1 - RESUMO
A maioridade penal é um tema polêmico e recorrente no Brasil. Com base também na discussão mundial acerca do assunto, são envolvidos âmbitos variados como o social, político e jurídico. A questão principal é: com que idade, afinal, um ser humano em suas condições normais pode ser considerado apto a distinguir o certo do errado? Existe esse marco certo, preciso? A partir de que idade um atual jovem pode ser punido penalmente como adulto por sua ilicitude?
No Brasil, foi criada, em 1993, uma proposta que fala sobre a redução da maioridade penal – que somente foi aprovada na terça-feira do dia 31 de março de 2015. A PEC ganhará uma comissão especial para analisá-la. Se, depois de votada duas vezes no Plenário da Câmara, passar pelo Senado (também em dois turnos), o projeto poderá virar lei.
A discussão acerca do assunto contém dois lados. Argumentando que essa redução poderia agravar a criminalidade e acarretar outras más consequências, está a parte da sociedade brasileira contra a realização da atual proposta. Em contrapartida está a outra parte, ganhando mais força e clamor quando os crimes “dos menores” são divulgados pela imprensa, argumentando que os mais jovens têm sim capacidade de serem imputáveis.
O debate para saber qual seria a idade certa para separar a linha tênue que existe entre a consciência do ilícito e do lícito é crescente. Trata-se de uma polêmica enfatizada não só pela sociedade em si, mas também pelos meios de comunicação de um modo geral. Este assunto é abordado em todas as situações possíveis com um único enfoque: o Brasil deveria ou não deveria reduzir a maioridade penal? Para responder este questionamento, não basta apenas a opinião de cada um. Apesar de a mesma ser importante (afinal, vivemos em uma democracia), é necessário estudar e explorar as causas que levaram o país até esse estado alarmante que hoje se encontra e os efeitos posteriores que uma decisão de tamanha importância acarretaria.
O presente trabalho tem como objetivo não só a exploração de argumentos sobre o assunto, mas também a comparação entre países acerca do mesmo e, finalmente, a opinião crítica da autora sobre o que isso diz respeito.
2 - INTRODUÇÃO
O sistema jurídico brasileiro determina que maior de idade são as pessoas com 18 anos de vida em diante¹. É redundante falar que, levando em consideração tão somente a idade do agente, o critério adotado para essa determinação foi o critério biológico. No entanto, grande parte da sociedade brasileira se encontra questionando esse parâmetro e exigindo mudança na legislação. Contudo, é necessário um estudo primeiramente histórico sobre o assunto para poder levá-lo em discussão.
Não só nos dias de hoje, mas desde antigamente, os direitos dos adolescentes e das crianças são discutidos no Brasil. É um fato dizer que este assunto sempre foi objeto de estudo e indagação entre os cidadãos, os políticos e mesmo os doutrinadores.
2.1 – RESUMO SOBRE A TRAJETÓRIA JURÍDICA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL
Em 1808, ainda na época de D. João VI, iniciou-se um período (o qual vigorou até o Código Criminal de 1830) que ficou conhecido como Ordenações Filipinas. Este tempo caracterizou-se por não apresentar grandes diferenças entre jovens e adultos quando o assunto se tratava de responsabilidade criminal.
Foi determinado que a infância terminava aos 7 anos de idade; depois disso, já se iniciava a vida adulta sem espaço de tempo de transição². No entanto, existiam alguns atenuantes de pena para o menor de 17 anos. Entre os 17 e os 21, o jovem adulto tinha a possibilidade de condenação à morte. Já o maior de 21 anos, como tinha plena consciência sobre todos os delitos, era plenamente imputável – ganhando, com certeza, a pena de morte para os delitos mais graves³.
Sucessivamente, em 1830, surgiu o “Código Criminal do Império do Brasil” – conhecido não só por ter sido o primeiro código penal do país, mas também por fixar, de acordo com seu artigo 10, a imputabilidade penal plena para os maiores de 14 anos.
Mesmo sendo períodos caracterizados por evidenciar uma imputabilidade severa sem muitas diferenciações, é possível notar a preocupação em corrigir os menores infratores. É surpreendente este raciocínio uma vez que, naquela época, ainda não havia a discussão sobre a importância de a educação sobrepor-se à punição5.
Nos anos seguintes, com a Proclamação da República em 1889, as elites sociais, filantrópicas e intelectuais começaram a debater a questão da criança e do adolescente. Constatou-se certa urgência em corrigir e/ou educar os menores para que futuramente se tornassem cidadãos corretos e produtivos para o Estado.
Foi durante esta década que a sociedade começou a deparar-se com oscilações de pensamentos no que diz respeito à defesa e preocupação com a criança. No século XX, o movimento internacional pelos direitos da criança e do adolescente reivindicou o seu reconhecimento da condição distinta de adulto6.
Os Tribunais de Menores foram sendo criados, respectivamente, pelo Estados Unidos (1899), Inglaterra (1905), Alemanha (1908), Portugal e Hungria (1911), França (1912), Argentina (1921), Japão (1922), Brasil (1923), Espanha (1924), México (1927) e Chile (1928)7.
Como reflexos dos debates da época sobre esses direitos e responsabilidades da criança, surgiram vários decretos tratando da proteção à infância. Vale-se destacar, no Brasil, o Decreto Lei nº 17.943-A, de 1927. Por este estatuto, foi criado o primeiro Código de Menores do Brasil, conhecido como Código de Mello Mattos8. Este código refletiu uma profunda feição protecionista, consagrando a aliança entre Justiça e Assistência. As normas do mesmo estabeleceram que o menor abandonado ou delinquente, com idade inferior a 18 anos, ficaria sujeito aos regramentos ali previstos, exonerando os menores de 14 anos a qualquer processo penal – sujeitando os maiores de 14 e menores de 18 à processo especial9.
Na época do Estado Novo, houve o Decreto Lei nº 2.848/40 – que criou o Código Penal de 1940, estabelecendo, por fim, a maioridade penal equivalente à 18 anos de idade10.
O legislador compreendeu que, o menor de 18 não tinha discernimento para avaliar o caráter total ilícito de seus atos. Os menores de 18 eram submetidos a procedimentos e normas previstas em legislação específica.
Em 1964, com a ditadura militar instaurada no Brasil, o progresso democrático foi interrompido por 20 anos. Durante este período foi aprovada a Lei nº 4.513/64. Esta lei criou a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor). A FUNABEM herdou do SAM não só o prédio e o pessoal, mas também toda a cultura organizacional. A Fundação tinha como objetivo a assistência a infância, cujo modo de ação tinha a internação tanto dos abandonados como dos delinquentes11.
Em 1979, ainda na época da ditadura militar, se instaura uma nova doutrina com a Lei nº 6.697. Esta lei estabeleceu o novo Código de Menores que se tratava de uma revisão do antigo Código. Essas novas normas consagraram a Doutrina da Situação Irregular, que se caracteriza por não fazer distinção ou separação entre o menor abandonado e o menor delinquente, pois abriga a ideia de que, na condição de menor em situação irregular, enquadram-se tanto os infratores quanto os carentes12.
Sobre este princípio, SOARES (2005) elencou algumas características:
1. As crianças e os adolescentes são considerados “incapazes”, objetos de proteção, da tutela do Estado e não sujeitos de direitos;
2. Estabelece-se uma nítida distinção entre crianças e os adolescentes das classes ricas e os que se encontram em situação considerada “irregular”, “em perigo moral ou material”;
3. Aparece a ideia de proteção da lei aos menores, vistos como “incapazes”, sendo que no mais das vezes esta proteção viola direitos;
4. O menor é considerado incapaz, por isso sua opinião é irrelevante;
5. O juiz de menores deve ocupar-se não só das questões jurisdicionais, mas também de questões relacionadas à falta de políticas públicas. Há uma centralização do atendimento;
6. Não se distinguem entre infratores e pessoas necessitadas de proteção, surgindo a categoria de “menor abandonado e delinquente juvenil”.
7. As crianças e os adolescentes são privados de sua liberdade no sistema da FEBEM, por tempo indeterminado, sem nenhuma garantia processual13.
Em 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil elevou à condição de princípio constitucional a imputabilidade penal a partir dos 18 anos de idade14. Este ano significou uma grande mudança social e política no Brasil, ao passo que as crianças e os adolescentes passaram a ser tratados como sujeitos de direitos e não só como objetos de normas.
Na Constituição de 1988, ainda encontramos mais artigos falando sobre o mesmo assunto. Um exemplo disso é o artigo 227:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Alterado pela EC-000.065-2010)
A partir da nova Constituição do Brasil e seus artigos, que falam a respeito do assunto, reconhece-se que os direitos fundamentais da criança e do adolescente têm prioridade absoluta. Ou seja, a proteção dos mesmos sobrepõe-se a qualquer outra medida – passando a ser uma questão de responsabilidade mútua da família, da sociedade e, sobretudo, do Estado.
3 - DESENVOLVIMENTO
Como foi dito anteriormente, a imputabilidade penal não foi fixada aos 18 anos por mero acaso. O legislador, fundado e baseado no critério biológico e na psicologia, entendeu que o jovem “menor” não tem sua personalidade totalmente formada. No entanto, é preciso admitir que, com a evolução da sociedade e tecnologia, o menor de idade não pode mais ser visto como alguém imaturo ou insciente.
Tendo como gancho esse argumento, pode-se até mesmo considerar a redução da maioridade penal. Ou seja, “a sociedade mudou, a lei também precisa mudar”15. Mas, se de um lado pode-se argumentar por esse pensamento e por um clamor social devido aos crimes enfatizados pela mídia, por outro, existem argumentos jurídicos, históricos e humanos para defender a manutenção da maioridade penal.
É preciso ter em mente que, por mais desenvolvido um jovem de 16 anos seja, para o mundo penal, ele é realmente uma criança. E deve ser tratado como uma. Ao contrário do que a maior parte da sociedade acredita, na maioria das vezes, esses jovens são lançados na criminalidade devido a uma necessidade pessoal ou mesmo familiar. É função do Estado dar-lhes educação de qualidade, ensinar-lhes um ofício e, eventualmente, até mesmo reaproximá-los da família em certos casos – tudo para que possam retornar à sociedade de forma evoluída e mais sociável.
Se, ao contrário do que está previsto na lei, os jovens realmente entrarem na prisão mais cedo, sairão pior. O grande problema não está na maioridade penal estabelecida e sim nas punições ineficazes que a eles são aplicadas. O ECA se mostra ineficaz – apresentando carência de um sistema de educação adequado. O Estado transparece ser omisso em diversas questões que dizem respeito à criança e ao adolescente.
As leis já existem. O ECA prevê seis medidas educativas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação16. O que acontece, na verdade, é que muitos adolescentes que ficam “presos”, não ficam em instituições preparadas para a sua reeducação (como o próprio ECA prevê), o que reproduz um ambiente de uma prisão comum.
Enquanto o Estado não cumprir com a sua parte, a redução da maioridade penal será apenas mais uma estratégia de "marketing criminal". Sem a efetiva atuação do Estado na base do problema, ou seja, na melhoria da educação, o assunto não vai ser resolvido.
4 - FATOS CONTRA A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
O clamor social pela redução dessa maioridade está fundado em casos isolados e não em dados estatísticos. Segundo a Secretaria Nacional de Segurança Pública, jovens entre 16 e 18 anos são responsáveis por menos de 0,9% dos crimes praticados no país. Se forem considerados os homicídios e tentativas de homicídio, esse número cai para 0,5%.18 No Brasil, são 13 homicídios para cada 100 mil crianças e adolescentes; de 50 a 150 vezes maior que países como Inglaterra, Portugal, Espanha, Irlanda, Itália, Egito cujas taxas mal chegam a 0,2 homicídios para a mesma quantidade de crianças e adolescentes19.
As causas da violência e da desigualdade social não se resolverão com a adoção de leis penais severas. O processo exige que sejam tomadas medidas capazes de romper com a banalização da violência e seu ciclo. Ações no campo da educação, por exemplo, demonstram-se positivas na diminuição da vulnerabilidade de centenas de adolescentes ao crime e à violência20.
O Brasil não aplica as políticas necessárias para garantir o pleno exercício do direito da criança e do adolescente. Isso reflete no aumento do índice de criminalidade da juventude. O jovem marginalizado não surge ao acaso. Ele é fruto de um estado de injustiça social que gera e agrava a sua pobreza. A marginalidade torna-se uma prática moldada pelas condições sociais e históricas em que a sociedade vive. O adolescente em conflito com a lei é considerado um ‘sintoma’ social. Sendo utilizada como uma forma de eximir a responsabilidade da sociedade para com esses jovens, a proposta da redução é uma transferência de problema. Subentende-se que, para o Estado, é mais cômodo punir que educar.
A redução é inconstitucional. Vai contra os princípios adotados pela Constituição Federal e afronta acordos internacionais. Vai de frente com a Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Declaração Internacional dos Direitos da Criança compromissos assinados pelo Brasil.
Importantes órgãos têm apontado que a PEC em questão não é uma boa solução. O UNICEF expressa sua posição contrária à redução da idade penal, assim como à qualquer alteração desta natureza. Acredita que ela representa um enorme retrocesso no atual estágio de defesa, promoção e garantia dos direitos da criança e do adolescente no Brasil. A Organização dos Estados Americanos (OEA) comprovou que há mais jovens vítimas da criminalidade do que agentes dela. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) defende o debate ampliado para que o Brasil não conduza mudanças em sua legislação sob o impacto dos acontecimentos e das emoções. O CRP (Conselho Regional de Psicologia) lança a campanha Dez Razões da Psicologia contra a Redução da idade penal CNBB, OAB, Fundação Abrinq lamentam publicamente a redução da maioridade penal no país21.
O sistema prisional brasileiro não suporta mais pessoas. O Brasil tem a 3ª maior população carcerária do mundo (só perdendo para os EUA e a China) e um sistema prisional superlotado com mais de 715.655 mil presos22. Além disso, não há dados que comprovem que a redução da maioridade penal abata as altas taxas de criminalidade do país. Na verdade, estudos mostram que acontecerá exatamente o oposto, uma vez que o índice de reincidência é de 70% e os dos sistemas sócio educativos estão abaixo de 20%.
Reduzir a maioridade penal não irá reduzir a bestialidade. Em comparação, podemos citar o exemplo dos Estados Unidos. Dados da UNICEF revelam que os jovens deste país, que cumpriram pena em penitenciárias, voltaram a delinquir de forma mais violenta. O resultado concreto para a sociedade foi o agravamento da violência. Vale salientar mais uma vez que os Estados Unidos tem o sistema prisional mais lotado de todo o mundo, com mais de dois milhões de presos. Em somatória a este ponto, está o fato que todos os países que reduziram a maioridade penal não diminuíram a violência. A Espanha e a Alemanha voltaram atrás na decisão de criminalizar menores de 18 anos. Hoje, 70% dos países estabelecem 18 anos como idade penal mínima23.
Tomando 55 países de pesquisa da ONU, na média os jovens representam 11,6% do total de infratores, enquanto no Brasil está em torno de 10%. Portanto, o país está dentro dos padrões internacionais e abaixo mesmo do que se deveria esperar. No Japão, eles representam 42,6% e ainda assim a idade penal no país é de 20 anos. Se o Brasil chama a atenção por algum motivo é pela enorme proporção de jovens vítimas de crimes e não pela de infratores24.
5- CONCLUSÃO
Existem mais uma série de fatos e argumentos contra a redução da maioridade penal – assim como também existem argumentos sendo a favor dessa proposta. No entanto, fica evidente que o fato de reduzir pura e simplesmente a idade penal não resolveria o problema da criminalidade em si – apenas aumentaria à problemática. Ao mesmo passo que, reduzindo a idade penal, de uma forma geral, seriam recrutadas crianças e adolescentes ainda mais novos para o mundo do crime.
Para que se resolvam os problemas dos crimes praticados por menores, é necessária toda uma mudança social na forma como a sociedade trata esses jovens, assim como também na forma que o próprio Estado manuseia e leva a sério seus direitos e obrigações – dando-lhes oportunidades de preparação para o seu ingresso na sociedade e na sua ressocialização. É dever da família e do Estado a atenção e ajuda necessária no processo de formação de seu caráter.
Temos urgência em corrigir e educar nossos jovens para que se tornem cidadãos produtivos e dignos em nosso Estado. Se, primeiramente, o papel da sociedade e do Estado fosse cumprido corretamente desde os primórdios, não existiria tal discussão hoje sobre esta redução. O problema não está diretamente nos jovens, e sim no mundo que lhes cerca.