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Fontes do direito e fato jurídico.

Resposta a Tárek Moysés Moussallem

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Agenda 01/05/2003 às 00:00

5. O fato jurídico como norma individual: o direito reduzido à linguagem escrita e documental.

A linguagem é plural no processo da formação de sentido. Constrói-se sentido através das práticas verbais (escrita e oral) e não-verbais (gestual, sons, ícones). A relação eu-tu é fundada e fundante da linguagem, porque apenas há possibilidade da polaridade relacional se for estabelecida na e pela comunicação.

Se a linguagem é plural no mundo da vida, não menos o será nos rincões do direito. Reduzir a juridicidade à linguagem escrita e documental é amputar arbitrariamente uma incomensurável ocorrência de fenômenos relevantes para o direito, que são conformados prescritiva e vinculativamente pelas normas jurídicas. Mais ainda: muitos comandos jurídicos são expedidos através de sons (apito do agente de trânsito, v.g.), gestos ou sinais, os quais possuem prescritividade, nada obstante não sejam expressos através de grafemas espargidos numa folha de papel, repousada na mesa ou gaveta de alguma repartição pública.

Como nos mostra Eduardo Carlos Bianca Bittar (57), "(...) os elementos que representam as prescrições de trânsito são sinalizações de caráter normativo, substitutiva do discurso prescricional verbal enunciado pelas estruturas de uso corrente nos meios jurídicos, que são as estruturas lógico-formais, e que se valem de códigos específicos para a formação do significado jurídico. O subsistema normativo de prescrições viárias é, sobretudo, a linguagem não-verbal explorada pela legislação e empregada na comunicação de mensagens e comandos normativos relativos à circulação viária. Essa linguagem não-verbal de regulamentação viária se desdobra em: linhas e escritos traçados no solo asfáltico, além de outros materiais de redução de velocidade...; placas diretivas, indicativas, descritivas e proibitivas, com escritos, sinais ou composição de sinais; semáforos e outros recursos de iluminação e disposição de coisas; sinais sonoros; gestos, etc., tudo tendo-se em vista uma comunicação visual fácil, rápida e instrumental para significação no trânsito de veículos e pessoas. A elocução, nesse campo, portanto, obedece às necessidades práticas de comunicação, e, nesse sentido, a imagem produz mais efeitos que o próprio verbo".

As achegas da longa citação do texto do professor de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP tem inteira pertinência no âmbito do nosso debate. No trânsito, os veículos se movem dentro de um simbolismo jurídico comum aos seus usuários, de modo a possibilitar o tráfego no cotidiano de nossas cidades. As placas diretivas, os gestos do agente de trânsito, o silvo do seu apito, os sinais luminosos do semáforo estão inseridos no discurso não-verbal do direito, cuja prescritividade ressalta a partir das normas gerais e abstratas que os instituem e os institucionalizam. Como assere ainda Eduardo C. A. Bittar (58), "Os contornos do sistema sígnico viário são dados pelo legislador. De fato, a convenção que dá origem às sinalizações e outros recursos desse tipo não é de caráter social, mas, sim, normativa (que se impõe a sociedade) (...)". E adiante: "Tendo-se uma autoridade legislativa por fonte normativa, e sistemas de linguagem a dispor, também se tem por fito alcançar um processo significativo sem ruídos semânticos ou, ainda, com poucos ruídos semânticos, tendo-se em vista que o sentido é institucionalizado (sistema viário oficial). A interpretação, dentro desse sistema, é restrita e oferece pouca margem de opções aos trafegantes, uma vez que sua semântica é artificial e previamente constituída, assim como sujeita ao princípio da não-ambigüidade. Cada significante tem um correspondente preciso, tendo, portanto, uma significância de si e por si, sem esboçar qualquer necessidade de uma complementação criativa da mensagem sígnica por parte do intérprete".

A mulher que pára o seu carro diante do sinal vermelho obedece à significação institucionalizada do simbolismo jurídico. Não age socialmente, por educação ou etiqueta; antes, cumpre a norma geral e abstrata que prescreve a observância do sinal luminoso vermelho. Ao parar seu veículo, juridicamente praticou ato-fato jurídico (ato humano em que a vontade não é essencial à incidência da norma). Todavia, para o "constructivismo jurídico", que apenas vislumbra o processo de positivação do direito através da emissão de uma norma individual e concreta, o fato de parar o carro diante de uma sinal vermelho seria mero fato social: "É singelo caráter perlocucionário do ato administrativo (sinal vermelho). Enquanto não houver ato de enunciação (por agente credenciado) sobre tal fato social, não há produção de enunciado (dos quais construiremos normas jurídicas) em nada importando ao direito positivo e à Ciência do Direito" (59). É dizer, nem o Código Nacional de Trânsito seria direito positivo, nem tampouco a doutrina formada sobre ele seria digna do rótulo de jurídica.

Estranho, nada obstante, que o professor capixaba tenha compreendido o sinal vermelho do semáforo como ato administrativo, porque a máquina não emite vontade, quando da emissão luminosa do semáforo. Seria equívoco próximo ao cometido por alguém que denominasse de "contrato" a relação entre o homem e a máquina automática, que mediante a introdução de uma moeda expele uma lata de refrigerante. Não se poderia com seriedade, por evidente, alguém sustentar que a máquina manifestou vontade juridicamente válida, celebrando negócio jurídico com o comprador.

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Resta claro, desse modo, o porquê de ter denominado de realismo lingüístico a teoria carvalhiana. Através de uma formalização excessiva, limita a positivação do direito à emissão de uma norma individual e concreta, expedida em linguagem competente (sempre escrita e documental). Para o "constructivismo jurídico", a efetividade das normas jurídicas (seu cumprimento ou descumprimento) é matéria estranha ao direito, se revelando um mero fato social, colocado fora do campo de investigação da Ciência do Direito. Esse axioma é enfaticamente sustentado através da classificação dos atos de fala em locucionários, ilocucionários e perlocucionários (60).

Para Tárek Moussallem, apenas seriam jurídicas as dimensões locucionária e ilocucionária do ato de fala, ou seja, aquelas dimensões alheias aos efeitos práticos do ouvinte em atender ou não o conteúdo do enunciado. Se uma norma jurídica determinar uma específica conduta, seriam objetos de preocupações jurídicas apenas o texto e o seu conteúdo, não no sendo os efeitos deles decorrentes. Se alguém pagar uma dívida, o ato de pagamento não será jurídico, sendo mero fato social. Apenas seria jurídico o pagamento (aspecto perlocucionário) se fosse ele relatado em linguagem competente (norma individual e concreta do recibo de pagamento). Afinal, advoga Tárek Moussallem, "Para ingressar no sistema do direito positivo, o aspecto perlocucionário requer a expedição de ato locucionário/ilocucionário produzido por agente credenciado (capaz ou competente), in casu o credor, documentando o cumprimento" (61). Vale dizer, se alguém compra um refrigerante, paga e o consome, e se o vendedor não emitir um recibo de quitação, não teria havido juridicamente pagamento. O fato jurídico seria não o ato de pagar, mas o conteúdo do enunciado que informa, através do recibo, que houve pagamento, ainda que o recibo seja de caneta em um pedaço de papel manteiga ou guardanapo. Sem essa emissão de um documento positivo de quitação, não haveria falar em fato jurídico.

No fundo, essas abstrações ingênuas (nos efeitos) e obscuras (na construção) mal escondem uma visão reducionista do fenômeno jurídico, desvinculada por completo do mundo da vida. A teoria carvalhiana trata o direito como pura idealidade, presa apenas ao plano do enunciado. Nela, o verbo nunca se encarna na história humana. É produto da reminiscência da ideologia burguesa, que imaginava construir um direito pleno e sem contradições. É filha da mesma ideologia que construiu durante séculos o direito processual sem compromissos com a efetividade das decisões judiciais, preocupado apenas na busca abstrata da certeza (coisa julgada), ainda que a sua obtenção demorada implicasse na prática a perda do seu objeto no mundo da vida, em que os fatos jurídicos se dão.

Como demonstra Ovídio Baptista da Silva, em obra genial e de leitura obrigatória (62), toda a história do conceito moderno de "jurisdição" está vinculada à ideologia burguesa do racionalismo de Hobbes, inspiradora do conceptualismo jurídico. Em nome do valor segurança, afastaram-se do direito as preocupação axiológicas, expurgadas pela busca única e exclusiva de uma certeza formal, obtida através de um procedimento demorado, que ao final "declararia o direito". Não por outras razão, sempre houve resistência em pôr entre os atos jurisdicionais aqueles em que não ficasse a atividade judicial restrita à cognição. Todavia, a revolução dos fatos da vida moderna fizeram com que a tutela da certeza fosse substituída pela tutela da aparência, os juízo plenários pelos juízos sumários das tutelas antecipadas, sendo cada vez mais comum as chamadas ações sincréticas, em que o conhecimento e a execução se fariam no mesmo procedimento, bastas vezes essa precedendo aquele, em mitigação do princípio nulla executio sine titulo. Mais ainda: no Brasil passou-se a admitir a existência dos efeitos mandamentais e executivos "lato sensu", que se qualificariam justamente por sua atuação prática e efetiva (63). Para os processualistas modernos, jurisdição não é apenas ato de conhecer (notio), mas também e sobretudo de satisfazer o direito tutelado. A efetividade e satisfatividade das decisões judiciais substituíram a ideologia da certeza formal, bem como a intangibilidade da coisa julgada. A prestação jurisdicional ideal já não mais é aquela que resolve a lide, declarando o direito, mas sim aquela que satisfaz o direito invocado, ainda que sobre ele não aja certeza, mas apenas a aparência, estribada em um juízo de probalidade (fumus boni juris). Quem vem a juízo não deseja apenas um enunciado sobre a sua situação jurídica; bastas vezes, e principalmente, busca mesmo a realização de atos materiais de cumprimento, executando ordens ou mandados judiciais.

Quando a teoria carvalhiana exclui das preocupações da Ciência do Direito os atos de cumprimento, finda por retroceder dois séculos em relação a evolução do direito processual, por exemplo. Voltou aos tempos das disputas de Windscheid, Savigny, Büllow, Wach e Chiovenda, desprezando inclusive os recentes esforços teóricos da instrumentalidade processual da escola paulista das Arcadas (64).


6. Fato, evento e Habermas: algumas considerações.

Tárek Moussallem afirma que a distinção entre os planos da ação comunicativa e do discurso, levado a efeito por Habermas, seria prescindível para o direito, de vez que o pensamento do filósofo alemão "delimita como objeto de estudo o contexto social". Assim, assevera: "Não é difícil perceber aqui a distância abissal entre os cortes metodológicos levados a efeito por Habermas (direito como fato social) e pelo ‘constructivismo jurídico’ (direito como norma jurídica). Premissa distintas, conclusões distintas" (65). Nesse diapasão, faz um explícito reproche às minhas críticas: "Olvidando-se ainda do importante conceito de ‘método’, busca fazer cotejo da teoria sociológica de Habermas com a teoria do ‘constructivismo jurídico’ capitaneada por Paulo de Barros Carvalho. Métodos diferentes, Ciências diferentes. São jogos de linguagem díspares" (66).

Ora, quando me detive a expor o pensamento de Habermas, no segundo texto da trilogia, foi justamente para afirmar que não havia como se valer de seu pensamento para assoalhar a distinção entre fato e evento, justamente porque o método habermasiano conflitava com o formalismo carvalhiano. Por essa razão, afirmei: "Diante da resumida exposição do pensamento habermasiano, sobre o objeto de nossas reflexões, podemos observar que a distinção entre fato e evento levada a cabo pela teoria carvalhiana não absorve a distinção entre contexto da ação comunicativa e contexto do discurso, se divorciando por completo da teoria da verdade consensual, própria à teoria do agir comunicativo. Enquanto Paulo de Barros Carvalho formaliza o discurso jurídico, limitando a facticidade do direito àquilo que é relatado em linguagem competente, Habermas deita olhos sobre o mundo da vida e sobre a ação comunicativa, em que o simbólico da norma desempenha papel fundamental para a estruturação dialógica do tecido social (...)". E em seguida: "Apenas através de uma violência simbólica - insistamos mais uma vez - poderíamos aplicar a distinção entre fato e objetos da experiência, própria ao giro lingüístico (do qual Habermas é apenas um dos seus expoentes), para servir de joeira entre o jurídico e o não jurídico. No contexto do pensamento de Habermas, essa é uma questão sem sentido (...)" (68).

A crítica que fiz – e faço, agora com as achegas de Tárek Moussallem – é a da impossibilidade de se utilizar o pensamento de Habermas para estribar a distinção entre fato e evento, como procedeu Paulo de Barros Carvalho. Segundo o professor paulista: "Jürgen Habermas trabalha com a distinção entre fatos e objetos da experiência. Os fatos seriam os enunciados lingüísticos sobre as coisas e os acontecimentos, sobre as pessoas e suas manifestações. Os objetos da experiência são aquilo acerca do que fazemos afirmações, aquilo sobre o que emitimos enunciados. Deriva dessas observações que o status dos fatos seja diferente do status dos objetos a que se referem (...)". Quando Habermas procede a essa distinção entre fato e evento (objeto da experiência), o faz com vistas ao contexto da ação comunicativa, que é desprezada pela teoria carvalhiana, conforme asseverado pelo próprio Tárek Moussallem. Logo, se havia um "abissal corte metodológico" entre Habermas e Paulo de Barros Carvalho, por que o professor paulista se valeu do pensamento dele e de Robert Alexy para estribar a sua teoria, conforme inclusive é dito por carvalhianos insuspeitos? (69)

Na intimidade da teoria carvalhiana, o evento se transforma em fato através de um enunciado protocolar e denotativo, sempre escrito, emitido por uma autoridade competente. Se não houver a emissão desse enunciado escrito e documental, não há falar em fato jurídico (que é a significação daquele enunciado). Essa a razão pela qual Tárek Moussallem assevera que o dano causado por A em B, sem relato em linguagem competente, seria mero evento, porque "a juridicização do ‘dano’ não se dá fora do sistema do direito positivo, mas sim no seu interior. O fato ‘dano’ fora das normas é mero fato social" (70). Ora, é evidente que todo fato jurídico é apenas jurídico dentro do sistema, através da incidência de uma norma sobre o seu suporte fáctico concreto, no plano do pensamento. Não há fato jurídico fora do sistema. Nada obstante isso, afirme-se também, em cores vivas, que o dano ingressa no sistema jurídico pela porta da incidência da norma jurídica, e não pela emissão de um enunciado competente. Se A causou dano a B, juridicamente cometeu ato ilícito. Agora, se ambos chegaram a um acordo verbal e A ressarciu B, sem necessidade de irem a juízo, é evidente que não estamos frente a um mero evento social, porém diante do cumprimento das normas jurídicas. Dizer que esse fato ingressará no sistema jurídico apenas se for relatado em linguagem competente é reduzir o direito a um formalismo jurídico excessivo e exprobável. Afinal, toda atividade que ocorre sub specie norma é evidentemente jurídica, ou as normas mesmas seriam flatus voces, discurso prescritivo oco.

A norma jurídica, que incide infalivelmente, é a norma que ganhou em densidade simbólica, como fato do mundo social, no seu subconjunto, o mundo do pensamento. Não se deve, desse modo, reduzir o mundo do pensamento ao mundo da psique, é dizer, da mente de um sujeito psicologizado. Em obra de leitura obrigatória, Marcos Bernardes de Mello sustenta que "somente fato cuja ocorrência seja da ciência de alguém, apenas, ou que seja passível de prova, pode ser considerado concretizado para os fins de incidência das normas jurídicas. É possível, diante dessa exigência, haver uma incompatibilidade entre a realidade e a concreção do suporte fático, desde que o fato, mesmo acontecido, não poderá ser tratado como integrante de suporte fático concreto, por não ser do conhecimento de alguém" (71). Tal compreensão da fenomenologia da incidência decorre do fato do professor da Universidade Federal de Alagoas situar o mundo do pensamento no plano da psique, é dizer, nos nossos pensamentos enquanto atividade mental de um sujeito psicologizado: "A incidência, no entanto, não se nos dá no mundo sensível, porque suas conseqüências se passam no mundo da psiquê. (...) Por isso mesmo, por ser fato do mundo dos nossos pensamentos, é que ela ocorre fatalmente à simples concreção do suporte fático" (72).

Como exemplo da necessidade de conhecimento de alguém para que a norma incida sobre os fatos, Marcos Bernardes de Mello cita a morte de uma pessoa durante uma caçada sem que lhe tenham encontrado o corpo. Como o fato da morte não teria sido conhecido por ninguém, a norma não incidiria. É certo que a norma aqui não incide, porque apenas está prevista para sua incidência a morte conhecida. A morte sem conhecimento não é juridicamente morte: é ausência. O suporte fático concreto da ausência (decorrente da morte desconhecida, ou melhor dito, da não-presença conhecida), provoca a incidência da norma jurídica. Aliás, a Marcos Bernades de Mello não passou despercebido esse ponto, quando em nota de rodapé assestou: "Essa afirmativa pode parecer uma contradição em face da infalibilidade (fatalidade) da incidência da norma jurídica. É preciso esclarecer, por isso mesmo, que o dado do conhecimento do fato constitui elemento do suporte fático da norma jurídica, donde ser necessário a que este se concretize suficientemente. A morte – que é o exemplo que tomamos – não entra no mundo jurídico em sua pura natureza, mas complementada pelo seu conhecimento por alguém".

A questão do conhecimento do fato por alguém, ou ainda a potencialidade de prova do fato ocorrido, não diz respeito propriamente ao problema da incidência (a não ser que o conhecimento mesmo, como fato psicológico, seja elemento do suporte fático da norma), mas sim da aplicação. Quando se fala em prova de um determinado fato, está-se a tratar do plano da aplicação e não mais da incidência, que ocorre no mundo do pensamento. Se uma mulher ultrapassa o sinal vermelho, conduzindo seu veículo, e não é vista pelo agente de trânsito, nem tampouco fotografada pelo radar eletrônico, a norma incide infalivelmente, qualificando juridicamente o fático, nada obstante não venha possivelmente, ou mesmo nunca, a ser aplicada nessa situação concreta. A incidência nada tem com o conhecimento ou prova da ocorrência do fato jurídico, e muito menos com a enunciação do evento. Ocorre no plano do pensamento, que não é o plano da psique da mulher infratora, que sabe ter vulnerado a norma de trânsito, no exemplo citado. Aliás, para a incidência da norma pouco importa a ignorância que a pessoa interessada venha a ter de sua existência ou extensão.

Torquato Castro, saudoso professor da Faculdade de Direito do Recife, deixou bem alinhavado que a qualificação jurídica do fático, provocada pela incidência da norma jurídica, é efeito da causalidade jurídica (imputação, na linguagem de Kelsen). Assim, independe do conhecimento ou vontade de uma sujeito psicologizado. Em suas palavras: "Tudo quanto vem depois desse momento ideal de qualificação – a possível consciência, no sujeito, quanto à existência da situação jurídica, e a do seu papel exato como sujeito ou o exercício da atividade que lhe possa ter reservado a norma em razão de sua posição, o reconhecimento dessa posição por parte da autoridade que tenha função de fazê-la declarar ou atuar – já não pertence ao momento da incidência da norma, mas o de sua aplicação". E prossegue: "A qualificação jurídica dos elementos integrantes da situação – sujeito, objeto e posição de sujeito ou de cada sujeito – ocorre instantaneamente no exato momento da configuração integral do fato jurídico que dela constitui o fundamento de existência". (73)

Ao adiante, no que mais de perto nos interessa, adscreve Torquato Castro: "Neste caso, a norma, só pela qualificação que é seu ato próprio, opera e axaure todo o escopo atributivo da situação, isto é, opera, e de logo exaure, todo o ato atributivo do objeto ao sujeito, e isto por sua própria força, e sem auxílio de qualquer ato humano a que deva recorrer. Nessa hipótese, todo ato do sujeito ou qualquer ato de outrem será sempre externo à situação, já que sobre a perfeição do ato atributivo, que se deve só à norma, qualquer ato outro não terá nenhum relevo". (74)

É por embaralhar esses conceitos e por ter uma visão redutora do fenômeno jurídico que a teoria carvalhiana busca excessivamente formalizar o direito, reduzindo-o à linguagem escrita da autoridade competente.

Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: asc@adrianosoares.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Fontes do direito e fato jurídico.: Resposta a Tárek Moysés Moussallem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4049. Acesso em: 22 nov. 2024.

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