5 DEDUÇÕES NA BASE DE CÁLCULO DO IRPF
Para facilitar a fiscalização e a arrecadação de tributos pela Receita Federal do Brasil, em relação ao imposto de renda da pessoa física, a legislação infraconstitucional permite as seguintes operações: cobrança antecipada sobre a base de cálculo “rendimentos do contribuinte”, fase na qual o imposto não incide necessariamente sobre a renda, mas apenas sobre as entradas financeiras positivas; ajustes posteriores na base de cálculo através do instituto das deduções, na declaração anual do IRPF, se existentes, para a exclusão de valores que não configuram renda (finalidade que nem sempre é realizada); e restituições de valores pagos a mais pelo contribuinte durante a antecipação de imposto incidente sobre rendimento dedutível, em lotes, ou realização de cobranças adicionais, quando eventuais débitos não foram oportuna ou suficientemente pagos pelo sujeito passivo.
Em síntese, a Receita cobra o IRPF sobre rendimentos para, depois, permitir ao contribuinte declarar quais dessas cobranças incidiram sobre valores que não significam renda (geralmente de acordo com rol taxativo disposto na legislação infraconstitucional), devolvendo corrigido o excesso recolhido.
Quanto ao tema em debate interessa apenas a etapa das deduções, momento no qual o contribuinte declara quais são os valores que foram tributados antecipadamente e que devem ser restituídos. Explica-se a importância: o instituto da dedução é, na atual sistemática fiscal, o mais apto para corrigir a deturpação da base de cálculo do imposto de renda. Como a base de cálculo é, a princípio, alargada pela legislação, atingindo muitas vezes rendimentos do trabalhador que não configuram acréscimo patrimonial, deve-se “deduzir” dessa base tudo aquilo efetivamente não caracterizado como renda.
Para o contribuinte a dedução desempenha o papel de alívio fiscal. Se de um lado o Fisco determina que a cobrança seja antecipada, caso geral da retenção do tributo na fonte pagadora, e incidente sobre todos os rendimentos, de outro o contribuinte deve buscar a restituição dos valores pagos que incidiram sobre parcelas sem conotação de renda, de acréscimo patrimonial. Portanto, destaca-se o instituto da dedução como ferramenta hábil para que o IRPF realmente incida somente sobre a renda.
A utilização das deduções demanda o conhecimento da legislação a seu respeito, incluindo as normas administrativas. Mas não só. É possível, através de uma leitura constitucional, interpretar despesas que não estejam abarcadas como dedutíveis pelas normas infraconstitucionais como despesas efetivamente dedutíveis. Os elementos para essa interpretação, que permitem estender as deduções para despesas não dispostas em lei ou em atos normativos, são justamente as técnicas de hermenêutica constitucional e legal, os princípios constitucionais tributários, o conhecimento sobre a natureza jurídica do instituto e o conceito de renda como acréscimo patrimonial. Respeita-se, com a sequência, lição que jamais pode escapar ao tema da constitucionalização do imposto de renda da pessoa física: somente entendendo bem a Constituição é possível aplicar, adequadamente, a norma jurídica tributária.
5.1. Natureza jurídica da dedução
A regra no direito tributário é que, ocorrendo um fato gerador qualquer, ocorra o pagamento do tributo. Apenas três institutos jurídicos podem excepcionar a regra. São eles a não incidência (que inclui as imunidades), a isenção e a alíquota zero.[35]
A não incidência diz respeito a situações em que um fato relacionado ao contribuinte não é tratado como tributável pela legislação. Ocorre quando o entre federativo tributante não exerce a competência de instituir e cobrar tributos, porque assim deseja (exemplo: Município que não institui o ISSQN – imposto sobre serviços de qualquer natureza), ou quando a Constituição não permite. Desse modo, a Lei Máxima pode delimitar a competência do ente tributante, impedindo que ele defina como hipóteses de incidência determinadas situações (exemplo: incidência, sobre a base de cálculo receitas, a título de imposto de renda) ou, ainda, pode impedir o entre federativo de estabelecer hipóteses de incidência em relação a algumas situações, o que configura a imunidade (exemplo: vedação da instituição de imposto sobre renda de um ente federativo a bens de outro ente, conforme preconiza o artigo 150, VI, a, CF/88).
Quando um ente federativo competente para instituir determinada exação, por opção legalmente formalizada, decide pela dispensa do pagamento quanto a situações específicas ocorre a isenção. O exercício da competência é, e não a sua existência, paralisado, excluindo-se o crédito tributário. A competência permanece, inexistindo apenas o desejo de exercê-la relativamente a determinadas situações.
Ocorrendo isenção a interpretação da norma que a criou deve ser restritiva, e com interpretação literal ou gramatical (a que ocorre quando o texto deve ser compreendido somente pelo sentido semântico da palavra). É o que preconiza o art. 111, III do CTN.
A alíquota zero, por fim, realiza a dispensa do pagamento de um tributo ao definir um percentual igual a zero para a quantificação da base de cálculo, valor que será revestido aos cofres públicos. Explica-se: ocorrendo o fato gerador, a base de cálculo (o montante sobre o qual se aplica a alíquota para determinar o valor do tributo devido) será multiplicada por zero, resultando no não pagamento de tributo (exemplo: hipóteses do artigo 691 e seguintes, do Regulamento do Imposto de Renda – Decreto 3.000/99). O instituto é utilizado como forma de regulamentar a atividade econômica, de modo que a alíquota é elevada pelo Poder Executivo quando houver interesse no incentivo ou desestímulo de determinada atividade.
Portanto, o instituto da dedução trata da não incidência, e não de isenção. Um gasto caracterizado como dedutível sequer permite o surgimento do fato gerador, por ausência de competência do ente político na tributação. Não é que o ente tributante permita ou não o pagamento, deferindo uma espécie de benefício ao contribuinte, ele simplesmente está desautorizado a tributar.
5.2. Interpretação das deduções
A diferença entre dedução e isenção tem um efeito concreto: afastar a possibilidade de interpretação gramatical para normas de dedução.
Com efeito, o artigo em comento não contém norma geral de interpretação da legislação tributária que disponha sobre dedução de despesas na determinação da base de cálculo dos tributos. Vale ressaltar que isenção e dedução tributárias são categorias jurídicas que não se confundem. A isenção refere-se à dispensa de pagamento do tributo. O Código Tributário Nacional inseriu expressamente a isenção entre as causas de exclusão do crédito tributário (art. 175, II). Já a figura da dedução corresponde à subtração de despesas, na base de cálculo do tributo, para não sujeitá-las à tributação.[36]
Quanto à interpretação das normas, esclarecido que as relacionadas à dedução não precisam se contentar apenas com o método gramatical, tem-se que:
Buscando extrair o preciso conteúdo e alcance da norma, a doutrina propõe diversos critérios (métodos, elementos, técnicas) interpretativos que observam as norma sobre diferentes prismas não-hierarquizados. (...) Os critérios acima estudados [em referência às interpretações literal ou gramatical, sistemática, teleológica e histórica] não são hierarquizados, de forma que nenhum se sobrepõe aos demais. Não são excludentes, pois se complementam ao permitir a análise da norma sob diversos prismas (significado léxico, harmonia com o sistema, finalidade e contexto histórico) para que se chegue ao conteúdo e alcance precisos, consentâneos com o direito.[37]
Acrescenta-se que, quanto aos efeitos, a norma sobre dedução se sujeita à interpretação declaratória, podendo resultar em restrição ou extensão do seu alcance. A interpretação extensiva, por sua vez, não se confunde com a analogia, que é uma técnica de integração, de eliminação de lacunas da legislação tributária, tanto que:
Na analogia, a situação a ser resolvida está indiscutivelmente fora do alcance da norma, pois o legislador não pensava em tratar de tal situação ao escrever o texto, mas, em virtude de a situação imprevista se assemelhar à expressamente prevista, acabar por compartilhar com esta mesma solução.[38]
Declaratória é a interpretação onde o intérprete entende que o legislador expressou-se de forma suficiente no texto legal, de modo que é desnecessária qualquer correção no alcance da norma (ampliação ou restrição). Restritiva é a interpretação redutora da abrangência da norma, o que ocorre através da percepção de que o legislador disse mais do que originariamente quis ou poderia dizer. Já a interpretação extensiva é a que conduz à ampliação do conteúdo aparente da norma, no sentido de atribuir-lhe a dimensão mais condizente possível com a legislação, especialmente com a Constituição Federal.
A partir do ano de 2010 a Receita Federal passou a interpretar pela possibilidade de dedução das despesas com cirurgia plástica estética, realizando verdadeira interpretação extensiva. Por se tratar de interpretação, que é retroativa, quem fez uma operação plástica nos últimos cinco anos pode pedir o dinheiro relativo à dedução de volta, através de declaração retificadora do imposto de renda. Isso porque “se a lei não restringe o alcance da dedução de despesas médicas a determinadas especialidades, não cabe ao intérprete fazê-lo.”.[39]
Quanto à analogia o artigo 108 do CTN alcança a autoridade fiscal e a autoridade judiciária (de modo que ambas devem utilizá-lo para solucionar situações cuja resolução a lei não prevê expressamente). A técnica de integração da analogia importa na aplicação de uma regra jurídica em vigor a um caso não previsto na lei, mas em essência similar ao previsto. Como as hipóteses são semelhantes admite-se solução equânime.
Portanto, verifica-se que, em relação às deduções, não existe restrição para a interpretação das normas que tratam do instituto, bem como não há proibição do uso da analogia para integrar situações que devem ser percebidas como dedutíveis, mas que são ignoradas como tais pela legislação.
5.3. Utilização prática das deduções para adequação da base de cálculo
Em atenção ao princípio da capacidade contributiva melhor faria a Receita, com escopo de uma nova orientação legal, se cobrasse tributos apenas quando identificados os rendimentos do contribuinte que representassem acréscimo patrimonial. Contudo, considerando a antecipação no recolhimento como regra geral de tributação do IRPF, situação na qual, a princípio, o imposto incide sobre a base de cálculo “rendimentos”, a “dedução” se estabelece seguramente como mecanismo de adequação da base de cálculo, de rendimentos para renda.
Com a proposta de leitura constitucional do instituto a base não é apenas corrigida, nos moldes legais, ela é constitucionalizada. E, alinhada com os preceitos tributários constitucionais, a base de cálculo passa, em sentido mais amplo, a ser juridicamente aceitável, ainda que contrarie pretensas listas taxativas de despesas dedutíveis, dispostas na legislação (diga-se, pela existência da taxatividade, de questionável validade).
O contribuinte que desejar obter dedução de despesa não abrangida nos dispositivos legais como despesas dedutíveis, mas que não representa acréscimo patrimonial, terá duas opções óbvias, diante da provável negativa da subtração por parte do Auditor Fiscal da Receita, em procedimento de fiscalização. Poderá recorrer administrativamente, insistindo na dedução, direcionando o apelo ao setor revisor; ajuizar ação judicial, nos Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei 12.153/2009), quando envolver valores de até 60 salários mínimos, ou na Justiça Federal, em casos de valores que ultrapassem essa quantia.
A Constituição não deixa alternativa à Receita ou ao legislador. Todo rendimento do contribuinte que não represente um acréscimo de riqueza jamais pode ser abordado como base de cálculo do imposto de renda da pessoa física. Se a lei, por qualquer razão, não tiver descrito determinada despesa como dedutível, a omissão poderá ser facilmente superada através das técnicas de interpretação ou do uso da analogia, utilização perfeitamente compatível com as deduções.
(...) 1. O rol de despesas médicas listadas na alínea a do inciso II do artigo 8º da Lei nº 9.250/95 não pode ser interpretado como taxativo, do contrário a norma padeceria de vícios insuperáveis por afronta direta dos princípios da isonomia e da razoabilidade. 2. A finalidade da norma que permite a dedução de despesas médicas da base de cálculo do IR é possibilitar uma compensação aos contribuintes que enfrentem problemas de saúde e necessitem efetuar despesas não custeadas pelo Estado. 3. A interpretação analógica, in casu, não só é possível, como necessária, uma vez que interpretação literal e restritiva seria inconstitucional.[40]
Como exposto na decisão citada, o Poder Judiciário vem, timidamente, avançando na direção da constitucionalização da base de cálculo do imposto de renda da pessoa física. O faz tomando decisões que aplicam mais vezes e melhor a Constituição, superando a ultrapassa doutrina positivista.
CONCLUSÃO
O sistema tributário brasileiro é notoriamente injusto, pesado e demasiadamente complexo. A incidência do imposto de renda da pessoa física sobre rendimentos que não configuram renda, porquanto não representativos de acréscimo patrimonial, é um dos exemplos de desrespeito aos direitos do contribuinte e, sobretudo, à Carta Constitucional.
A reversão da perversidade tributária, em especial na seara do IRPF, encontra importante subsídio na Magna Carta. Com os princípios tributários e com a determinação de que a União somente pode cobrar imposto de renda sobre a base de cálculo “renda”, propicia a Lei Maior uma releitura abrangente das normas infraconstitucionais vigentes e, consequentemente uma abertura para a aplicação de regras mais justas a partir da adaptação de textos legais juridicamente questionáveis. Revisão cujo resultado mais proeminente é bloqueara incidência do imposto de renda da pessoa física sobre parcelas não representativas de riqueza nova, adquirida pelo sujeito passivo em determinado lapso temporal.
A extração de efeitos tão poderosos do texto constitucional, na medida em que são capazes de modificar a sistemática de um dos tributos mais relevantes no financiamento da União, deve ser cuidadosa e suficientemente fundamentada. Os princípios hermenêuticos constitucionais fornecem justificativas sólidas para uma aplicação mais efetiva e direta das normas da Constituição, com foco nas acima mencionadas, que amparam a constitucionalização da base de cálculo do imposto de renda da pessoa física.
Nesse contexto é que se lança o instituto da dedução como mecanismo ideal, pressupondo-se a vigente estrutura do IRPF, para a exclusão da incidência do imposto de renda e proventos de qualquer natureza sobre parcelas que não representam acréscimo patrimonial (renda). Supressão cuja implicação é a maciça ampliação do rol de despesas dispostas legal e expressamente como dedutíveis. E, assim como empreendido diante da Carta Maior, também para tratar as regras legais atinentes às deduções faz-se uso de meios interpretativos. Técnicas doutrinariamente elaboradas que permitem, com segurança, conduzir palavras em direção à “vontade” constitucional.
Em síntese, diante da problemática apresentada, propõe-se constitucionalizar a base de cálculo da contribuição através de uma leitura mais completa e sistemática das normas infraconstitucionais, com auxílio de técnicas de interpretação e orientação para a aplicação dos princípios constitucionais tributários e para a efetivação da delimitação constitucional das competências tributárias (pressupondo-se um conceito constitucional de renda). Assim o fazendo, estabelece-se um passo em direção à efetiva constitucionalização, porque não dizer racionalização, de todo o sistema tributário brasileiro. Um bom passo.