fundamento para escolha e quantificação da pena[129].

Sem qualquer receio, é lícito afirmar que, com o advento da nova Parte Geral do Código Penal, a culpa é o fundamento e o limite para a pena.

Ao atentarmos para um juízo de culpabilidade em sentido normativo, entendido como culpabilidade pelo fato, em verdade, a reincidência não poderia ter outro efeito que o de diminuir a culpabilidade, porque a reiteração cria hábito que é mais difícil de vencer. Assim, em razão da culpabilidade do ato, não há como validamente agravar a pena em função da reincidência. A menos, é claro, que se adote a culpabilidade do autor.

Eugênio Raul Zaffaroni demonstra que esta posição levou o juiz penal a formular um juízo moral sobre o autor em lugar de um juízo sobre o ato[130]. E é de se ter presente, ainda, que o delito anterior não exerce nenhuma influência no posterior, posto que se não houvesse condenação não se operaria a agravação, o que demonstra que eficazmente é a condenação que agrava o delito posterior[131].

Como anota Edgardo Alberto Donna, o fundamento da reincidência tem um “claro sentido positivista”, que se reduz à seguinte idéia: dado o fracasso da pena privativa de liberdade, a não ressocialização que se buscou mediante ela, só deve aumentar a pressão estatal sobre o indivíduo, segregando-o do resto das pessoas.

Daí a razão pela qual ser facílimo compreender que a agravação da pena em decorrência da reincidência é um pretenso apelo à “segurança”, deixando de lado o resgate do indivíduo.

Donna afirma que sua posição implica em admitir que o fracasso da pena que sofreu significa “menos culpabilidad del sujeto, menos capacitad de compreender a criminalidad del acto y conducirse conforme o derecho. No puede el Estado tomar esta menor capacitad para aumentar la pena al sujeto”[132]. E conclui seu sentir:

De modo que en estos casos se demuestra com claridad la falla del medio empleado por el Estado para evitar los delitos. En lugar de este reconocimiento, los ideólogos del positivismo insisten en emplear la misma medida, esta vez agravada y que dejará la marca de por vida al sujeto[133].

No mesmo sentido, a lição de Maria Lúcia Karam, quando afirma que os argumento que giram em torno do maior grau de culpabilidade, ou de uma maior decisão na vontade do autor reincidente, contradizem as próprias finalidades, que seus defensores costumam atribuir à pena: “se, com o cumprimento de uma pena anterior, se reforçou a motivação contrária à norma, o que se demonstra é que aquela pena foi contraproducente e criminalizante, o que torna um paradoxo a insistência nesta mesma reação punitiva”[134].

A justificativa clássica para o aumento da pena em virtude de uma suposta maior culpabilidade do ato é improcedente, pois a consciência da antijuridicidade do segundo fato é inteiramente independente da condenação anterior, podendo, inclusive, ser menor ou até mesmo inexistir, sem que o primeiro fato tenha qualquer relevância a respeito.

Demonstrado assim a irracionalidade das justificativas tradicionais para o aumento da pena pela reincidência, não se pode deixar de apontar a manifesta incongruência da inclusão da reiteração delitiva entre as circunstâncias agravantes, uma vez que elas não dizem respeito ao fato da infração examinada, e a reiteração delitiva não pode ser entendida como circunstância, como se fosse uma particularidade, um acidente, que acompanha um determinado fato ou situação. Na realidade, a reincidência não passa de uma qualificação subjetiva do agente: “recidivo non è il reato bensì il delinquente”, diz Salvatore Messina[135].

3.19 Os efeitos da reincidência e a dignidade da pessoa humana

O princípio da legalidade, como o princípio da culpabilidade dele derivado, assentados no reconhecimento da dignidade da pessoa humana como fundamento da República (artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal), impõe a afirmação de que se torna insustentável a manutenção do instituto da reincidência, quer para o fim de agravação da pena, quer para qualquer de seus outros efeitos.

A dignidade é um valor concreto atribuído a todo ser humano, independentemente de seu status jurídico (não delinqüente ou delinqüente, reincidente ou primário). Não pode assim, no momento da aplicação da pena, o autor de um determinado fato ser visto de forma desigual ao autor de fato análogo, impondo-se a ele a posição de inferior, porque supostamente “perigoso”, ou dando-lhe um tratamento distinto, porque apresentaria um traço diferente em sua personalidade.

“Nenhuma pena pode ser imposta pelo que se é”[136], adverte Maria Lúcia Karam. Quando o Estado pretende julgar o ser de um homem, como ocorre quando se faz qualquer concessão à culpabilidade do autor, a dignidade da pessoa humana está irremediavelmente violada, quebrando-se a intangibilidade da consciência moral desta pessoa.

3.20 A dispensa do registro criminal com o desaparecimento do instituto da reincidência

Eugênio Raul Zaffaroni afirma que ao desaparecer toda forma de agravação da pena em razão da existência de infração penal anterior “traria ainda a vantagem de eliminar o registro de antecedentes penais (que se tornaria desnecessário), como que desapareceria a consagração legal da estigmatização”[137].

É notório que o fato de uma pessoa ter seu nome lançado nos registros criminais (judiciais e/ou policiais) traz, por si só, uma enorme carga negativa, verdadeiramente estigmatizante (estigma é termo criado pelos gregos “para se referir a sinais corporais com os quais procurava-se evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentasse”[138]).

Atualmente, o termo é usado de maneira muito semelhante ao sentido literal original, porém é mais aplicado à própria desgraça do que à sua evidência corporal[139].

A criminalização primária produz rotulação, que produz criminalização secundária (reincidência). O rótulo criminal (cristalizado em folha de antecedentes, certidões criminais, ou surgidos através da divulgação sensacionalista da mídia), produz uma assimilação de suas características pelo rotulado, a geração de expectativas sociais de condutas correspondentes a seu significado, a perpetuação do comportamento criminoso e a aproximação recíproca de indivíduos estigmatizados[140].

É verdade que o artigo 202, da Lei de Execução Penal, determina que: “Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia referente à condenação, salvo para instruir processo penal pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei”.

Sucede que, ao menos no Estado do Paraná, o dispositivo legal em questão em sua eficácia fortemente comprometida ante o teor do Código de Normas da Corregedoria-Geral da Justiça, que mesmo nas hipóteses de absolvição, trancamento da ação penal, extinção da punibilidade, arquivamento do inquérito policial, rejeição da denúncia (ou queixa), entre outros, apenas para efeitos de natureza civil permite que as certidões sejam expedidas com a nota de “nada consta”[141].

Do contrário, o requerimento de qualquer pessoa, desde que preencha o formulário próprio e assinale outra finalidade à certidão (concurso público, eleitoral ou judicial), a certidão será expedida noticiando a existência do feito criminal, tenha sido o seu desfecho o mais favorável possível ao implicado.

Existem, bem verdade, decisões judiciais que concederam mandado de segurança para sanar tal anomalia, e, neste sentido, merece especial registro o Acórdão prolatado pela Segunda Câmara do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, que considerou ilegal a disposição administrativa que se sobreponha à lei ordinária e determina a informação dos antecedentes criminais do agente[142].

Deixando a reincidência de ser causa agravadora de pena, de nenhum efeito será o registro criminal, o que certamente levará à sua extinção, o que por conseqüência óbvia, trará o fim da estigmatização que dele decorre.

Ao se cogitar a abolição da reincidência, os antecedentes do réu (previstos no artigo 59 do Código Penal, e aqui entendidos pela existência ou não de precedentes policiais ou judiciais, no momento da consumação do fato criminoso), também serão tidos por indiferentes penais, de forma que a existência de registro criminal, repita-se, tornar-se-á totalmente dispensável.

A nossa prática forense, que no liminar da ação penal (quando não mesmo no inquérito policial) traz ampla e indistinta publicidade sobre os precedentes policiais ou judiciais do réu (ou indiciado), ainda que estas estampem decisões favoráveis ao implicado, certamente conduzirá a efeito desfavorável ao acusado, tão somente pelo fato de ter este figurado como réu em anterior ação penal (ou ainda tão somente ter sido indiciado em inquérito policial que posteriormente virá a ser arquivado).

Antonio Manuel de Almeida Costa, em estudo feito sobre o registro civil, propõe, de iure constituendo, que as sentenças absolutivas (ou outras decisões que impliquem no arquivamento do processo), de anistia e de reabilitação não sejam informados aos órgãos judiciais penais, ao fundamento correto que:

A agravação da pena, porventura resultante ainda que inconscientemente dos pré-juízos existentes contra o simples facto de ter figurado o réu em outra acção penal, parecem contrariar os princípios fundamentais de um processo conforme ao Estado de Direito. É que tal agravação acabaria por corresponder, sobretudo, nos casos de absolvição por faltas de provas, a uma punição de mera ‘suspeita’, facto que envolveria a violação do princípio in dubio pro reo ou da presunção da inocência até o trânsito em julgado da sentença condenatória[143].

Ao defender-se a abolição da reincidência (que à evidência engloba os “maus antecedentes”), de nenhuma valia serão os registros criminais.

Pela própria condição da vida moderna, o registro criminal constitui, em verdade, o único instrumento capaz de propiciar o conhecimento dos antecedentes penais do acusado. Ao extinguir-se esta via, contudo, estar-se-á atuando sobre terrível mecanismo de fabricar e reforçar a estigmatização daqueles que se envolvem com a justiça penal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eugênio Raul Zaffaroni bem demonstra a perda de legitimidade do sistema penal[144]. Contudo, por mais que os operadores do direito, dotados de consciência crítica, esforcem-se para demonstrar a completa irracionalidade do sistema penal, estes não têm o poder de fazê-lo desaparecer. O sistema penal se sustenta, inobstante sua incoerência, porque há uma construção social e um poder que o mantém.

Para além da discussão, válida entre os adeptos do direito penal mínimo e os abolicionistas do sistema penal de hoje, o fundamental é saber que temos que operar uma redução do sistema penal, seja como for, posto que a redução se contabiliza em menos mortes, menos trauma social, menos violência.

É que, afinal, não é verdadeira que aumentar a tensão violenta por parte do Estado corresponda à pacificação da sociedade. Muito ao contrário.

Assim, a atuação deverá centrar-se, principalmente, em saber como operar esta redução, como desarmar esta caldeira sem que ela exploda, para o qual é necessário saber como ela funciona.

E o primeiro passo para esse “desarme”, pode-se dar com a abolição da reincidência, que, como visto, não aparenta qualquer justificativa lógica para sua manutenção.

A abolição da reincidência na América Latina não é inviável.

Aliás, a legislação alemã já fez desaparecer tal instituto em 1986; e o Código Penal Colombiano eliminou a reincidência em 1980; os códigos italianos e portugueses já tratam da reincidência facultativa.

O fato dessa proposta entrar diretamente em rota de colisão com o terrorismo penal que hoje impera, onde até um bispo católico pede a redução da menoridade penal[145], insuflado pela dramatização intencional do fenômeno da violência, não inibe de propor a abolição da reincidência, bem como de todos os efeitos que dela decorram, assim como a eliminação do registro criminal.

Ao assim se proceder, estar-se-á dando mais um passo para a supressão do mal que é o sistema repressivo penal, em demonstração vanguardista sintonizada com o direito penal mínimo e sobretudo com o princípio do non bis in idem.

Afinal quem envelhece não é a lei, mas sim o intérprete, ao não perceber que o Direito, como bem cultural, modifica-se dia-a-dia, e a lei segue o destino do Direito!

 

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Sobre o autor
Paulo Roberto Pegoraro Junior

Doutorando em Direito pela PUC/RS. Mestre em Direito pela Unipar. Professor de Processo Civil da graduação e pós-graduação da Univel. Advogado.

Informações sobre o texto

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Mais informações

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel - UNIVEL, como requisito parcial para obtenção de grau de Bacharel em Direito, em 2003.

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