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Ação civil pública e direito difuso à segurança pública

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Agenda 01/05/2003 às 00:00

7. Ação civil pública e direito à segurança

As ações coletivas são o mais eficaz instrumento concebido pela moderna ordem jurídica de acesso à Justiça, e, nesse universo, a ação popular, a ação civil pública e o mandado de segurança coletivo ocupam posição de destaque na proteção dos direitos de primeira, segunda, terceira e quarta gerações.

A exigibilidade e a acionabilidade dos direitos fundamentais, como, aliás, de todo e qualquer direito, [17] já não pode mais ser negado, ante o disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição, -- "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"--, e no reconhecimento de um direito processual constitucional, enquanto "reunião de princípios para o fim de regular a denominada jurisdição constitucional". [18]Seria, aliás, um contra-senso que a Constituição garantisse o gozo de todos os demais direitos subjetivos e interesses legítimos, e não garantisse aqueles que, justo por serem o que são, recebem a denominação de direitos fundamentais (dentre eles os direitos à vida, à liberdade e à segurança).

O direito à segurança tem as características de um direito difuso, como traçadas pelo art. 81, I, do CDC: transindividual, de natureza indivisível, de que são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (residir numa favela), e encontra sua garantia no art. 129, III, da Constituição, enquanto é também expressão de um interesse coletivo.

Portanto, pode o direito à segurança ser objeto de ação civil pública, nos termos do art. 1º, IV, da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, segundo o qual regem-se pelas disposições desta lei as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados "a qualquer outro interesse difuso ou coletivo".

Se o Estado, como tal considerado o representativo das esferas federal e estadual de poder, não adota medidas concretas para assegurar a inviolabilidade do direito à segurança, no cumprimento do seu dever de (prestar) segurança, pode ser demandado para esse fim, sendo "admissíveis todas as espécies de ações capazes de proporcionar sua adequada e efetiva tutela" (art. 83 CDC). A ação civil pública, no particular, poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer (art. 3º ACP), constituindo autêntica obrigação de fazer a prestação de segurança à população, que pode e deve ser prestada jurisdicionalmente, no caso de omissão do Poder Público.

A prestação dessa segurança cabe ao Estado-membro (inclusive o Distrito Federal), à medida que a ameaça de lesão à liberdade (caso de seqüestro) e à vida (caso de morte) por falta de segurança atinja a população da unidade federativa, e à União Federal, na medida em que afetadas são as instituições públicas, como, v.g., o funcionamento da polícia e da Justiça. Na cidade do Rio de Janeiro, onde os oficiais de Justiça não podem fazer citação nos morros, porque são confundidos com policiais, correndo risco de morte, e os policiais não podem portar qualquer documento de identificação, ou mesmo andarem fardados em coletivos, fica a nu que a instituição "polícia" e "Justiça" estão comprometidas pela atuação de um poder paralelo, o que justifica a ação civil pública contra o Estado do Rio de Janeiro e contra a União Federal, em litisconsórcio passivo, para que cumpram o seu dever de garantir a incolumidade do direito à liberdade (evitando seqüestros) e à vida (evitando mortes), mediante segurança pública adequada à proteção desses direitos e interesses. Portanto, os legitimados passivos são, conforme a hipótese, ou o Estado-membro (inclusive o Distrito Federal), ou a União, isoladamente, ou todos, em conjunto, se a falta de segurança atingir as instituições nacionais, ou mesmo municipais ou estaduais, mas com repercussão nacional.


8.Legitimação para agir na ação civil pública para tutela do direito à segurança

Os legitimados para a propositura da demanda para tutela do direito à segurança são os elencados no art. 5º da Lei n. 7.347/85, compreendendo o Ministério Público, a União, os Estados (o Distrito Federal), os Municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista ou associação, que, para este fim, não estão sujeitas às exigências do item I (esteja constituída há pelo menos um ano, nos termos da lei civil) desse artigo. Apesar de a Lei n. 8.884/94, art. 88, parágrafo único, (Lei Antitruste), ao dar nova redação ao inciso II da Lei n. 7.347/85, não mais mencionar a expressão "ou qualquer outro interesse difuso ou coletivo", que fora acrescentada ao dispositivo pelo art. 111 do CDC, o princípio continua em vigor, porque estes outros interesses difusos ou coletivos são objeto de proteção pelo art. 129, III, da Constituição, e pelo inciso IV do art. 1º da Lei n. 7.347/85. Assim, podem os estatutos da associação civil conter a previsão de que uma das finalidades institucionais da entidade seja a defesa de outros interesses difusos ou coletivos, para os fins de que trata a legitimação para a causa regulada nesse preceito. [19]

A União pode ter interesse em mover a ação civil pública contra o Estado-membro, quando o dever de prestar segurança caiba a estes, e o Estado-membro (o Distrito Federal), contra a União, quando esse dever caiba a esta. Podem, também, os demais legitimados demandar contra todos, em litisconsórcio passivo, ou, isoladamente, contra um ou contra outro.

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A legitimação do Ministério Público, federal ou estadual, por si ou em litisconsórcio, decorre do art. 129, inciso III, da Constituição, sendo suas funções institucionais: "promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos".

Embora se tenha considerado a legitimação do Ministério Público para a ação civil pública como extraordinária (substituição processual), ou de condutor autônomo do processo, trata-se, na verdade, de legitimação ordinária constitucional, que brota diretamente da Constituição (art. 129, III).


9.Direito difuso à segurança - Efetivação da tutela antecipada - Execução da sentença de mérito

A forma de se efetivar uma tutela antecipada ou executar uma sentença, provisória ou definitiva, no caso de direito difuso à segurança, não difere muito daqueles em que o Estado-membro e a União são condenados a fazer, aplicando-se o disposto no art. 11 da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), ou o art. 84 da Lei n. 8.78/90 (Código de Defesa do Consumidor), ou o art. 461 do Código de Processo Civil.

Porém, em razão da natureza do direito tutelado, a única tutela possível é a específica, a cargo de quem tenha o dever de prestar segurança (União; Estados-membros; Distrito Federal), não sendo de admitir-se a tutela equivalente porquanto não se pode substituir a atividade do obrigado pela de terceiros; mas, a imposição de multa e outras penalidades constritivas, inclusive contra a pessoa física da autoridade, podem ter lugar, respondendo o recalcitrante por crime de desobediência (art. 330, Cód. Penal). [20] Mesmo porque, nos termos do art. 14, inciso V, do CPC, aqueles que não cumprirem com exatidão os provimentos mandamentais ou criarem embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final, praticam ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa, alcançando física e individualmente todas as autoridades, estaduais ou federais, que procrastinarem o cumprimento da ordem.

Neste sentido, doutrina Elton Venturi, para quem, do microssistema de tutela dos direitos transindividuais extrai-se que, dada a relevância do bem jurídico tutelado, visa-se a realização prática do direito metaindividual, o que traduz a necessidade de tutela específica a ser determinada na forma do art. 84 do CDC. [21]Em relação a tais direitos, prossegue, a única forma de tutela jurisdicional eficiente é a preventiva e a específica, vale dizer aquela que preserve a natureza do direito difuso, fazendo-o útil e fruível por seus titulares. [22]


10. Considerações finais.

Embora o direito à segurança --, tanto quanto os demais direitos fundamentais da pessoa humana --, considerado na sua relação com o grupo, seja defensável mediante ação civil pública, dada a sua natureza de direito e interesse difusos, não se tem notícia de demanda proposta com esse objetivo, que tenha logrando o seu escopo.

Para esse insucesso, tem colaborado a doutrina mais ortodoxa, tendo o emérito Celso Antônio Bandeira de Mello, referindo-se a um assalto em via pública ou uma agressão sofrida em local público, afirmado que o lesado [para obter a indenização] poderia sempre argüir que "o serviço não funcionou". E complementa: "A admitir-se responsabilidade objetiva nessas hipóteses o Estado estaria erigido em segurador universal!". [23]

Talvez o emérito administrativista assim não pensasse, conhecendo como conhece hoje, a violência e a omissão estatal como elas grassam em toda parte, fazendo do ato de "ir e vir" mais um ato de sorte do que o exercício de um direito (art. 5º, XV, direito de locomoção), e, da casa, mais uma prisão particular, do que uma residência ou um asilo inviolável do indivíduo (art. 5º, XI).

A essa posição ortodoxa da doutrina, acrescente-se a orientação da jurisprudência, que se tem recusado, sistematicamente, a amparar pretensões que buscam responsabilizar o Estado por assaltos ou furto de veículos na via pública, seqüestros à luz do dia "nas barbas da polícia", etc., ao fundamento, nada justificável, de que inocorre omissão do dever estatal de prestar a segurança.

Se os direitos fundamentais, individuais e coletivos, bem assim as suas garantias, tivessem maior atenção dos constitucionalistas, e os interesses legítimos fossem mais desenvolvidos pelos administrativistas e civilistas, pondo à mostra a sua profunda diferença entre um e outro, talvez tivéssemos uma doutrina e uma jurisprudência mais ajustadas à realidade operacional do direito.

Quando a jurisprudência se der conta de que o direito à segurança é um direito fundamental da pessoa humana, cabendo ao Estado o dever de (prestar) segurança, inclusive mediante coerção judicial, através da ação civil pública, com provimentos de caráter antecipatório (art. 461 do CPC), talvez, aí, o Estado-poder se dê conta de que lhe cabe fazer cumprir a Constituição e as leis do País, para fazer jus à sua natureza de "Estado democrático de direito".


Notas

01. O direito à segurança se inclui entre os direitos de segunda geração, como se vê do disposto no art. 6º da Constituição, nestes termos: "Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."

02. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 71.

03. Neste contexto, inserem-se os direitos à vida, à liberdade e à segurança, que impõem uma atuação ativa do poder público, consistente no dever de prestar-lhes garantia, para que sejam efetivamente exercidos.

04. Fala-se também em Estado democrático de direito, para distinguir aquela especial modalidade de Estado que consagra os direitos e garantidas fundamentais da pessoa humana, dentre os quais o direito dos cidadãos de influir nos destinos políticos da Nação. O simples Estado de Direito não significa necessariamente um Estado democrático, porquanto também o Estado absolutista ou ditatorial não deixa de ser de direito, assentando numa ordem constituída segundo seus próprios métodos. Feitas estas observações, usarei o termo Estado de direito como sinônimo de Estado democrático de direito.

05. Recentemente, a mídia noticiou que o Poder Judiciário estava encontrando dificuldades para efetuar citações nos morros do Rio de Janeiro, dominados pelo tráfico, porquanto os oficiais de Justiça são impropriamente confundidos com policiais, correndo risco de morte no exercício de suas funções. Portanto, o devedor que quiser se livrar da Justiça basta, doravante, residir num desses morros e trabalhar por conta própria em local desconhecido. Tem-se preconizado, para esses casos, a citação por edital, com a conseqüente suspensão do processo, mas, por certo, essa modalidade de ciência da ação não cabe na moldura do art. 231, II, do Código de Processo Civil. É que não se pode considerar "inacessível o lugar em que se encontre" o réu, para os fins processuais, quando o Estado-juiz não tenha, ainda que em tese, autoridade para fazê-la cumprir por mandado.

06. O Globo, sexta-feira, 12 de julho de 2002, 1º caderno, pág. 19. Apenas o trecho inicial: "Mais de 50 homens armados com fuzis e pistolas, em dez carros, trocaram tiros na madrugada de ontem com policiais da 8ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM), que faziam uma ronda na Linha Amarela, na altura do acesso a Bom Sucesso, no sentido Ilha do Governador. (...) ".

07. O Globo, domingo, 1 de setembro de 2002, 1º caderno, pág. 1.

08. Se os condomínios, nas grandes cidades, se virem na contingência de montar a sua própria segurança particular, formada por homens armados, provavelmente, em pouco tempo, teremos verdadeiras forças paramilitares em atuação no País, com poder de fogo superior ao das próprias Forças Armadas.

09. Da mesma forma que a marginalidade contaminou as forças policiais de muitas unidades federativas, transformando-as em fator de apreensão social, pela dificuldade de se distinguir o marginal à paisana do marginal fardado, poderá contaminar também os Poderes Legislativo e o Judiciário, fazendo da corrupção a forma de minar as instituições

10. ZANOBINI, Guido. Corso di Diritto Amministrativo. Milano: Giuffrè, 1936/1959, pp. 187 e 188.

11. Registra Mancuso que a Corte de Cassação italiana, no julgamento do caso "Itália Nostra" (no qual essa associação se apresentara como portadora dos interesses difusos à proteção ambiental) aproximou os conceitos de interesse difuso e interesse legítimo. MANCUSO, Rodolfo de Camargo Mancuso. Interesses Difusos, conceito e legitimação para agir, 4 ed. São Paulo: Saraiva: 1997, pp. 143-144.

12. Direito potestativo, na lição de Chiovenda, é aquele ao qual não corresponde nenhuma obrigação, na medida em que os efeitos que produz não depende de qualquer ato do seu destinatário, que fica apenas sujeito ao efeito jurídico produzido.

13. As guardas municipais estruturadas pelos Municípios destinam-se à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei (art. 144, § 8º), mas nem esse objetivo têm cumprido, como se viu do atentado a bala contra prédios municipais, inclusive delegacias de polícia, no Rio de Janeiro.

14. Favelista é o mesmo que favelado, ou seja, o habitante da favela.

15. PAJARDI, Piero. I provvedimenti d´urgenza atipici nel processo civile. Milano: Pirola Editore, 1992, p. 292.

16. Sequer o Poder Judiciário se exime de omissão na área da segurança pública, na medida em que não se aparelha para cumprir o seu ofício jurisdicional, de processar e condenar os responsáveis pela violência que gera a insegurança, dando ensejo a habeas corpus por excesso de prazo, seja na ultimação do inquérito policial, seja na do próprio processo penal

17. "Art. 75 (Cód. Civil). A todo direito corresponde uma ação, que o assegura".

18. SCHWAB, Karl Heinz, Divisão de funções e o juiz natural, in RePro n. 48, 1987, p. 125 (tradução de Nelson Nery Junior). NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 2ª ed. São Paulo: Ed. RT, 1995, p. 19.

19. NERY JUNIOR, Nelson. ANDRADE NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, 2001, p. 1.532.

20. Registra Kazuo Watanabe que "o art. 330 do Código Penal, ao tipificar como delito a desobediência a ordem legal de funcionário público, completa todo esse quadro, tornando perfeitamente admissível a adoção entre nós da ação mandamental de eficácia próxima à injunction do sistema da common law e da ´ação inibitória´ do direito italiano". WATANABE, Kazuo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, 3ª ed. São Paulo: Forense, 1993, p. 525. Apud VENTURI, Elton. Op. cit., nota n. 6, p. 95.

21. VENTURI, Elton. Execução da tutela coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 93.

22. Idem, p. 94.

23. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Elementos de Direito Administrativo, 2 e. São Paulo: Ed. RT, pp. 344 a 347. Apud CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, 2 ed., 4 tir. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 178.

Sobre o autor
José Eduardo Carreira Alvim

Advogado. Ex-Juiz do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Professor da UFRJ. Doutor em Direito pela UFMG. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVIM, José Eduardo Carreira. Ação civil pública e direito difuso à segurança pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4079. Acesso em: 4 dez. 2024.

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