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A excepcionalidade da internação na medida de segurança

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Agenda 09/11/2015 às 12:02

A modalidade internação na medida de segurança é medida excepcional e deve durar apenas o tempo de crise em surto psiquiátrico. Ainda, a internação deve ser realizada em locais de saúde adequados.

1.INTRODUÇÃO

O denominado louco infrator, em que pese ser isento de culpa, deve cumprir medida de segurança imposta na modalidade internação ou tratamento ambulatorial.

A prática jurídica, diante da atuação na Defensoria Pública de Execuções Penais de Ribeirão das Neves em Minas Gerais, demonstra que a modalidade internação, muitas vezes, é aplicada como medida prioritária, com base no tipo de prisão descrita no tipo penal (reclusão ou detenção), sem qualquer tentativa anterior de tratamento extra-hospitalar, e sem oitiva de grupo psicossocial.

A Lei n. 10.216 de 2001 derrogou em parte o Código Penal e a Lei de Execução Penal. A modalidade de medida de segurança não deve mais se pautar pelo tipo de pena descrito no tipo penal, mas pela indicação do médico e equipe psicossocial, que devem apresentar pareceres e laudos antes de qualquer decisão judicial.

A internação deve ser medida utilizada apenas de forma excepcional e subsidiária em casos de surto. Ainda, a internação deve ser realizada em hospitais gerais do Sistema Único de Saúde.

A realidade, no entanto, demonstra dezenas de pacientes cumprindo medida de segurança, na modalidade internação, em hospitais de custódia ou em unidades prisionais sem atendimento médico adequado, em celas superlotadas, junto a demais pessoas privadas de liberdade, colocando em risco a sua saúde e a saúde da coletividade.

A manutenção de pessoas com transtorno mental em unidades prisionais, além de ilegal, configura ato de tortura, retrocesso social e violação da dignidade da pessoa humana, pois o paciente passa a ser coisificado e isolado da sociedade.

A pessoa com transtorno mental é um sujeito de direitos. Seu direito ao tratamento e sua consideração como pessoa com dignidade, não são privados em razão da medida de segurança. O único fator de diferenciação entre uma pessoa com transtorno mental e um louco infrator, seria a fiscalização do estado, neste último caso, nos autos de execução da medida de segurança.

Durante séculos, as pessoas portadoras de transtorno mental foram excluídas da sociedade e depositadas em locais de isolamento (FOUCAULT, 2013). Os locais de isolamento para tratamento de doenças mentais são proibidos, uma vez que o cidadão deve ser inserido na sociedade e tratado. A colocação dessas pessoas em prisões, nada mais é do que o ressurgimento dos locais de isolamento com piores condições de sobrevida.

Esse artigo pretende demonstrar que a modalidade internação na medida de segurança é medida excepcional e deve durar apenas o tempo de crise em surto psiquiátrico. Ainda, a internação deve ser realizada em locais de saúde adequados.


2. MÉTODO

O método utilizado foi de revisão de literatura e estudo de legislação e jurisprudências.

O estudo realizado em livros de Michel Foucault, como Nascimento da Clínica e História da Loucura foram importantes para demonstrar que o isolamento é medida ultrapassada e que implica em violação direta ao postulado da dignidade da pessoa humana.

Foi realizada a leitura de textos em revistas de saúde fornecidas pela própria Escola de Saúde Pública e em periódicos disponíveis em sites de pesquisa como Scientific Eletronic Library Online – SciELO, que demonstraram que a modernização da indústria farmacêutica tornou possível a modificação da forma de tratamento das pessoas com saúde mental comprometida.

Com a leitura da lei 10.216 de 2001 e dos tratados internacionais que tratam dos portadores de deficiência, foi forçoso concluir que os portadores de transtorno mental não podem ser discriminados em razão da prática ou não de ato descrito como crime. Assim, as normas insertas na lei antimanicomial são aplicadas a todas as pessoas com transtorno mental, sem distinção.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais verificada nos anos de 2014 e 2015 reforça a ideia de que a lei n. 10.216 de 2001, é aplicada a todas as pessoas com transtorno mental.


3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

3.1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS ESTRUTURAS DE ISOLAMENTO

A lepra, ao desaparecer do mundo ocidental, no final da idade média, deixa como herança as estruturas utilizadas para o isolamento, que vão servir de abrigo às pessoas portadoras de doenças venéreas, loucos e pessoas indesejadas pela sociedade (FOUCAULT 2013).

Foucault (2013, p.8), explicita o seguinte:

Fato curioso a constatar: é sob a influência do modo de internamento, tal como ele se constituiu no século XVII, que a doença venérea se isolou, numa certa medida, de seu contexto médico e se integrou, ao lado da loucura, num espaço moral de exclusão. De fato, a verdadeira herança da lepra não é aí que deve ser buscada, mas sim num fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenômeno é a loucura. Mas será necessário um longo momento de latência, quase dois séculos, para que este novo espantalho, que sucede à lepra nos medos seculares, suscite com ela reações de divisão, de exclusão, de purificação que no entanto lhe são apresentadas de uma maneira bem evidente.(g.n)

No final do século XIX, início do século XX, as inserções em estabelecimentos destinados à exclusão eram realizadas de modo aleatório, destinadas aos loucos, vadios e mendigos.

Algumas crianças e adolescentes em situação irregular, conforme denominava o código de menores de 1979, eram indesejadas pela sociedade e excluídas nesses locais de isolamento. Importante salientar que o denominado “menor” em situação irregular era apenas a criança desprovida de familiares ou apoio social (SARAIVA, 2010).

No Hospital Colônia de Barbacena, por exemplo, dentre os pacientes, existiam homossexuais, mães solteiras, mendigos, pobres, crianças, pessoas sem documentos, militantes políticos, alcoolistas, pessoas com epilepsia. Enfim, pessoas consideradas indesejadas pela sociedade (ARBEX, 2013).

Para se ter uma ideia da dimensão e violação de direitos humanos, nesse Hospital Psiquiátrico, em 1930, existiam 5 (cinco) mil pacientes, enquanto que a capacidade máxima seria para 200 (duzentas) pessoas.

O resultado da superlotação foi a propagação de doenças, falta de saneamento básico adequado, falta de lugar para dormir, fome, falta de roupas, frio, falta de assistência social, dentre outras coisas. Tais fatos levaram à morte de milhares de pessoas. Foram 60 mil mortos dentro do Hospital de Barbacena dentre as causas apontadas e/ou causas naturais (ARBEX, 2013).

Assim, os estabelecimentos herdados pela lepra serviam para manter as pessoas indesejadas longe do convívio com a sociedade. Dentre essas pessoas, os loucos, que sofriam verdadeira exclusão social.

3.2. EXTINÇÃO DOS LOCAIS DE ISOLAMENTO

Diante dos fatos apontados, surgiu um movimento social na luta pelos direitos das pessoas com sofrimento psíquico. Esse movimento visava a reforma psiquiátrica.

A lei 10.216, do ano de 2001, significou o marco da reforma psiquiátrica no Brasil. Trouxe a internação não mais como medida principal, mas medida subsidiária, somente quando não existir meios alternativos para tratamento (BRASIL, 2001).

Essa reforma psiquiátrica passa a conceber o comprometimento mental com humanidade. Introduz a noção de cidadania ao modo de se lidar com a loucura. Como cidadão, deve ser inserido na sociedade e não marginalizado.

O ponto culminante da reforma psiquiátrica foi demonstrar que a pessoa com transtorno mental deve ser vista como sujeito de direitos e não mais objeto de discussão. Como sujeito de direito, deve ser tratada e ouvida e não isolada.

Nesses termos, busca-se incessantemente a extinção dos locais de isolamento e a inserção da pessoa com transtorno mental na sociedade. Essa busca tem como reforço a evolução da medicina ética e a modernização de medicamentos eficazes como tratamento alternativo.

Aos poucos os leitos em Hospitais Psiquiátricos estão sendo extintos. A portaria do gabinete do ministro n. 52, de 20 de janeiro de 2004, do Ministério da Saúde, estabelece a redução progressiva dos leitos psiquiátricos no País.

A lei estadual de Minas Gerais, n. 11.802 de 1995, determina aos poderes públicos, estadual e municipais, o estabelecimento de planos necessários para a instalação e funcionamento de recursos alternativos aos hospitais psiquiátricos (MINAS GERAIS, 1995).

Artigo 3º, Lei 11.802/95. Os poderes públicos estadual e municipais, em seus níveis de atribuição, estabelecerão a planificação necessária para a instalação e o funcionamento de recursos alternativos aos hospitais psiquiátricos, os quais garantam a manutenção da pessoa portadora de sofrimento mental no tratamento e sua inserção na família, no trabalho e na comunidade, tais como:

I - ambulatórios;

II - serviços de emergência psiquiátrica em prontos-socorros gerais e centros de referência;

III - leitos ou unidades de internação psiquiátrica em hospitais gerais;

IV - serviços especializados em regime de hospital-dia e hospital-noite;

V - centros de referência em saúde mental;

VI - centros de convivência;

VII - lares e pensões protegidas.

§ 1º - Para os fins desta lei, entende-se como centro de referência em saúde mental a unidade regional de funcionamento permanente de atendimento ao paciente em crise. (Parágrafo renumerado pelo art. 1º da Lei nº 12684, de 1/12/1997.)

§ 2º - Ficam vedadas a instalação e a ampliação de unidade de tratamento psiquiátrico, pública ou privada, que não se enquadre na tipificação descrita neste artigo. (Parágrafo acrescentado pelo art. 1º da Lei nº 12684, de 1/12/1997.)

§ 3º - Ficam vedadas novas contratações, pelo setor público, de leitos psiquiátricos em unidade de tratamento que não se enquadre na tipificação descrita neste artigo. (Parágrafo acrescentado pelo art. 1º da Lei nº 12684, de 1/12/1997.) (destacou-se).

Gradativamente, foi implantada a psiquiatria ética que visa promover a saúde mental para cuidados a partir de novos modelos criados pela legislação, como hospital dia, internação em hospital geral, ambulatório, CAPS, NAPS, pensões e residências terapêuticas (KOGA; FURAGETO; SANTOS, 2006).

3.3. MEDIDA DE SEGURANÇA

A culpabilidade tem como elementos a imputabilidade, a possibilidade de conhecimento da antijuridicidade e a exigibilidade de conduta diversa (MIRABETE, 2008).

Segundo Julio Fabbrini Mirabete, a imputabilidade é “a condição pessoal de maturidade e sanidade mental que confere ao agente a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se segundo esse entendimento” (MIRABETE, 2008).

Para a teoria tripartida, que considera crime fato típico, ilícito e culpável, o inimputável não praticaria crime, pois seria excluída a culpabilidade, que é elemento do crime. Para a teoria bipartida, que considera crime fato típico e ilícito, o inimputável praticaria crime, pois a culpabilidade seria apenas pressuposto de aplicação da pena. Esse trabalho adota a teoria tripartida.

Conforme dispõe o artigo 26 do Código Penal:

é isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (BRASIL, 1940).

Assim, a pessoa portadora de transtorno mental, que era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, pratica um fato típico e ilícito, porém, em razão da inimputabilidade, é excluída a culpabilidade e, portanto, o crime.

O denominado “louco infrator” resta isento de pena e recebe sentença de absolvição denominada imprópria. Entretanto, a ele é aplicada medida de segurança que, embora não seja pena, é espécie de sanção penal.

Leciona Sidio Rosa de Mesquita Junior:

O doente mental, completamente incapaz de entender o caráter ilícito do fato, que praticar fato definido como crime estará sujeito à medida de segurança, a qual não é espécie de sanção, mas medida administrativa do Estado. Essa afirmação encontra amparo no CP, eis que ele autoriza a execução de efeitos civis da condenação, por meio da homologação da sentença estrangeira, mas não autoriza a execução da pena imposta no exterior. A medida de segurança imposta no exterior pode ser executada no Brasil (CP, art. 9º), isso porque a pena e a medida de segurança têm naturezas diversas. Assim, do crime decorrerá a pena, enquanto do ato definido como crime decorrerão outras medidas (medida protetiva, medida sócio-educativa; medida de segurança ou, até absolvição) que não constituem sanções decorrentes de crimes.

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O Código Penal, em seu artigo 96, prevê duas modalidades de medida de segurança: internação ou tratamento ambulatorial (BRASIL, 1940).

Art. 96. Código Penal. As medidas de segurança são:

I - Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado;

II - sujeição a tratamento ambulatorial.

Parágrafo único - Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta.

Nos termos do Código Penal, a aplicação de uma ou outra modalidade de medida de segurança depende do tipo de sanção que é previsto como punição no tipo penal praticado.

Art. 97. Código Penal. Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial.

A internação no presente caso é a denominada internação compulsória, pois determinada pela justiça.

Todos os princípios constitucionais de limitação ao poder de punir estatal são aplicados às medidas de segurança, como legalidade e humanização das sanções. A finalidade da medida de segurança é o tratamento (MIRABETE, 2007, p. 282).

3.4. LEI DA REFORMA PSIQUIÁTRICA E O LOUCO INFRATOR

A prova da inimputabilidade do acusado é fornecida pelo exame pericial (MIRABETE, 2008, p. 210).

A lei n. 10.216 de 2001 assegura direitos e proteções à pessoa acometida de transtorno mental, sem qualquer outra forma de discriminação (BRASIL, 2001).

Prescreve o artigo 1º da Lei 10.216 de 2001:

Art. 1o. Lei 10.216/01. Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra. (grifo nosso)

O Decreto n. 3.956 de 2001 promulga a convenção interamericana para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência. O artigo I, item 2, alínea “a”, da Convenção em comento, define o que seria discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência:

Artigo I, item 2, alínea “a”: o termo "discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência" significa toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas liberdades fundamentais.

No mesmo turno, a resolução 46/119 da Organização das Nações Unidas (ONU), sobre a proteção das pessoas com doenças mentais e a melhoria da assistência à saúde mental estabelece no princípio 1.4, verbis:

Resolução 46/119. ONU. Princípio 1.4. Não haverá discriminação sob alegação de transtorno mental. 'Discriminação' significa qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha o efeito de anular ou dificultar o desfrute igualitário de direitos.

O artigo 6º da Lei em referência explicita como modalidade de internação, a internação compulsória, determinada pela justiça, o que demonstra de forma patente a aplicação das normas insertas na referida legislação às medidas de segurança.

Posto isso, a Lei 10.216 de 2001 é aplicada integralmente às pessoas portadoras de transtorno mental que cumprem medida de segurança.

3.5. EXCEPCIONALIDADE DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO

Com o advento da Lei 10.216 de 2001, a internação, em qualquer de suas modalidades, deixa de ser a principal alternativa terapêutica, para ser o último recurso, somente nos casos em que outros tratamentos não se mostrarem eficazes. Além disso, a internação se limita a casos de surtos e dura até estes cessarem.

No caso excepcional de internação, esta deverá ocorrer em local que resguarde a dignidade da pessoa humana, com tratamento adequado dentro dos parâmetros legais estabelecidos.

Nesses termos, dispõe o artigo 4º e 6º da Lei 10.216 de 2001:

Artigo 4o. Lei 10.216/01. A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

§ 1º O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.

§ 2º O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.

§ 3º É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no §2º e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º (destacou-se).

Art. 6o . Lei 10.216/01. A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.

Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:

I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e

III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça. (grifo nosso).

O artigo 4º, parágrafo terceiro, já mencionado, da Lei Federal n. 10.216 de 2001, veda expressamente a internação de pacientes portadores de transtorno mental em instituições com características asilares, assim classificadas as instituições desprovidas de serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, bem como as que não assegurem os direitos estabelecidos no parágrafo único, do artigo 2º do mesmo diploma legal (BRASIL, 2001).

Artigo 2o, Lei 10.216/01. Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo.

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I – ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;

II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;

VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

A internação em Hospitais Psiquiátricos dá lugar à internação em Hospitais Gerais, da rede pública, em leitos comuns ou, ainda, em alas psiquiátricas em Hospitais Gerais (artigo 3o, da lei estadual n. 11.802/95).

Paulo Vasconcelos Jacobina sustenta que a internação apenas cronifica a pessoa (2008, p.61):

O mandato social dado ao psiquiatra, para considerá-lo como tutor universal do louco e, principalmente, como escudo protetor entre a sociedade e a loucura (e entre o louco e sua própria loucura), foi insuficiente para trazer a cura – objetivo mítico de restabelecer um padrão de normalidade capaz de eliminar a periculosidade do psicótico. O que se viu e se vê, na prática, é o agravamento da condição psicótica e a perda da possibilidade de retorno social ao louco que penetra nesse sistema. (grifo nosso)

Com isso, antes de determinar a internação compulsória, deve ser verificado no caso concreto a existência de tentativas prévias de tratamento extra-hospitalares.

Entretanto, não basta apenas laudo médico indicando a medida de internação. É necessário acompanhamento psicossocial e laudos profissionais indicando o histórico do paciente e a medida mais eficiente a ser realizada para tratamento do paciente.

3.6. LAUDO PSICOSSOCIAL

Se o tratamento em regime de internação é estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtorno mental, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicólogos, ocupacionais, de lazer e outros, nos termos do artigo 4º, da Lei n. 10.216 de 2001, é plausível que além do perito médico, o magistrado avalie parecer de toda a rede psicossocial para decidir o incidente de insanidade mental e a cessação de periculosidade (BRASIL, 2001).

Os laudos psicossociais, junto ao laudo médico, são documentos que podem orientar o juiz para a escolha do melhor tratamento a ser aplicado ao paciente com sofrimento mental. Ainda, evita a institucionalização no futuro, pois mantém o vínculo familiar existente.

Em Minas Gerais existe o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário portador de sofrimento mental – PAI-PJ, criado pela portaria conjunta n. 25 de 2001, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e Corregedoria-Geral de Justiça.

O projeto segue os princípios da Lei 10.216 de 2001 e, desde maio de 2010, o programa passou a integrar o Programa Novos Rumos do Tribunal de Justiça.

A equipe do PAI-PJ é formada por psicólogos, assistentes sociais e bacharéis em direito capacitados para fazerem parte do programa. Dentre inúmeras funções, o PAI-PJ acompanha os processos criminais e de execução penal nos quais o sentenciado é ou apresenta ser portador de transtorno mental, fornecendo subsídios técnicos para a prestação jurisdicional nas fases processuais.

Ainda, tem como atribuição discutir previamente com o perito antes da realização de laudo de insanidade mental ou laudo de cessação de periculosidade.

Nos termos do artigo 3o, da referida portaria conjunta n. 25/2001, são atribuições do PAI-PJ:

Art. 3º. Portaria Conjunta 25/2001. São atribuições do PAI-PJ:

I - promover o estudo dos autos em que foi judicialmente instaurado o Incidente de Insanidade Mental do acusado, com a finalidade de:

a) fornecer parecer interdisciplinar quanto à pertinência da realização do exame de sanidade mental;

b) realizar discussão prévia com os peritos oficiais e fornecer subsídios para a formatação do respectivo laudo;

c) acompanhar o tratamento do réu sob suspeita de sofrimento mental, até decisão do incidente instaurado.

II - promover o estudo dos autos em que foi absolvido o réu com conseqüente aplicação da medida de segurança, tanto em sua espécie de internação quanto de tratamento ambulatorial, com a finalidade de:

a) fornecer parecer interdisciplinar que individualize a condição em que se encontram os pacientes;

b) acompanhar o tratamento dos pacientes judiciários em medida de segurança, ofertando subsídios técnicos para a execução penal , nas diversas fases do tratamento;

c) promover discussão com os peritos oficiais antes da realização do exame de cessação de periculosidade, fornecendo-lhes informações quanto à evolução do tratamento”;

d) manter contato com a rede pública de assistência em saúde mental com o fim de dar tratamento aos pacientes judiciais, na forma da legislação aplicável à espécie.

Nos locais não abrangidos pelo programa, os laudos podem ser fornecidos por profissionais vinculados a rede SUS ou ainda por psicólogos e assistentes sociais de unidades prisionais que acompanhem o paciente.

3.7. DERROGAÇÃO DO CÓDIGO PENAL E LEI DE EXECUÇÃO PENAL

A lei 10.216 de 2001 derrogou a parte geral do Código Penal e a da Lei de Execuções Penais, no que tange aos loucos infratores.

O artigo 97 do Código Penal dispõe que o juiz, em regra, determinará a internação quando o fato previsto como crime for punível com reclusão. Entretanto, a Lei n. 10.216 de 2001, no artigo 4º, prevê a internação como alternativa excepcional e subsidiária, apenas quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

Assim, a escolha terapêutica não é mais realizada de acordo com a espécie de pena conferida ao crime em abstrato (detenção ou reclusão). A escolha leva em consideração exclusivamente o indivíduo portador do sofrimento mental, sua moléstia e suas necessidades.

Não há qualquer justificativa para tratamento diferenciado entre os usuários comuns do serviço de saúde mental e os loucos infratores. A lei de reforma antimanicomial é aplicada a qualquer pessoa com transtorno mental, sem discriminação.

Os loucos infratores como pacientes e usuários do sistema único de saúde, também devem ser tratados e apenas internados como medida excepcional, nos termos da Lei 10.216 de 2001. Afinal, a finalidade da medida de segurança é o tratamento.

Entretanto, muitas sentenças absolutórias, com aplicação de medida de segurança, aplicam a modalidade internação de forma prioritária a qualquer outra medida de tratamento, ferindo a norma inserta nos termos da lei 10.216 de 2001.

Em razão da Lei 10.216/2001, o paciente diagnosticado deveria ser transferido para Hospitais Gerais, ambulatórios, hospital dia, em momento de crise psiquiátrica, e a liberação com tratamento ambulatorial em CAPS, CERSAM, por exemplo, se não existir mais a crise.

  Sobre o tema, leciona Salo de Carvalho (2013, p. 529-531):

 A reforma pisquiátrica foi explícita em proibir qualquer forma de tratamento manicomial. Mesmo nos casos excepcionais – a internação psiquiátrica é subsidiária e indicada apenas quando os recursos extra-hospitalares (serviços comunitários) se mostrarem insuficientes, conforme o §3º e o caput do art. 4º - estabelecem que ‘é vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares (...)’ (art. 4º, §3º, da Lei 10.216/2011).

A prioridade estabelecida pela Lei 10.216/2001 é a do tratamento no ambiente menos invasivo possível (art. 2º, VIII), preferencialmente em serviço comunitário de saúde mental (art. 2º, IX) ou em instituições ou unidades hospitalares gerais que ofereçam assistência na área da saúde mental (art. 3º). A política instituída na reforma deriva da finalidade de criar permanentes espaços para reinserção social do paciente em seu meio (art. 4º, parágrafo único).

A vedação de tratamento em instituições com características asilares atinge inclusive as formas de internação compulsória, ou seja, aquelas determinadas pelo Poder Judiciário (art. 6º, parágrafo único, III). Não por outra razão a Lei n. 10.216/2001 regula a própria atividade judicial ao estabelecer que, de acordo com a legislação vigente, o juiz competente levará em conta as condições de segurança do estabelecimento quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e dos funcionários (art. 9º).  As condições de segurança do paciente não podem ser outras que a efetividade dos seus direitos, dispostos no art. 2º, parágrafo único, estando proibida a forma asilar por constituir tratamento desumano (art. 2º, II), abusivo (art. 2º, III) e invasivo (art. 2º, VIII).

Neste cenário, não se vislumbra qualquer motivo que justifique tratamento diferenciado entre os usuários comuns dos serviços de saúde mental e aqueles que praticam delitos. Com o advento da Lei de Reforma Psiquiátrica, independentemente da via de acessos aos serviços públicos de saúde mental (internação voluntária, involuntária ou compulsória), o tratamento prestado deve ser equânime e regido pela lógica da desinstitucionalização.

A alteração no quadro normativo torna inadmissível a manutenção dos regimes segregacionais de execução das medidas de segurança, constituindo-se em ilegalidade a preservação dos espaços conhecidos como manicômios judiciais, institutos psiquiátrico-forenses ou hospitais de custódia e tratamento. Se a reivindicação do movimento antimanicomial consagrada na lei n. 10.216/2001 é a de que os usuários dos serviços de saúde mental não sejam estigmatizados em manicômios e que em caso de intervenção médica aguda recebam tratamento nos hospitais gerais, é injustificável a exclusão daquele portador de transtorno que se difere pelo cometimento do ilícito. Os avanços da reforma psiquiátrica, portanto, devem ser universais e incorporados ao sistema penal. (...)

A proposta se sustenta empiricamente em duas experiências inovadoras e altamente virtuosas de construção de alternativas ao tratamento de pessoas com transtorno psíquico em conflito com a lei. A transferência da pessoa submetida à medida de segurança para a rede pública de saúde – Centros de Apoio Psicossocial (CAPs) do Sistema Único de Saúde (SUS) – situação que implicaria a extinção progressiva dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, conforme prevê a Lei n. 10.216/2001, vem sendo realizada em alguns projetos-piloto como o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ), instituído pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, e o Programa de Atenção ao Louco Infrator (PAILI), criado pelo Tribunal de Goiás. Em ambas as experiências é vetado o recolhimento de pacientes psiquiátricos em instituições de natureza carcerária (prisões, manicômios, hospitais de custódia ou institutos pisquiátrico-forenses).

As inovações dos programas alternativos de intervenção não punitiva (PAI-PJ e PAILI), proporcionadas pela Lei n. 10.216/2001, permitem compreender quão fértil é o espaço de atuação criado pela reforma psiquiátrica. Ao mesmo tempo expõem quão deficitário é o discurso da dogmática penal, que permanece literalmente preso aos conceitos higienistas da psiquiatria do século passado.

Importante colacionar a decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no Habeas Corpus n. 1.0000.14.078270-7/000, publicado no dia 21 de novembro de 2014, que demonstra que a decisão judicial deve estar em consonância com a lei de reforma psiquiátrica.

“EMENTA: HABEAS CORPUS – MODULAÇÃO DA MEDIDA DE SEGURANÇA PARA TRATAMENTO AMBULATORIAL – POSSIBILIDADE – DECISÃO EM CONSONÂNCIA COM A LEI DE REFORMA PSIQUIÁTRICA (LEI 10.216/01) – ORDEM CONCEDIDA.

- Em razão do inegável caráter punitivo das medidas de segurança, a Lei 10.216/2001 mudou a lógica de tratamento dos portadores de sofrimento psíquico no Brasil, como é o caso dos inimputáveis e dos semi-imputáveis. Esta Lei tem como diretriz central a realização de políticas públicas de desinternação e fixa como premissa o respeito à autonomia dos usuários do sistema de saúde mental.

- Considerando a alta hospitalar concedida pelo CAMP, instituição em que o paciente era tratado, e tendo em vista o relatório do PAI-PJ opinando pela conversão da medida detentiva em medida restritiva, a modulação da medida de segurança para tratamento ambulatorial é medida de rigor.

- Ordem concedida.

Habeas Corpus Nº 1.0000.14.078270-7/000 - COMARCA DE Ribeirão das Neves  - Agravante(s): HELIS BARBOSA DO NASCIMENTO - Autori. Coatora: JD V EXEC CR COMARCA RIBEIRAO NEVES” (g.n)

3.8. ILEGALIDADE DA MANUTENÇÃO DOS LOUCOS INFRATORES EM UNIDADES PRISIONAIS

Com a aplicação da medida de internação como regra e sem oitiva de rede psicossocial, diante da falta de vagas em Hospitais de Custódia e o não acolhimento do paciente pela rede de saúde pública em Hospitais Gerais, o paciente acaba isolado em unidades prisionais comuns.

A manutenção de pessoas com transtorno mental em unidades prisionais, além de ilegal, configura ato de tortura, retrocesso social e violação da dignidade da pessoa humana, pois o paciente passa a ser coisificado e isolado da sociedade.

Diz-se retrocesso social, pois ao manter uma pessoa com transtorno mental em unidade prisional, se está revertendo direitos fundamentais irreversíveis: direito à saúde, à liberdade, à igualdade e à dignidade.

Os locais de isolamento para tratamento de doenças mentais são proibidos, uma vez que o cidadão deve ser inserido na sociedade e tratado. A colocação dessas pessoas em prisões, nada mais é do que o ressurgimento dos locais de isolamento com piores condições de sobrevida.

O portador de transtorno mental infrator deve ter a assistência à saúde mental prestada em estabelecimento de saúde mental, tanto em regime de tratamento ambulatorial, como em regime de internação.

É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtorno mental.

Prescreve o artigo 3o e 4o, parágrafo terceiro, da Lei 10.216 de 2001 (BRASIL, 2001).

Art. 3º. Lei 10.216/01. É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.

Art. 4o A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

(...)

§ 3o É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no §2º e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2º.

As Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, aprovada em Genebra pela ONU, em 1995, citada no art. 73 da Exposição de Motivos da Lei de Execução Penal, como a expressão de valores universais tidos como imutáveis no patrimônio jurídico do homem, na segunda parte, seção B, determina: “Os presos considerados dementes não deverão ficar detidos em prisões. Devem ser tomadas medidas para transferí-los, o mais rapidamente possível, para instituições destinadas a enfermos mentais”.

A resolução 46/119, de 17 de dezembro de 1991, da ONU, sobre a proteção das pessoas com doenças mentais e a melhoria da assistência à saúde mental, possui 25 princípios. Dentre eles, os princípios que garantem tratamento, medicação e direitos e condições de vida em estabelecimentos de saúde mental.

No item “dos infratores da lei”, referida resolução, prevê no ponto n. 3, que a legislação nacional pode admitir que a autoridade competente admita a pessoa com transtorno mental em um estabelecimento de saúde mental. Nunca em unidade prisional.

DOS INFRATORES DA LEI

(...)

3. A legislação nacional poderá autorizar um tribunal ou outra autoridade competente a determinar, baseando-se em opinião médica competente e independente, que tais pessoas sejam admitidas em um estabelecimento de saúde mental.

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária editou a Resolução nº. 05, em 04 de maio de 2004, dispondo a respeito das diretrizes para o cumprimento das medidas de segurança, adequando-as à previsão contida na Lei Federal nº. 10.216/2001, valendo citar as seguintes diretrizes:

 3. O internado deverá ter acesso ao melhor tratamento consentâneo às suas necessidades, da mesma qualidade e padrão dos oferecidos ao restante da população.

(...)

5. A medida de segurança deverá ser cumprida em hospital estruturado de modo a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer etc.

(...)

  1. A medida de segurança deve ser aplicada de forma progressiva, por meio de saídas terapêuticas, evoluindo para regime de hospital-dia ou hospital-noite e outros serviços de atenção diária tão logo o quadro clínico do paciente assim o indique. A regressão para regime anterior só se justifica com base em avaliação clínica.

O Superior Tribunal de Justiça, no informativo n. 537, já sinalizou a proibição da manutenção dessas pessoas em prisões.

DIREITO PENAL. ILEGALIDADE NA MANUTENÇÃO DE INIMPUTÁVEL EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL.

É ilegal a manutenção da prisão de acusado que vem a receber medida de segurança de internação ao final do processo, ainda que se alegue ausência de vagas em estabelecimentos hospitalares adequados à realização do tratamento. Com efeito, o inimputável não pode, em nenhuma hipótese, ser responsabilizado pela falta de manutenção de estabelecimentos adequados ao cumprimento da medida de segurança, por ser essa responsabilidade do Estado. Precedentes citados: HC 81.959-MG, Sexta Turma, DJ 25/2/2008; RHC 13.346-SP, Quinta Turma, DJ 3/2/2003; e HC 22.916-MG, Quinta Turma, DJ 18/11/2002. RHC 38.499-SP, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, julgado em 11/3/2014.(g.n)

No mesmo turno, o Supremo Tribunal Federal, em decisão indicada em Informativo n. 753, entendeu por bem converter a medida de segurança na modalidade internação em tratamento ambulatorial.

Medida de segurança: recolhimento em presídio e flagrante ilegalidade

A 2ª Turma não conheceu de “habeas corpus”, mas deferiu a ordem, de ofício, para determinar a inclusão do paciente em tratamento ambulatorial, sob a supervisão do juízo da execução criminal. No caso, a pena privativa de liberdade ao paciente (dois anos, um mês e vinte dias de reclusão) fora substituída por medida de segurança consistente em internação hospitalar ou estabelecimento similar para tratamento de dependência química pelo prazo de dois anos, e, ao seu término, pelo tratamento ambulatorial. Nada obstante, passados quase três anos do recolhimento do paciente em estabelecimento prisional, o Estado não lhe teria garantido o direito de cumprir a medida de segurança fixada pelo juízo sentenciante. A Turma destacou que estaria evidenciada situação de evidente ilegalidade, uma vez que o paciente teria permanecido custodiado por tempo superior ao que disposto pelo magistrado de 1º grau. Além disso, não teria sido submetido ao tratamento médico adequado.

HC 122670/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 5.8.2014. (HC-122670) (g.n)

Com isso, é ilegal a manutenção de paciente em estabelecimento penal.

3.9. ATOS DE TORTURA

O Estado deve tomar medidas judiciais, administrativas, legislativas ou de outra natureza com o intuito de impedir atos de tortura, nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis e Degradantes, de 28 de setembro de 1984.

O artigo 1º da Convenção define tortura:

1. Para os fins desta Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissão; de puní-la por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada em discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público ou por outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência, inerentes ou decorrentes de sanções legítimas.

Segundo a convenção, são necessários três elementos para a caracterização da tortura: a) a inflição deliberada de dor ou sofrimentos físicos ou mental; b) a finalidade do ato (obtenção de informações ou confissões, aplicação de castigo, intimidação ou coação, dentre outras); c) a vinculação do agente ou responsável, direta ou indiretamente com o Estado (PIOVEZAN, 2011, p. 266).

A prisão de pessoas com saúde mental comprometida em estabelecimentos prisionais superlotados e sem assistência médica gera inflição deliberada de intenso sofrimento físico e mental.

Ao submeter o paciente de medida de segurança à prisão, e não a tratamento em locais adequados, o Estado estaria punindo pessoas por atos que elas teriam cometido, violando a natureza da medida imposta e descumprindo decisão judicial.

Nos mesmos termos, prescrevem os artigos 2o e 3o da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 1985.

Artigo 2. Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica.

Não estarão compreendidas no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente conseqüência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou a aplicação dos métodos a que se refere este artigo.

Artigo 3. Serão responsáveis pelo delito de tortura:

a) Os empregados ou funcionários públicos que, atuando nesse caráter, ordenem sua execução ou instiguem ou induzam a ela, cometam-no diretamente ou, podendo impedi-lo, não o façam.

b) As pessoas que, por instigação dos funcionários ou empregados públicos a que se refere a alínea a, ordenem sua execução, instiguem ou induzam a ela, cometam-no diretamente ou nele sejam cúmplices.

O Brasil ratificou a Convenção da ONU contra a Tortura no dia 28 de setembro de 1989, promulgada pelo Decreto n. 40 de 1991; e a Convenção interamericana, em 20 de julho de 1989, com promulgação pelo Decreto 98.386, de 9 de dezembro de 1989.

Nos termos do artigo 2º da Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes da ONU, “nenhuma circunstância excepcional, seja qual for, pode ser invocada como justificativa para a tortura”.

Posto isso, a falta de vagas em estabelecimentos adequados não pode ser utilizada como circunstância para justificar a tortura.

O artigo 1º da Lei 9.455 de 1997 define crime de tortura no Brasil e, no inciso II, não exige como elemento a vinculação do agente ou responsável, direta ou indiretamente com o Estado. O parágrafo primeiro do artigo dispõe que na mesma pena incorre quem submete pessoa sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio de ato não previsto em lei ou não resultante da medida legal (BRASIL, 1997).

Art. 1º. Lei 9.455 de 1997. Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.

A manutenção da pessoa com transtorno mental, submetida à medida de segurança, em unidade prisional é ato não previsto em lei e não resultante da medida legal. Com isso, a prisão de pacientes que cumprem medida de segurança dentro de unidades prisionais superlotadas e sem tratamento médico é ato inegável de tortura.

3.10. DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

 Na concepção de Immanuel Kant citado por Sarlet (2009), a pessoa deve ser considerada um fim em si mesmo e não meio. A dignidade seria inerente a toda e qualquer pessoa humana.

Para Rizzatto Nunes, no livro O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, é “necessário identificar a dignidade da pessoa humana como uma conquista da razão ético-jurídica, fruto da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marca a experiência humana” (2009, p.50).

Conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet, “todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmas” (2009, p.42).

Independentemente do seu conceito ou história, a dignidade da pessoa humana é intangível e fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1o, inciso III da Constituição Federal.

O artigo 1o da Declaração Universal da ONU de 1948 estabelece: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”.

O item dois da resolução 46/119 da Organização das Nações Unidas (ONU), discorre que: “Todas as pessoas portadoras de transtorno mental, ou que estejam sendo tratadas como tal, deverão ser tratadas com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana”.

O item três da Declaração dos direitos das pessoas deficientes da ONU, de 9 de dezembro de 1975, prescreve sobre a dignidade humana dessas pessoas, podendo abarcar parte das pessoas com transtorno mental, caso assim diagnosticadas:

3 – As pessoas deficientes têm o direito inerente de respeito por sua dignidade humana. As pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos damesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quanto possível.

Manter uma pessoa com sofrimento mental em unidade prisional, em estabelecimento inadequado ou sem tratamento extra-hospitalar prévio, é coisificar o ser humano, pois marginaliza o cidadão e o anula como sujeito de direitos. Realiza-se, assim, verdadeiro retrocesso social, com a volta do isolamento social e moral.

Sobre a autora
Alessa Pagan Veiga

Defensora Pública do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual. Especialista em Direito Sanitário pela Escola Superior de Saúde Pública. Membro da Comissão Especializada em Execução Penal do CONDEGE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VEIGA, Alessa Pagan. A excepcionalidade da internação na medida de segurança. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4513, 9 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40470. Acesso em: 5 nov. 2024.

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