Introdução
A Constituição da República de 1988, dentre as muitas inovações que trouxe, promoveu o protagonismo da matéria cultural. Não só, o constituinte redimensionou o próprio conceito desta matéria e, a partir deste, construiu um complexo ordenamento: a Cultura deixou de ser mera expressão simbólica do projeto nacional, branco e europeu – materializado na forma de uma erudição elitista e estranha aos costumes populares – para abarcar a totalidade do processo civilizacional brasileiro, em suas diferenças e contradições; entraram em cena os elementos africanos e nativos, mas também inclusive os próprios elementos não-civilizados como a cultura indígena e quilombola.
No momento em que a Constituição reconhece essa dimensão profunda da Cultura, o Estado assume uma função que se desdobra primeiro como protetor das manifestações e obras culturais e, depois, como incentivador das mesmas, caso assim seja demandado. O Estado, pois, atua em sentido negativo, protegendo, por exemplo, o patrimônio público e sem sentido positivo, incentivando e fomentando a produção cultural, a qual vem da sociedade. A Ordenação da Cultura estabelecida em 1988 não admite, pois, uma “Cultura de Estado”, mas sim coloca o Estado em função da Cultura enquanto produção da coletividade brasileira – e esta produção é amplíssima.
Tampouco a Cultura toma forma restrita da obra de arte ou da manifestação em si: a delimitação do objeto cultural se torna imprescindível, pois existe a possibilidade de tutela judicial e administrativa no âmbito de sua preservação; este não compreende apenas o objeto físico, embora possa se reportar a objetos corpóreos – uma relíquia histórica, um exemplar de um museu natural etc – ou incorpóreos – uma dança, a culinária típica de algum lugar etc – em virtude do que estes possuem de importância simbólica e afetiva para o projeto nacional – como vínculo com a fundação da nação, sustentáculo do presente histórico e norteador para o futuro.
A Cultura, pois, é sempre imaterial, muito embora se apresente a priori tanto na forma concreta quanto abstrata: o que interessa, contudo, é essa imaterialidade simbólica bastante particular que definiremos mais adiante.
Enquanto as cartas constitucionais brasileiras anteriores reservavam um espaço pouco relevante à matéria da Cultura1, a Lei Maior de 1988, sem sombra de dúvida, gerou um giro copernicano. Este presente estudo sobre a ordenação constitucional da cultura, portanto, se estruturará no tripé de análise constituído por três premissas: (1) o conceito de Cultura contido na Constituição da República é amplo e plural; (2) o papel do Estado como garantidor, protetor e incentivador da produção cultural e (3) a existência do objeto cultural é de ser imaterial particular, o que pode se manifestar primeiramente em bens e manifestações concretas ou abstratas.
1. O Conceito de Cultura
O conceito de Cultura sempre dividiu especialistas e estudiosos, sobretudo quando os debates acerca disso se tornam centrais em virtude da moderna Antropologia: a máquina colonial europeia, ao se deparar com coletividades humanas intensivamente diferentes dos seus paradigmas simbólicos, precisou desenvolver um aparato conceitual – embora também prático e técnico – capaz de transcender fronteiras aparentemente intransponíveis do sentido.
A partir do negativo, a incapacidade de entender o sentido das significações, significados e significantes e símbolos coletivos, se passou a entender esse enorme volume de coisas de abstratas, não sem certo equívoco e confusão, como “cultura”.
Etimologicamente, “cultura” vem do latim e tem a mesma origem de “cultivo”, pois diz respeito à dimensão da atividade humana de transformação do solo e, logo, do ambiente natural: a Cultura, pois, aparece como a base do plantio – daí que dizemos agricultura –, isto é, como o conjunto de coisas pelo qual os humanos, mediante o emprego de saberes específicos, produzem elementos que lhes eram necessários, mas que, até então, tinham acesso apenas pelos ciclos da natureza.
Talvez por isso, a palavra “culto”, na forma de substantivo, apareça entre nós como o modo própria de veneração de uma religião ou feito a uma divindade: a associação de certos deuses do panteão romano à colheita e à fertilidade certamente consubstanciava isso.
Segundo os estudiosos é consensual que quem retirou “cultura” do sentido literal e construiu o conceito atual, por metáfora, foi Marco Túlio Cícero nas Tusculanas, ao se referir a uma certa “cultura da alma” que seria a filosofia2. A partir daí, a Cultura passa a se referir a uma dimensão abstrata e, ao mesmo tempo, fundante do homem como não deixava de ser, na prática a cultura no sentido originário.
A partir desse giro, a Cultura foi uma dimensão abstrata complexa, uma vez que se consubstanciava em um conjunto de saberes expresso por uma prática. Obviamente, a agricultura contemporânea se realiza na esfera econômica e é regida não apenas pelas normas correlatas como, antes de tudo, pelas próprias regras técnicas de utilidade e funcionalidade. Em si, a agricultura atual se reporta ao campo da civilização, muito embora a dimensão imaterial e simbólica da qual esta se projeta é, irremediavelmente, cultural.
A cultura da filosofia antiga, cujo sentido originário é metafórico e específico, guarda relação com a cultura atual no sentido de ser uma esfera abstrata, composta por vários saberes de determinado coletivo humano: é, enfim, não apenas o projeto de uma coletividade humana situada no tempo e no tempo, como aquilo que estrutura seu plano se significados.
Por outro lado, a Civilização se reporta ao conceito romano de cidade, isto é, civitas, a qual corresponde a substantivação do verbo fazer ou tornar cidade: entre os romanos, a cidade tinha um sentido concreto que se reportava à oposição ao espaço selvagem, à natureza natural.
Civilização, pois, se reporta ao conjunto de objetos técnicos concretos, definidas pelo critério funcional e utilitário que as fixam a finalidade de cindir e, ao mesmo tempo, permitir aos humanos superarem as contingências da vida selvagem – literalmente, a vida na selva.
Toda Civilização tem por trás uma Cultura, embora nem toda Cultura resulte em uma Civilização, pois a Cultura consiste em intervenção sensível, consciente e determinada dos humanos, em sua imaginação criadora, no ambiente; isto nem sempre se dá no intuito de nos cindir da natureza, o que é apenas uma das consequências possíveis.
Os nativos do Brasil e da África possuem todos uma cultura, embora não tenham se civilizado; aquelas culturas não se voltam à construção de objetos técnicos que os façam transcender à natureza, mas sim que tão somente os permitam se adaptar a esta e viverem melhor na imanência de suas existências.
A Cultura sempre foi, pois, o conjunto de saberes que dá sentido às coisas enquanto a Civilização é a parafernália técnica – no sentido moderno de técnica, obviamente – que é um dos desdobramentos possíveis dessa Cultura.
Por exemplo, uma velha espada do exército é uma peça de civilização em desuso, mas na medida que é exposta em um museu, se torna objeto cultural, pois ela não está lá para cortar ou matar um adversário numa guerra, mas sim pelo sentido histórico que ela representa para a nação brasileira. Já uma caneta, que decorre de certo paradigma cultural de escrita e forma de escrever é, por outro lado, um mero objeto funcional, logo, civilizacional.
Na Constituição Federal, o conceito de Cultura faz referência ao processo civilizatório nacional. Parece uma contradição em termos do capítulo anterior, mas não é: o processo civilizatório, ele mesmo, não é uma peça civilizatória, mas o dispositivo mediante o qual o projeto cultural faz civilização: e uma civilização bastante determinada, um Estado-nação com os contornos modernos.
Como bem observado pelo professor José Afonso da Silva3, a influência da antropologia de Darcy Ribeiro4 foi fundamental para a Carta Maior de 1988: o processo civilizatório lá descrito é o que ele é e não um paradigma normativo como antes se via; isto é, não é o processo civilizatório conforme uma determinada visão, um determinado projeto nacional branco e europeu, mas a própria maneira – complexa e em certa medida caótica – como a miscelânea de gentes que fundou e construiu o Brasil autoproduz seu imaginário simbólico.
A partir daí, não apenas o conceito da amálgama de outras culturas, em sincretismo, que produziram a civilização brasileira vem à tona como, também, algumas dessas culturas em sua forma não-civilizacional como ocorre com os índios5 é abarcado pelo sistema protetivo cultural da Constituição de 1988.
Não resta dúvida, pois, que tal assertiva no campo normativo decorra do fato do Brasil estar constituído como Estado Democrático, logo, a Cultura em questão não pode ser tomada a priori como um item meramente prescrito – como adotado outrora, a Cultura como certo projeto nacional restrito e pré-determinado –, mas uma prescrição calcada na verdade científica mais provável acerca da nossa cultura em toda sua radical pluralidade.
Por outro lado, a realização tardia de uma ordenação constitucional do bem-estar no Brasil coloca o plano constitucional atual diante de um problema: se, por um lado, o impasse civilizacional e racial foi resolvido na Lei de Maior, por outro lado, os novos tempos trouxeram novos desafios que são precisamente as tendências trazidas pela universalização total da cultural de massa – que, por seu turno, é técnica e industrial – e a homogeneização da cultura na forma da globalização.
O dilema em questão gira em torno da própria maneira como a produção cultural em massa toma espaço e, inclusive, suprime produções culturais originárias. Nem é preciso dizer que a globalização importa, sobretudo, no fato de que o plano das significações em escala internacional tendam à homogeneização – como se um dia viesse a ter o mesmo padrão, embora com algumas pequenas diferenças ocasionais.Teríamos, pois, uma única cultural global com meras variantes geográficas.
Do outro lado, a cultura de massa, que importa na junção entre um determinado paradigma cultural – calcado não em uma nação, mas em uma forma de pensar e sentir determinada pelo sistema de produção – e na forma peculiar como ele cria objetos técnicos toma o espaço de uma cultura autêntica. O terreno indeterminado no qual se situa a cultura de massa, que no nosso plano constitucional faz um zigue-zague entre a ordenação cultural e a econômica.
A síntese entre cultura de massa e globalização – mais do que isso talvez, a globalização como resultado da expansão da cultura de massa – produzem um quadro contraditório sobretudo no que diz respeito à regulação da cultura: é certo, no entanto, de que a nossa Ordem Constitucional, por força do art. 215, caput, proteja a cultura nacional, muito embora ela não possa barrar a difusão de cultura estrangeira, nem tenha meios de vetar de qualquer modo a cultura de massa até pela liberdade de iniciativa.
O que a ordenação constitucional da Cultura faz neste ponto é proteger a cultura nacional para que esta, em seus variados bens e manifestações, não desapareça e, por outro lado, por meio do Plano Nacional de Cultura (art. 215, §3º) realiza o incentivo à preservação e promoção da mesma
2. O Papel do Estado na Cultura
O Papel do Estado Democrático no que toca ao plano da cultura é tanto negativo quanto positivo. O Estado protege as formas de expressão cultural e, também, as promove. Em ambos os casos a sociedade civil é protagonista, seja naquilo que o Estado, por força da Constituição é obrigado a permitir ou os itens que ele pode ou deve incentivar.
No caso brasileiro, tem-se a competência concorrente entre os entes federativos para legislar, com o adendo do Sistema Nacional de Cultura, instituído recentemente e que segue, por seu turno, uma forma semelhante ao do Sistema Único de Saúde.
A respeito do primeiro item, temos o plano da liberdade no plano da Cultura. No amplo rol de liberdades previsto pelo art. 5º da Constituição da República temos, já em seu inciso II, a postulação de liberdade em sentido amplo: só somos obrigados a fazer ou deixar de fazer algo em virtude de Lei. Tal prescrição fundamenta, inclusive a liberdade de atuação e ação cultural.
Ainda assim, a expressão cultural se diferencia sobremaneira disso, pois possui uma característica qualitativa: a manifestação cultural não é qualquer manifestação, ela possui um estatuto próprio como se vê, por exemplo, naquilo que toca à manifestação artística. Os fundamentos para tanto se encontram nos arts. 5º, IX, 215 e 220, §§ 2º e 3º.
A Belas Artes enquanto fruto mais belo e exuberante do complexo cultural é página a parte: não resta dúvida que, via de regra, a Constituição assegura a liberdade, não permitindo censura prévia às atividades intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, IX) ao passo que veda qualquer censura – a posteriori – de natureza política, ideológica e artística (art. 220, § 2º). Isso quer dizer que a liberdade artística é uma forma própria no plano normativo constitucional.
De fato, praticar nudismo numa obra de arte como uma peça teatral ou um filme é radicalmente diferente de fazê-lo na rua. Usar uniforme das forças armadas é inadmissível para um civil, o mesmo já não se aplica a um ator encenando uma personagem militar. É a chamada licença poética.
Obviamente, como nada é simples em matéria jurídica, dois problemas adicionais se abrem: um deles é da incerteza da própria consideração sobre o que é obra de arte ou não – ainda mais diante de uma profusão de novas formas de expressão como o happening – para delimitar o campo de liberdade em jogo; o outro é, mesmo considerando determinada como artística, qual o limite para essa liberdade?
Isto que chamamos de Arte vem mais precisamente do conceito bizantino de Belas-Artes, rapidamente assimilado no ocidente via derrocada do Império e a migração de artistas do oriente rumo à península itálica, no processo que resultou na Renascença. De lá para cá, com a divisão industrial do trabalho, um rol de atividades humanas não industriais e não meramente técnicas passaram a ser consideradas como “(Belas-)Arte(s)”. Não há um critério satisfatório em matéria conceitual, tampouco em matéria jurídica, para distinguir propriamente a “arte” da “atividade qualquer”.
De tal sorte, determinadas performances acabam até criminalizadas: quando surge uma nova forma artísticas, e esta se presta a fins de contestação social, não raro ocorrem desastres legais mesmo em democracias sólidas. Do nosso ponto de vista, a inequívoca constituição do Brasil como Estado Democrático reserva (1) um amplo espaço para as expressões artísticas, as atuais ou outras que venham a se criar e (2) que a impossibilidade de censura artística é definitiva e só é possível determinar certos limites relativos em contraste com outras determinações normativas de caráter constitucional – como a instituição de classificação etária em virtude de todo arcabouço protetivo à criança e ao adolescente.
D'outro bordo, o Estado se encontra obrigado a proteger o patrimônio cultural brasileiro e incentivar manifestações culturais. Conceito vasto e complexo, o patrimônio cultural, este se encontra previsto no art. 216, CR:
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
A partir daí, se pode ter a ideia da abrangência do conceito de Cultura na Lei Maior: é o próprio complexo conceitual que dá significado à civilização brasileira e aquilo que não é civilizado. Ainda que importe, a priori, em bens concretos e abstratos, tornamos a repetir, que a natureza cultural é determinada pelo significado significador, obviamente imaterial, que eventuais objetos, inclusive naturais, possuem no nosso imaginário coletivo. Lá se encontram, inclusive, as bases lógicas e abstratas da nossa produção tecnológica.
Ainda acerca do art. 216, CR temos no seu conteúdo final:
§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
§ 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.
§ 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.
§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
§ 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.
§ 6 º É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a fundo estadual de fomento à cultura até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, para o financiamento de programas e projetos culturais, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
I - despesas com pessoal e encargos sociais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
II - serviço da dívida; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
O Estado, pois, possui inúmeros instrumentos administrativos e judiciais para a consecução do inequívoco dever constitucional de preservação do patrimônio cultural.
Ainda, o Sistema Nacional de Cultura, recentemente introduzido no sistema constitucional pela Emenda à Constituição de nº 71, propõe claramente:
Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.
É a partir daí que se desdobra o outro aspecto da dimensão positiva do direito cultural constitucional: O Estado, em parceria com a sociedade, precisa promover e gerir políticas públicas de cultura. Não se trata mais do aspecto de garantia ao exercício, isto é, a prestação negativa do Estado de Direito Democrático face à Cultura, da prestação positiva de preservar o patrimônio, mas sim da gestão e promoção de políticas públicas nessa direção.
3. O Objeto Cultural e Sua Tutela
Como já abordamos, a delimitação do objeto cultural é digno de controvérsias. Sobretudo nos dias atuais nos quais a cultura de massa tende a conduzir a uma enorme confusão.
A Cultura, seja como for, é o âmbito no qual se encontram objetos concretos ou não, naturais ou artificiais cujo significado é atribuir significados e produzir significância. Muitos povos ameríndios possuíam a técnica da metalurgia e conheciam o ouro, mas seus artefatos dourados tinham uma significação diferente do que para os Europeus: um bracelete de ouro era um objeto técnico comum entre o povo asteca – mexica – e para os colonizadores espanhóis, mas como os primeiros não lhe atribuíam valor de troca qualificada em termos monetários, logo, o que lhes era corriqueiro, ao mesmo tempo, despertava a cobiça do colonizador.
O fator que estabelece a diferença na forma de compreender o mesmo objeto técnico é, pois, a Cultura. Assim, é cultural o objeto que se manifestando na concretude ou não.
No plano normativo, a UNESCO elaborou uma série de recomendações acerca dos bens culturais, saber a de sua 9ª conferência, a qual estabelece os princípios das escavações arqueológicas (1956), a da 12ª reunião, que visa à proteção da beleza e do caráter de lugares e paisagens (1962), a da 15ª reunião a respeito da execução de obras públicas e privadas (1968), a da 17ª reunião que trata da proteção cultural em âmbito nacional e, principalmente, a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 1972.
No caso brasileiro, o Decreto-lei n. 25 de 1937 organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. A finalidade da tutela, por óbvio, é evitar a degradação, o abandono ou a destruição total ou parcial do patrimônio cultural. No art. 4º do referido diploma podemos encontrar:
O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional possuirá quatro Livros do Tombo, nos quais serão inscritas as obras a que se refere o art. 1º desta lei, a saber:
1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, e bem assim as mencionadas no § 2º do citado art. 1º.
2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interêsse histórico e as obras de arte histórica;
3) no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira;
4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras.
§ 1º Cada um dos Livros do Tombo poderá ter vários volumes.
§ 2º Os bens, que se inclúem nas categorias enumeradas nas alíneas 1, 2, 3 e 4 do presente artigo, serão definidos e especificados no regulamento que for expedido para execução da presente lei.
No campo geral, temos de acordo com o art. 216, § 1º da Constituição, um rol de medidas protetivas como o inventário, registros, vigilância, tombamento, desapropriação além de outras formas de acautelamento e preservação, dentre os quais podemos destacar a ação popular e ação civil pública.
Conclusão
O esforço magnífico que a Constituição de 1988 realizou no sentido de ampliar o campo de abrangência da atuação do Estado face à cultura e, ao mesmo tempo, reconhecer um conceito mais amplo e também plural ao ambiente cultural.
A Cultura, pois, não é mero apêndice da Constituição, é um dos seus pontos de equilíbrio. É sobretudo, modo de vida, e mais até do que isto, o próprio fator de significação das coisas que nos rodeiam.
O papel do Estado democrático, pois, é garantir o livre exercício da cultura, protegê-la e, por fim, promovê-la, tanto pelo incentivo às atividades como, também, pela garantia do acesso à cultura como direito fundamental.
Não é uma tarefa simples, mas certamente é imprescindível. A democratização da cultura brasileira é tarefa central para os próximos anos, a qual sem exagero depende a nossa própria democracia.
Bibliografia
CÍCERO, Marco Túlio. Tusculanes [edição bilíngue latim-francês traduzida por Jean Marie Nisard]. Livro II, IV, disponível em <http://remacle.org/bloodwolf/philosophes/Ciceron/tusc2.htm>,
RIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatório. São Paulo: Companhia das Letras.
NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A Cidadania Social na Constituição de 1988, São Paulo, Verbatim, 2009.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Malheiros, 15a ed.
__________________. Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo, Malheiros.
1A Constituição de 1969, derradeira do ciclo militar, mencionava a Cultura apenas em seu derradeiro artigo de forma vaga:
Art. 180. O amparo à cultura é dever do Estado.
Parágrafo único.Ficam sob a proteção especial do Poder Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas arqueológicas.
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm.> último acesso em 25.11.2014.
2 Cícero, Marco Túlio. Tusculanes [edição bilíngue latim-francês traduzida por Jean Marie Nisard]. Livro II, IV, disponível em <http://remacle.org/bloodwolf/philosophes/Ciceron/tusc2.htm>, último acesso, 30.11.2014.
“sic animi non omnes culti fructum ferunt. Atque, ut in eodem simili verser, ut ager quamvis fertilis sine cultura fructuosus esse non potest, sic sine doctrina animus; ita est utraque res sine altera debilis. Cultura autem animi philosophia est”
3Silva, José Afonso da. Ordenação Cultural da Cultura. São Paulo: Malheiros, 2001.
4Ribeiro, Darcy. O Processo Civilizatório. São Paulo: Companhia das Letras.
5 Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições [grifo nosso].
Extraído de <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>, acesso em 30.11.2014