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A moderna concepção do crédito documentário nas relações de comércio internacional

Agenda 11/06/2015 às 15:28

Para diminuir os problemas ligados a incerteza e insegurança nas relações de comércio internacional, os comerciantes criaram um instrumento a que designaram cartas de crédito, ou melhor, crédito documentário.

Sumário:

1. Introdução. 2.Origem. 3. Definição. 4. Natureza jurídica. 5 Regime jurídico. 6. O funcionamento dos créditos documentários. 6.1 A formação; a carta de crédito. 6.2 O negócio base; a abstracção. 6.3 A forma. 7. A interpretação. 8. Características. 9. As responsabilidades dos bancos. 10. Conclusão. 11. Bibliografia. 12. Referencia

Introdução

No domínio das relações de comércio internacional, uma das matérias de grande importância para os contratantes é a questão da segurança e garantia de que a contraparte cumprirá o prometido. Isto porque os contratos internacionais apresentam comummente elementos que os tornam diferentes dos contratos nacionais ou locais. Em particular, o encontro de vontades entre agentes localizados em diferentes países provoca um elevado grau de incerteza entre eles, principalmente pelo desconhecimento acerca da capacidade ou disposição da parte cumprir o acordado.

É assim nos contratos internacionais, de que são paradigmáticos os contratos de compra e venda internacional, os que se celebram entre agentes comerciais internacionais sem que entre eles exista muitas vezes prévio conhecimento mútuo, o que equivale dizer um negócio celebrado entre completos estranhos situados em países diferentes, talvez até, em continentes diferentes.

Por outro lado, qualquer compra e venda internacional de mercadorias envolverá, naturalmente, o transporte das mesmas, o qual, em boa parte dos casos, se dará por meio de utilização do meio marítimo de transporte, o que gera maiores riscos como quando são utilizados meios como os transportes aéreos e terrestres. É neste sentido que tanto o comprador como o vendedor enfrentam incertezas acerca do cumprimento das obrigações pela contraparte.

Enquanto o vendedor fica a espera do pagamento do preço, o comprador não tem certeza que as mercadorias serão entregues na qualidade e quantidade, na maneira e no lugar estipulados no contrato. Tem dúvidas se a mercadoria será entregue em conformidade com o que haja pago.

Ante tanta incerteza, é evidente que o comprador não cumpriria o seu dever de pagar o preço até ter plena certeza de que o vendedor tem cumprido com as suas obrigações, nos termos acordados, o que equivale dizer, que tenha entregue a mercadoria conforme a entrega de documentos transmissores da propriedade. Por outro lado, o vendedor terá sempre incerteza acerca da capacidade de pagamento do comprador, assim como a intenção do seu cumprimento. Tão pouco terá o vendedor a certeza suficiente acerca das normas sobre o controlo das taxas de câmbios e como estes podem impedir ou prejudicar o pagamento. Nestes casos, o vendedor acaba assumindo o risco das taxas de câmbios, principalmente quando desvantajoso, o que se explica como contingência das oscilações da moeda pelas variações muitas vezes inesperadas em relação às principais moedas de referência.

Em qualquer dos casos, as partes sempre buscam um reajuste no preço do contrato como remuneração pelo risco que cada um assume.

Para diminuir os problemas ligados a incerteza e insegurança a que nos referimos, os comerciantes criaram um instrumento a que designaram cartas de crédito, ou melhor, crédito documentário. A carta de crédito[1] é o instrumento que formaliza o acordo em virtude do qual um banco, actuando a pedido do comprador (importador) e em conformidade com as suas instruções, se compromete a efectuar o pagamento a um vendedor (exportador), contra a apresentação de uma série de documentos exigidos pelo comprador dentro de dos limites especificados no instrumento, sempre e quando se tenham de cumprir os termos e condições previstos no crédito.

A principal vantagem das cartas de crédito é que conferem a ambas as partes um elevado grau de segurança de que as condições estipuladas no contrato serão por cada uma cumpridas, já que permitem ao comprador (importador) a certeza de que a mercadoria lhe será entregue conforme o estatuído no contrato, além de obter financiamento por banda da sua instituição bancária. Por outro lado, o vendedor (exportador) pode garantir o seu pagamento uma vez cumpridas todas as obrigações que adquiriu em virtude do contrato de compra e venda.

O pagamento se efectua contra a entrega e satisfação dos documentos que atestam a mercadoria (conhecimento de embarque) e, por conseguinte, que permitem a transmissão de direitos sobre as ditas mercadorias. Uma questão que amiúde se coloca é a responsabilidade do banco caso a mercadoria documentada não corresponda a real. Neste caso, qual é a responsabilidade do banco?

É sobre esta matéria que nos vamos debruçar no presente trabalho que tem por objecto “Os Créditos Documentários”.

Com esta apresentação pretendemos contribuir para uma melhor compreensão e conhecimento da realidade da figura dos créditos documentários, principalmente no que toca ao mercado moçambicano, onde é uma figura de relativo desconhecimento; pretendemos, ainda, acrescentar valor, porque é um tema pouco explorado e cuja abordagem nos cursos superiores é insuficiente; finalmente, serve para adquirir competências para, em termos de actuação profissional, estar melhor preparado para desenvolver trabalhos em actividades que envolvam a figura.

A dissertação encontra-se estruturada em dez capítulos. Como ponto de partida o primeiro capítulo apresenta um breve resumo histórico do crédito documentário, por forma a se perceberem as origens da figura e a influência que as práticas comerciais do séc. XVIII na Europa tiveram para a sua afirmação e consolidação. A seguir proceder-se-á a sua conceptualização, com enfoque no que é discutido na doutrina brasileira e portuguesa. No capítulo seguinte abordar-se a natureza jurídica do instituto sendo que diversos tratadistas enveredam por tentativas de inserção desta figura, tendo em consideração os diversos tipos de contrato civis (mandato, fiança, cessão de créditos, etc.). No capítulo a seguir, abordar-se-á o regime jurídico que serve de base para os créditos documentários. No capítulo seguinte falar-se-á da formação deste tipo contratual para a seguir abordar os critérios para a sua interpretação. Depois, perscrutar-se-ão as características, com enfoque para a literalidade e abstracção. Por fim, as consequências jurídico-económicas decorrentes das responsabilidades dos bancos.

O trabalho encerra com as conclusões finais nas quais são apresentados pontos conclusivos seguidos da estimulação à conclusão dos estudos e as consequências atribuídas às partes.

Quanto ao método utilizado, o trabalho segue uma metodologia expositiva apresentada de modo contínuo.

As dificuldades em elaborar o trabalho foram essencialmente de ordem bibliográfica. Na falta de acervo bibliográfico disponível, não houve variação significativa dos autores para consulta.

                

2. Origem

Foram os mercadores londrinos, no início do séc. XVIII, que criaram e utilizaram o crédito documentário pela primeira vez. Afigurava-se, no campo comercial, a necessidade de contar com um instrumento que desse segurança às partes acerca do cumprimento do negociado.

Conforme relata Carlos Gilberto Villegas[2], “No início os bancos se abstiveram de intervir nessas práticas, ainda que, nalguns casos, negociassem o desconto das letras aceites e avalizadas pelos grandes comerciantes londrinos. Porém, em pouco tempo, quiseram passar eles a servir como mediadores com os correspondentes benefícios lucrativos, visto que só eles reuniam melhores condições para desempenhar essas actividades, nomeadamente rede de balcões próprios, correspondentes em diversos países, etc. assim se consolidou o crédito documentário como operação típica bancária”.

Com o desenvolvimento, a libra esterlina passou a funcionar como meio internacional de pagamento, sendo o crédito documentário uma forma, por excelência, de pagamentos internacionais. Tratava-se de uma operação assente nos usos e, depois, nas cláusulas contratuais dos bancos. Todavia, ela implicava, por vezes, a necessidade de intervenção de bancos locais (nominated banks) os quais podiam assumir diversos papéis. Esta dimensão, ligada à internacionalidade das várias situações, forçaria a subsequente evolução uniformizadora.

3. Definição

Menezes Cordeiro[3] define crédito documentário como a situação jurídica pela qual um banqueiro se compromete, perante um seu cliente, a pagar uma certa quantia a um terceiro mediante a entrega, por este, de determinados documentos.

Esta definição vai de encontra com o expendido na doutrina brasileira por Nelson Abrão[4] segundo o qual podemos conceituar este instituto como sendo: “a operação pela qual o banco de acordo com instruções do comprador de uma mercadoria, se compromete a pagar, por este, ao terceiro vendedor, contra a entrega dos documentos, o respectivo preço”.

Destas definições fica evidenciado que o crédito documentário traduz-se num acordo pelo qual o banco (emissor), a requerimento e de acordo com as instruções de seu cliente (ordenante) se compromete a efectuar o pagamento a um terceiro (beneficiário) contra a entrega de documentos representativos dos bens transaccionados.

O crédito documentário é um contrato diferente das vendas e outras operações semelhantes, já que o banco não figura como sujeito nessa relação, mas apenas como intermediário do pagamento.

A emissão da carta de crédito marca o início da operação de crédito documentário. A realização do crédito está subordinada apenas às instruções presentes na carta. São essas instruções que determinam a natureza, o modo e o lugar da sua realização, a duração, o montante e os documentos exigidos ao beneficiário. Com o pedido de abertura de crédito são fixadas as modalidades técnicas. Também no pedido de abertura estão presentes os direitos e obrigações das partes, ou seja, as condições para que o beneficiário exija o pagamento e para que o banqueiro se desobrigue de pagar.

Ainda segundo Menezes Cordeiro, o crédito documentário pode encobrir operações distintas: razão pela qual, designadamente, na prática internacional e na doutrina italiana, ele aparece, muitas vezes, no plural: “créditos documentários”. Ainda no plano terminológico, fala-se, também, em “abertura de crédito documentário” ou em “crédito confirmado”. Na língua inglesa, consagrada pelos usos no comércio internacional, utilizam-se as expressões documentary credits e standby letters of credit. No Direito alemão, a expressão mais frequente é Dokumentenakkreditiv.

4. Natureza jurídica

A determinação da natureza de crédito documentário levanta dificuldades, especialmente no Direito francês e no Direito alemão. No primeiro, o problema põe-se pela inexistência da figura do contrato a favor de terceiro; no segundo, pela presença, no BGB, do contrato de delegação (Anweisung), previsto no § 783 do BGB: contrato pelo qual uma pessoa habilita outra, por documento, a prestar a outrem dinheiro, títulos de crédito ou outras coisas fungíveis, e cujas regras aqui poderiam ter aplicação.

De facto, o crédito documentário deve ser construído em termos triangulares: temos uma relação de base, também dita negócio-base, entre o mandante e o beneficiário e, depois, uma relação de atribuição entre o mandante, o banqueiro e o beneficiário.

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O contrato de crédito documentário assemelha-se a diversos outros tipos de contrato, como o mandato, o contrato a favor de terceiro, a fiança, a cessão de créditos, etc[5]. Ainda assim, apesar de todas as teorias apresentadas, não foi possível encontrar uma boa explicação, sobre a natureza jurídica deste contrato.

Isso ocorre pois não existe apenas pluralidade de partes nesse contrato, há uma coligação de contratos que, por terem uma mesma finalidade, actuam um como causa do outro, apesar de cada qual ter uma causa específica.            Os contratos que compõem o crédito documentário estão reciprocamente condicionados na sua existência, pela unidade económica, sendo um a causa do outro, embora autónomos.

Várias são as consequências jurídicas causadas por esse tipo de contrato. A causa primeira do crédito documentário é a compra e venda, com o facto de que o pagamento do preço terá que ser feito por intervenção do banco, para facilitar e garantir o compromisso estabelecido contratualmente.

As relações que surgem entre o comprador (ordenante) e o banco emissor são baseadas num contrato de prestação de serviços, o que dá a ideia de haver abertura de crédito em favor de terceiro ou um depósito pecuniário. O banco figura como mandatário do ordenante (comprador), como ocorre no contrato de conta corrente. A confirmação do crédito faz nascer uma relação entre o banco e o vendedor; o primeiro se obriga em relação ao segundo (beneficiário) a pagar o preço da compra e venda, já que o notificou por meio da carta de crédito. Há um mandato sem representação, pois emitido um aviso de confirmação, “fica o banco obrigado frente ao beneficiário em seu nome, não podendo se livrar da obrigação, mesmo quando o contrato de abertura de crédito é anulado ou o depósito é reavido pelo cliente”.

Havendo intervenção de mais de um banco, desaparece a relação triangular e forma-se uma quadrilateralidade, surgindo, entre o banco emissor e o outro banco, relações semelhantes às que existem entre este e o ordenante do crédito: mandato sem representação.

Tem malogrado qualquer tentativa de subsumir o crédito documentário num único dos contratos tradicionais já conhecidos do direito civil[6]. Está comprovado que as instituições clássicas do direito não suportam as relações contratuais do mundo contemporâneo, daí que tenham que dar espaço às novas instituições, como o leasing ou o crédito documentário, que vão surgindo como produto de uma intensa movimentação económica.

O crédito documentário afigura-se assim como uma instituição jurídica nova que agregando figuras contratuais autónomas e voltadas para o mesmo fim permite que nele se descubra um contrato de prestação de serviços, assente na abertura de crédito ou depósito ao mesmo tempo que nele encontramos um contrato de compra e venda com pacto de pagamento contra apresentação de documentos e ainda uma relação de mandato sem representação entre o banco emissor e o beneficiário vendedor, e entre o banco emissor e seu pagador.

Não se pode, pois, reduzir o crédito documentário a um único instituto civil[7]. Trata-se de um instituto novo, de natureza jurídica suis generis, produto de um fenómeno económico particular que consiste no pagamento de uma obrigação e na entrega de um bem material representado por documentos específicos, que tem como objectivo diminuir os riscos e outorgar segurança às partes envolvidas, as quais se encontram em espaços distantes com sistemas jurídicos diferentes.

5. Regime jurídico

O crédito documentário não se subordina às normas legais, mas às regras consuetudinárias que, através dos tempos, se firmaram na prática bancária internacional, tendo sido sistematizadas através das Regras e Usos Uniformes relativos a Créditos Documentários (RUU) aprovadas pela Câmara de Comércio Internacional (CCI), actualmente constantes da Publicação 600 (UCP 600).

As Regras e Usos Uniformes relativos a Créditos Documentários não têm força de lei, sendo usadas somente como diretrizes dos bancos para a regulação do crédito, e nesta medida assumem a natureza de soft law.

O recurso aos RUU, aquando da conclusão de operações de crédito documentário, é habitual. Perante isso, pergunta se qual seja a sua natureza jurídica ou, se se preferir: qual o fundamento da sua positividade. Frente a frente, três orientações:

- a do Direito contratual;

- a da normatividade sui generis;

- a do Direito consuetudinário.

As RUU são apontadas por Menezes Cordeiro como Direito contratual[8]. Esta orientação fez todo o sentido. Na prática, porém, veio a entender se que as RUU eram aplicáveis mesmo na ausência de explícitas convenções das partes que, para eles, remetessem.

A revisão de 2007, retomando versões anteriores, acaba por ser ambígua: o seu artigo 1.° começa por dispor que as RUU se aplicam a todo o crédito documentário “quando o texto do crédito indique expressamente que ele está submetido a tais regras”. Mas acrescenta: “Elas vinculam as partes em tudo o que não seja expressamente modificado ou excluído pelo crédito”.  Poder-se-ia, por aqui, admitir uma presunção de tácito acolhimento das RUU.

O facto da vigência das RUU permite apresentá-las como lex mercatoria, como ordenamento sui generis ou como expressão de um ordenamento fáctico. Não vemos, porém, como apurar, por esta via, um fundamento de positividade. Vamos mesmo mais longe: as RUU são demasiado claras e precisas para se perderem com semelhantes e imprecisas reconduções.

Para Menezes Cordeiro, a opinio necessitatis permitiria reconduzir as RUU a Direito consuetudinário. É certo que estas têm sido regularmente revistos por instâncias centrais: a própria CCI. Todavia, a CCI não age como entidade reformadora, antes se limitando a formalizar o que resulta da prática corrente.

A opção pelo Direito consuetudinário ou por “usos do comércio”, nos países que os reconheçam resolve o problema. Entre nós, todavia, falta-nos quer uma remissão legal, quer uma tradição consistente de remissão para Direito consuetudinário. No entanto, assente no artigo 3.º, n.º 1 do C. Civil, nos valores de usos parece ser de se admitir as RUU como usos mercantis.

Os bancos nacionais, nas suas práticas relativas ao crédito documentário, remetem invariavelmente para as RUU. Estas são, pois, acolhidas aquando da contratação. Isso faz delas, tecnicamente, cláusulas contratuais gerais.

O crédito documentário rege-se, hoje em dia e no essencial, pelas RUU Relativas aos Créditos Documentários, revisão de 2007, adoptadas pela CCI. As RUU são hoje complementadas por um suplemento relativo à Apresentação Electrónica (as RUUe). As RUU operam como cláusulas contratuais gerais, para as quais remetem os concretos contratos de crédito documentário.

Nos termos gerais, as cláusulas específicas aprovadas pelas partes prevalecem sobre as RUU (artigo 1.°, in fine, das RUU e artigo 7.° da LCCG). O crédito documentário rege-se por um contrato concluído entre o cliente do banqueiro (ordenante ou mandante) e o banqueiro (o emitente ou emissor). Poderemos falar, a tal propósito, em contrato de emissão de crédito documentário ou contrato de emissão. Este contrato estabelece um direito a favor do beneficiário. Tecnicamente terá fortes elementos de um contrato a favor de terceiro (443.° e seguintes do C. Civil), embora algumas das regras legais relativas a esse instituto não tenham, aqui, aplicação.

6. O funcionamento dos créditos documentários

6.1 A formação; a carta de crédito

Na formação do contrato de emissão, há que observar as regras gerais atinentes à contratação bancária. Em especial, devemos ter em conta o sensível dever de aconselhamento que caiba ao banqueiro. Segundo Menezes Cordeiro, um crédito documentário passa, muitas vezes, pela indicação de um banqueiro estrangeiro que, no terreno, irá executar o crédito aberto. A indicação, pela natureza das coisas, será dada pelo banco emitente. Além disso, colocar-se-ão múltiplos esclarecimentos atinentes à execução do que tenha sido assumido.

Do contrato de emissão resulta a carta de crédito: um documento do qual constam os direitos do beneficiário e todos os demais condicionalismos que rodeiem o crédito documentário em jogo. A carta de crédito assume uma estrutura epistolar: todavia, ela é um contrato e não um negócio unilateral.

6.2 O negócio base; a abstracção

Subjacente ao contrato de emissão de crédito documentário está, em regra, um contrato entre o ordenante e o beneficiário. Trata se do denominado negócio base. Tal negócio é, muitas vezes, uma compra e venda: o crédito documentário será, nessa eventualidade, uma forma de pagamento do preço. Mas outras hipóteses são configuráveis, com relevo para o puro e simples pagamento de dívidas anteriores, implícita ou explicitamente reconhecidas.

O crédito documentário é totalmente independente do negócio base (artigo 4, alínea a) das RUU/2007).

Um crédito é, pela sua natureza, um negócio distinto da venda ou de outro contrato no qual se possa basear. Os bancos não ficam, de modo algum, afectados ou vinculados por tal contrato, mesmo quando qualquer referência ou equivalência a ele sejam incluídas no crédito. Consequentemente, a vinculação de um banco de pagar, de negociar ou de cumprir qualquer outra obrigação referente ao crédito não fica sujeita a acções ou a defesa do ordenante resultantes do seu relacionamento com o banco emitente ou com o beneficiário.

Esta autonomia poderia ser tomada como uma manifestação de abstracção do crédito documentário: este operaria independentemente da relação que o tivesse originado.

Podemos referir a “abstracção” para documentar a independência do crédito em relação ao tal negócio de base. Mas daí não resulta que o próprio crédito seja uma obrigação abstracta, isto é: subsistente independentemente da sua fonte. Tal obrigação repousa na convenção concluída entre o mandante e o banqueiro emitente, convenção essa que, muito claramente, lhe fixa o conteúdo e os limites.

6.3 A forma

O contrato de emissão não está sujeito a qualquer forma. Em regra, porém, trata se de um instrumento escrito. Na hipótese frequente de crédito documentário com incidência internacional, o contrato ocorre em língua inglesa.

O contrato de emissão contém uma dupla promessa: em relação ao mandante e em relação ao beneficiário. Com efeito, perante um e perante o outro, o banqueiro assume a obrigação de executar o pagamento ou a negociação previstos no contrato. Além disso, ele prevê diversas comissões a favor do banqueiro: este, obviamente, desenvolve um serviço profissional pelo qual não pode deixar de ser remunerado. Distinguem se as seguintes comissões:

- uma comissão de abertura de crédito, exigível antes da notificação da carta de crédito ao beneficiário;

- uma comissão de confirmação;

- uma comissão de pagamento, no momento da execução do crédito;

- uma comissão de transferência, caso a tanto haja lugar.

Tendo o banqueiro antecipado os fundos haverá, ainda, lugar ao pagamento de juros.

Resta ainda acrescentar que o contrato de emissão de crédito documentário se inscreve, em regra, numa relação bancária complexa, constituída entre o banqueiro e o seu cliente (o mandante). Haverá que lidar com as inerentes regras, operacionais no plano das vinculações entre ambos.

7. A interpretação

 O contrato de emissão de crédito documentário dever-se-ia interpretar segundo as regras gerais dos artigos 236 e seguintes do C. Civil. Teríamos, nessa eventualidade, de validar o sentido que, às declarações em presença, emprestaria o declaratário normal, situado na posição de declaratário normal, o tudo temperado por uma imputação razoável e pela vontade real dos intervenientes, quando conhecida e aceite. Havendo dúvidas: prevaleceria a solução mais equilibrada. Todavia, o contrato de emissão de crédito bancário tem alguns traços que o levam a descolar totalmente dessa orientação. Assim:

- rege-se por regras e usos uniformes, de dimensão internacional;

- insere-se numa lógica bancária;

- produz efeitos perante terceiros.

Vamos ponderar em separado estes três aspectos. Quanto à base internacional das RUU: a doutrina tem sublinhado a inexistência de regras internacionais de interpretação. As RUU deveriam ser interpretados de acordo com as regras internas de interpretação do Estado onde o problema se pusesse. Assim é. Não vemos nenhuma base para apelar à interpretação prevista para as fontes tradicionais do direito. Ficam-nos, porém, as regras de interpretação do lex fori. Justamente: o mérito das RUU está em atingir um grau de precisão que as torne relativamente imunes às particularidades interpretativas locais.

Sucede ainda que as RUU têm a natureza de cláusulas contratuais gerais. O artigo 10.° da LCCG remete para a interpretação comum dos negócios: uma remissão que, aqui e pelas razões abaixo indicadas, temos como inaplicável. Já o princípio do artigo 11.°, relativo às cláusulas ambíguas (in dubio contra stipulatorum), tem aqui plena aplicação.

O crédito documentário é um negócio bancário.

Na banca aplica se a regra da interpretação segundo o primeiro entendimento[9]. As exigências de normalização e a prática negocial assente no comércio de massas impedem veleidades de interpretações subjectivas e impossibilita buscas de particularismos casuísticos. Fica-nos, assim, uma interpretação essencialmente objectiva, assente no primeiro sentido que resulte do instrumento em presença.

O crédito documentário, essencialmente combinado entre o ordenante e o banco emissor, vai produzir efeitos perante terceiros. E, designadamente:

- perante o beneficiário;

- perante o banqueiro intermediário, especialmente quando confirmante.

Este tipo de negócio não pode seguir as regras comuns relativas à interpretação dos negócios jurídicos: um fenómeno bem conhecido quanto ao contrato de sociedade. Também por aqui se impõe uma interpretação de tipo objectivo, mais próxima da lei. E tudo isto se aplica, mutatis mutandis, à integração de eventuais lacunas.

Em síntese: os contratos de emissão de crédito documentário devem ser interpretados em conjunto com as RUU para que remetam. É risco do banqueiro a clareza de tais regras, pelo que, na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao mandante (11.° da LCCG). Para além disso, tais contratos obtêm uma interpretação e uma integração objectivas: semelhantes às que operam perante a lei.

8. Características

Já acima vimos que no crédito documentário predomina a forma escrita. Segundo Dennis Torres[10] “as partes apenas têm como certas e verdadeiras as instruções, ordens, reformas e ampliações que constem no texto da carta de crédito e nas sucessivas comunicações que lhe sejam incorporadas, de tal maneira que não tenham validez as instruções ou ordens verbais. Assim, o banco e os demais intervenientes somente atuam segundo o expressado nos documentos”.

Esta característica encontra-se contida no artigo 5 das RUU 600, a qual assinala: “Bancos lidam com documentos e não com as mercadorias, serviços ou prestações a que eventualmente se refiram.”

Esta particularidade do crédito documentário, já se encontrava plasmada na regulamentação anterior donde se ressaltava a integridade e a precisão que devem ter, tanto as instruções para a emissão do crédito, quanto as instruções para sua modificação e a modificação mesma. Na RUU 600 estas indicações são mais esclarecidas e objectivas encontrando-se plasmadas nos artigos 9 e 10.

A formalidade, por sua parte, segundo o autor que estamos a citar, refere-se à apresentação dos documentos que acompanham a carta de crédito por parte do beneficiário, estes devem estar formalmente correctos[11]. Este tema encontra-se amplamente regulamentado nos artigos 15 e 16 da RUU 600. Em conformidade, os bancos não vão objectar sobre a validade ou autenticidade, vão somente exigir a apresentação dos documentos segundo as formalidades prescritas na legislação de interesse ou nas regras do comércio internacional.

Acontece, porém, nas transacções comerciais haver falta de coincidência entre os documentos e as estipulações contidas na carta de crédito.

No fundo é esta a questão. Há muitos problemas que podem daí advir.

As novas RUU 600, com a finalidade de agilizar e não travar as negociações, tentam resolver este inconveniente, dando um prazo ao banco para que comunique ao beneficiário os defeitos presentes no documento e este possa saná-los também dentro de um prazo razoável (antes data da expiração do crédito).

A doutrina brasileira[12] defende que “ é necessário que a notificação seja rápida. De fato todas as partes ganham quando o banqueiro notifica o beneficiário nos melhores prazos possíveis”.

Ainda assim é frequente que haja discrepâncias, sendo que a doutrina autorizada faz distinguir de um lado os defensores da estrita legalidade dos documentos ou teoria do espelho, e do outro a defesa da conformidade razoável.

Para os defensores da teoria do espelho[13] “somente podem ser aceitos os documentos que estejam conformes e guardem a mais estrita semelhança com os termos do crédito”. Os documentos têm que ser iguais àqueles requeridos no momento da abertura do crédito e regidos por um formalismo indiscutível.

Esta teoria, rígida e drástica na sua apreciação, confere grande protecção aos bancos permitindo-lhes agir rapidamente, designadamente quando observam discrepâncias entre a carta de crédito e os documentos, procedendo a rejeitar estes últimos. O tomador de crédito, por sua parte, também pode rejeitar os documentos amparado nesta teoria, prejudicando ao beneficiário para quem a segurança outorgada pelo crédito documentário desapareceria.

É claro que esta teoria não poderia imperar. A inflexibilidade e a severidade que apregoa não são compatíveis com a dinâmica comercial nos dias de hoje.

A outra teoria de interesse é a teoria da conformidade razoável.

A luz desta teoria[14] “para determinar se a entrega dos documentos cumpriu as exigências da carta de crédito, o banqueiro deve examinar o contexto transnacional da operação, para tal é necessário certa flexibilidade, no sentido de se analisar questões divergentes que se apresentem”.

É assim que “as possíveis diferenças que possam existir – sempre e quando sejam insignificantes e não alterem as posições das partes – não poderiam ser motivo para declarar inválido um documento ou deter a concretização da operação, desde que seu sentido não coloque em perigo o caráter internacional da transação nem o interesse e segurança das partes”.

A teoria da conformidade razoável encontra-se fundada no artigo 14.º, alínea d) das novas RUU.

A tolerância do waiver é outra das teorias com fundamento nas RUU. Com efeito, nos termos do artigo 16, alínea b) “ao determinar que uma apresentação não está conforme, o Banco Emitente poderá, a seu exclusivo critério, dirigir-se ao requerente solicitando que este renuncie às discrepâncias, o que todavia não dilatará o prazo mencionado na alínea “b” do artigo 14[15].

9. As responsabilidades dos bancos

Quando se fala de créditos documentários é impossível estudar esta figura isoladamente. Em regra, estão a ela conexionados muitos contratos, muitas relações jurídicas de grande complexidade e que conformam o negócio jurídico como uma unidade.

De modo geral, os bancos como quaisquer outros intervenientes nas relações comerciais têm responsabilidades. No entanto, ainda no domínio das responsabilidades há certas peculiaridades a acautelar.

Assente no artigo 34 da RUU 600: “Um banco não assume nenhuma responsabilidade pela forma, suficiência, exactidão, autenticidade, falsificação, ou efeito legal de documento algum, nem pelas condições gerais ou especificas estipuladas num documento ou nele sobrepostas; tampouco assume responsabilidade alguma pela descrição, quantidade, peso, qualidade, condição, embalagem, entrega, valor ou existência de mercadorias, serviços ou outra prestação, consubstanciados em qualquer documento, nem pela boa-fé ou acção ou omissão, solvência, desempenho ou legitimidade do consignador, transportadora, expedidor, consignatário ou seguradora das mercadorias, ou de qualquer outra pessoa”.

Há assim exclusão de responsabilidade dos bancos pelas mercadorias, documentos e seu conteúdo.

Assente no artigo 35 da RUU 600: “Um banco não assume responsabilidade alguma pelas consequências decorrentes de atraso, extravio em trânsito, mutilações ou outros erros resultantes da transmissão de quaisquer mensagens ou da entrega de correspondência ou documentos, quando as respectivas mensagens, correspondências ou documentos foram transmitidos ou enviados em conformidade com os requisitos constantes do instrumento de crédito, ou quando o banco possa ter tomado a iniciativa de escolher o serviço de entrega, na ausência das respectivas instruções no instrumento de crédito”.

O banco não assume assim responsabilidade alguma por erros na tradução ou interpretação de termos técnicos, podendo transmitir termos de crédito sem traduzi-los.

Ainda segundo Oswaldo Marzotti[16], os bancos estão excluídos de responsabilidade quanto às consequências de demora ou perdas que possam experimentar em suas transmissões de mensagens ou envio de documentos, também quanto à mutilação ou erros na transmissão das notificações, ou interpretações dos termos técnicos. Estas isenções devem ser interpretadas sempre e quando o banco tenha actuado diligentemente, por tratar-se de riscos que são típicos de suas funções.

Por fim, como refere ainda o mesmo autor, os bancos também estão excluídos de responsabilidades quando problemas se apresentam no sentido de acarretar interrupção das negociações, sejam consequências de greves, decisões de autoridades públicas, guerras, motins e demais casos de força maior. Nestes casos, o banco não honrará o pagamento se o crédito expirou durante tal interrupção; o que significa um risco para o beneficiário, decorrente do proteccionismo conferido pelas regras do crédito documentário.

No entanto, como bem diz Dennis Torres[17], se bem que as RUU exonerem ao banco de responsabilidades objectivas, esta exoneração não abrange suas responsabilidades ordinárias decorrentes da sua actuação profissional e especializada. O banco é a parte mais informada e preparada que assume uma função de protagonista nesta operação. Além disto, tem o dever de instruir as partes com a finalidade de que a operação se concretize com o maior êxito. Isto se fará de tal maneira que, qualquer erro ou omissão de sua parte que venha a causar a frustração da transacção, seria suficiente para atribuir-lhes responsabilidades.

10. Conclusão

As compra e venda internacionais são operações que na grande maioria dos casos são mais complicadas que as operações locais. Isto se deve fundamentalmente: (i) desconhecimento mútuo das partes; (ii) o tempo que a mercadoria viaja e o trajecto utilizado; (iii) o desconhecimento acerca da suficiência do transportador para transportar convenientemente as mercadorias; (iv) os percalços que podem ocorrer durante o trajecto que podem afectar o valor dessas mercadorias; (v) as formalidades aduaneiras em cada um dos países onde se devem realizar as operações relacionadas com a exportação ou importação das mercadorias; (vi) as regulações específicas sobre o comércio internacional e o controlo das taxas de câmbio; (vii) as regras existentes em matéria de saúde, segurança e padrão de qualidade; (viii) as diferenças entre os sistemas jurídicos donde provêm o comprador e o vendedor.

É tendo em conta este quadro que as transacções internacionais requerem um instrumento que proteja os interesses das partes. O comprador precisa saber que paga por uma mercadoria que será efectivamente entregue e o vendedor que receberá o pagamento da mercadoria enviada.

Na sua feição mais simples, o crédito documentário oferece ao ordenante um meio directo e fácil de pagamento, após verificação da causa da dívida. Tratando se, em especial, de uma compra e venda internacional: o comprador importador dispõe de um instrumento para pagar o preço, sem especiais riscos nem ameaças de mora ou de extravio de espécies monetárias.

O crédito documentário garante ainda, ao beneficiário, a percepção de uma determinada importância. Com efeito, o beneficiário abre mão, em regra, das mercadorias e isso a favor de um adquirente estrangeiro, muitas vezes dele desconhecido. A sua garantia residirá, então, na promissória do banco emitente, donde resulte o seu crédito documentário. Nesta dimensão, o crédito traduz uma espécie de garantia bancária autónoma.

Finalmente, o crédito documentário pode traduzir a concessão proprio sensu de crédito ao mandante ou ordenante. O banqueiro antecipa os fundos que irá conferir ao beneficiário, concedendo, por essa via, crédito ao ordenante. Nesta dimensão poderão ser acordadas garantias, condições de reembolso, cláusulas penais, juros e todos os demais aspectos que podem enformar o crédito bancário.

Resta ainda acrescentar que o contrato de emissão de crédito documentário se inscreve, em regra, numa relação bancária complexa, constituída entre o banqueiro e o seu cliente (o mandante). Haverá que lidar com as inerentes regras, operacionais no plano das vinculações entre ambos.

O princípio é que o crédito documentário é totalmente independente do negócio base (artigo 4, alínea a) das RUU/2007). Os bancos não ficam, de modo algum, afectados ou vinculados por tal contrato, mesmo quando qualquer referência ou equivalência a ele sejam incluídas no crédito. Consequentemente, a vinculação de um banco de pagar, de negociar ou de cumprir qualquer outra obrigação referente ao crédito não fica sujeita a acções ou a defesa do ordenante resultantes do seu relacionamento com o banco emitente ou com o beneficiário.

Esta autonomia poderia ser tomada como uma manifestação de abstracção do crédito documentário: este operaria independentemente da relação que o tivesse originado. Podemos referir a “abstracção” para documentar a independência do crédito em relação ao tal negócio de base. Mas daí não resulta que o próprio crédito seja uma obrigação abstracta, isto é: subsistente independentemente da sua fonte. Tal obrigação repousa na convenção concluída entre o mandante e o banqueiro emitente, convenção essa que, muito claramente, lhe fixa o conteúdo e os limites.

11. Bibliografia

BASTOS, Rodrigues, Código Civil, Almedina, Coimbra, 1996

CLIVE, Barbara et al., The Law and Practice of International Trade, Sweet & Maxwell, London, 2000

CORDEIRO, Menezes António, Manual de Direito Bancário, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006

Regras e usos uniformes (RUU) (revisão de 1993)

Regras e usos uniformes (RUU) (revisão de 2007)

REVISTA E MERCATORIA, Volumen 8, n.º 1, 2009

TORRES, Dennis José Almanza, Crédito Documentário e Segurança no Comércio Internacional, Trabalho de Dissertação para a obtenção do nível de Mestrado, Universidade Federal de Paraná, Curitiba, 2010

12. Referência


[1] Este conceito é melhor desenvolvido na Revista e Mercatoria, Volumen 8, n.º 1, 2009, pp. 2-3.

[2]In Revista e Mercatoria, Volumen 8, op. cit., p. 13

[3] In Manual de Direito Bancário, 3ª ed., 2006, p. 549.

[4]  Apud. Dennis Torres, Crédito Documentário e Segurança no Comércio Internacional, 2010, p. 32

[5] Menezes Cordeiro destaca Fernando Olavo que estudou as teses das teorias da fiança, da cessão de créditos, da assunção de dívidas, da assignação passiva, da delegação, do contrato a favor de terceiro, da promessa de aceite por acto separado, do contrato de emissão, da abertura de crédito e do mandato, propendendo ele próprio para a teoria do mandato sem representação.

[6] Neste sentido assiste razão a Aníbal Sirrielta, apud. Dennis Torres, Crédito Documentário e Segurança no Comércio Internacional, op. cit., pp. 57-58, quando dita que esses esforços são insuficientes, pois factores como a rapidez e flexibilidade das figuras mercantis, a liberdade contratual e o carácter eminentemente patrimonial desta operação, não permitem explicar o conteúdo e a dimensão desta figura dentro dos moldes clássicos mencionados.

[7] Para Menezes Cordeiro o crédito documentário tem elementos próprios e uma lógica intrínseca que lhe dão autonomia. Todavia, afigura-se possível uma recondução clarificadora e outros elementos. O primeiro ponto a reter é o de que, no crédito documentário, o banqueiro assume uma prestação de serviço. Com efeito, ele adopta duas importantes obrigações: a de verificar documentos; a de pagar certa obrigação ou de, por outra via, a satisfazer. Trata-se de um serviço prestado ao cliente e que, eventualmente, pode ser acompanhado por deveres acessórios. Esta prestação de serviço, que não se esgota em actuações jurídicas, desagua, em última análise, no regime do mandato, por via do artigo 1156.°C. Civil. Mas não se trata de um mandato simples nem, muito menos, há representação. Mau grado a designação, o crédito documentário não é, à partida, um negócio de crédito. Poderá implicar uma verdadeira concessão de crédito: mas isso já postulará um diferente negócio com o banqueiro, ao qual não se aplica o regime típico do crédito documentário. Teremos, pois, um contrato a favor de terceiro, na estrutura; e uma específica prestação de serviço bancário, na substância.

[8] Este autor cita o exemplo da França, onde declaradamente as RUU seriam aplicáveis por força do artigo 1134.° do Code Civil.

[9] Menezes Cordeiro, Direito Bancário, op. cit., pp. 159-160.

[10] Dennis Torres, Crédito Documentário e Segurança no Comércio Internacional, op. cit., pp. 67-68

[11] Para Dennis Torres, Crédito Documentário e Segurança no Comércio Internacional, op. cit., p. 68, “embora os bancos não possam objectar o conteúdo ou as características intrínsecas dos documentos apresentados pelo vendedor, podem sim fazer isso em relação à formalidade dos mesmos”. Em tal sentido, as primeiras linhas do artigo 15 do RUU assinalam: “Ao determinar que uma apresentação está conforme, o Banco Emitente deverá honrá-lo”, contrário sensu, o artigo 16 no início diz: “Ao determinar que uma apresentação não está conforme, o Banco Designado actuando sob sua respectiva designação, o banco Confirmador, se houver, ou o Banco Emitente poderão recusar-se a honrá-la ou negociá-la”.

[12] Neste sentido Luis Costa, apud. Dennis Torres, Crédito Documentário e Segurança no Comércio Internacional, op. cit., p. 88

[13] A fazer fé em Dennis Torres, aqui situa-se Kozolchyk

[14] Para mais desenvolvimento, vid. Dennis Torres, Crédito Documentário e Segurança no Comércio Internacional, op. cit., pp. 90-91

[15] Trata-se de prazo de cinco dias dentro do qual o banco deverá comunicar-se com o seu cliente a respeito das divergências encontradas nos documentos. 

[16] Para Salomão Neto, apud. Dennis Torres, Crédito Documentário e Segurança no Comércio Internacional, op. cit., p. 126, “se um banco se encarrega de instruir correspondente sobre a apresentação de documentos, sendo por isso remunerado, deve-se responsabilizar por deficiências do correspondente”.

[17] Crédito Documentário e Segurança no Comércio Internacional, op. cit., p. 111.

Sobre o autor
Carlos Pedro Mondlane

Juiz de Direito e docente universitário. Presidente do Tribunal de Polìcia da Cidade de Maputo. Presidente da União Internacional dos Juízes da CPLP. Membro do Conselho Superior da Magistratura Judicial. Formador no Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ). Pós Doutorando em Direitos Humanos, Saúde e Justiça pela Universidade de Coimbra. Doutorado em Direito Privado pela Universidade Católica de Moçambique e Universidade Nova de Lisboa. Mestrado em Direito pela Universidade Católica de Moçambique. Licenciado em Direito pela Universidade Eduardo Mondlane. Prelector e autor de livros e artigos jurídicos publicados em revistas de especialidade. Autor, entre outros, de:- Comentário da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (Coord. Pinto de Albuquerque), Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Criança, Anotada e Comentada- Código de Processo Civil, Anotado e Comentado- Colectânea dos 15 Anos da Lei de Terras: Venda de Terra em Moçambique: Mito ou Realidade?- Manual Prático dos Direitos Humanos - Constituição de Moçambique Anotada (no prelo)

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