O “bem de família” é um instituto jurídico que garante proteção patrimonial familiar, assegurando, assim, as mínimas condições para uma digna sobrevivência. Pode ser instituído por vontade própria, observadas as regras do Código Civil Brasileiro (artigos 1.711 e seguintes úteis) ou, independentemente da manifestação de vontade, ganhar força normativa erga omnes através da Lei 8.009/1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade deste instituto.
O artigo 1º da Lei descreve o seguinte:
“O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único: A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.”
O artigo 5º traz o conceito de residência:
“Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente”.
Via de regra, o devedor, quando executado, responde com todo o seu patrimônio pelas dívidas adquiridas, ressalvadas as exceções legais (artigos 648 e seguintes do CPC), cujos bens podem ser afetados pelo ato da constrição, penhorando-os para garantir o pagamento da dívida ao credor.
No entanto, quando o imóvel do devedor se amoldar nos conceitos de bem de família, a lei determina uma proteção patrimonial consistente na impossibilidade de se penhorar o imóvel utilizado como moradia familiar permanente.
Ocorre que a impenhorabilidade do bem de família comporta as exceções elencadas no artigo 3º da Lei 8.009/1990, a saber:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I - (Revogado pela Lei Complementar nº 150, de 2015);
II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III – pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida; (grifamos) (Redação dada pela Lei nº 13.144 de 2015)
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens;
VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
Veja que a regra da impenhorabilidade não é absoluta, porquanto há exceções advindas na própria lei que regulamenta o tema. Dentre o rol do artigo 3º, citamos a permissão de se penhorar bem imóvel do devedor para garantir o pagamento de dívidas provenientes de pensão alimentícia, mesmo tratando-se de bem de família (inciso III).
Antes da Lei 13.144/2015, o imóvel do devedor respondia integralmente pelo não pagamento da pensão alimentícia ao credor, ou seja, a penhora poderia incidir sobre a totalidade do bem imóvel. Pelo menos era o que descrevia o anterior inciso III do artigo 3º da Lei 8.009/1990, interpretando-o literalmente. A redação original era: “(...) III – pelo credor da pensão alimentícia”.
Essa exceção da impenhorabilidade quanto ao crédito alimentar foi restringida com o advento da Lei 13.144/2015, de 06 de julho de 2015, que alterou o inciso III do artigo 3º da Lei 8.009/1990, assegurando especial proteção ao patrimônio do novo cônjuge ou companheiro do devedor de pensão alimentícia. É uma exceção da exceção.
Entretanto, a doutrina e a jurisprudência, antes da vigência da nova lei, já se inclinavam no sentido de se preservar a metade do bem imóvel pertencente ao cônjuge ou companheiro do devedor de alimentos, por vezes assentando que o imóvel sequer poderia ser penhorado.
Nas situações fáticas em que o credor de alimentos solicitava a penhora da totalidade do imóvel do devedor para garantir o pagamento da dívida alimentar, mesmo se tratando de bem de família, a preservação da cota-parte do cônjuge ou companheiro era buscada através dos Embargos de Terceiro no intuito de se desconstituir a penhora outrora determinada. O pedido era baseado na Súmula 134 do STJ (“Embora intimado da penhora em imóvel do casal, o cônjuge do executado pode opor embargos de terceiro para defesa de sua meação”); no artigo 1.228 do Código Civil, entre outros.
Malgrado os posicionamentos contrários, estamos tratando de dívida alimentar, direito personalíssimo do credor, e não dívidas outras que possibilitam discussões jurídicas sobre preservação de meação através de Embargos de Terceiro, com invocação de súmula ou outra norma da legislação. Dívidas de alimento, por sua natureza, não podem ser comparadas com outras dívidas gerais e/ou quirografárias.
Com o advento da nova lei, certamente os Embargos de Terceiros serão minorados nas situações concernentes à pensão alimentícia, já que o credor dos alimentos, por expressa disposição legal, tem agora plena consciência de que poderá requerer a penhora de somente metade do imóvel do devedor, resguardando-se os direitos de propriedade do cônjuge ou companheiro. Ainda que se intente a penhora sobre a totalidade do imóvel, poderá o juiz de plano indeferir o pedido ou aceitar a constrição somente sobre a parte pertencente ao devedor.
Apenas a título de esclarecimento, o resguardo da meação do cônjuge ou companheiro do devedor da pensão alimentícia depende do regime de bens provenientes da nova relação conjugal ou da união estável.
Respeitando as posições divergentes, entendo que o novo inciso III do artigo 3º da Lei 8.009/1990 não comporta interpretação ampliativa. Se o legislador quisesse tornar totalmente impenhorável o bem de família do devedor de dívidas alimentícias que contraiu novas núpcias ou convive com outrem, teria revogado o referido inciso e não restringido o seu alcance.
Com a nova Lei, se o devedor é casado ou possui união estável com outrem, o seu imóvel, ainda que se trate de bem de família, poderá, sim, sofrer constrição judicial através da penhora para garantir o pagamento ao credor, mesmo que não atinja a totalidade do bem, cumprindo o que a lei determina para resguardar os direitos que o cônjuge ou convivente possui sobre o imóvel penhorado, reservando-se a sua quota parte ou meação.
Assim, ainda que a nova lei tenha restringido o alcance da constrição para somente a metade pertencente ao devedor, num nítido retrocesso, por certo não há que se falar em impossibilidade total de penhora do bem de família, porque não é isso o que a lei editou. As teses e decisões que afastavam a penhora sobre a totalidade do bem imóvel familiar do devedor não mais subsistem ante a dicção legal da alteração legislativa. Se assim não ocorrer, estar-se-á praticando atos contra a legalidade posta.
Outrossim, situações extravagantes poderão existir. Havendo a penhora e, consequentemente, a arrematação da cota-parte do devedor em hasta pública, formar-se-á um condomínio entre o novo proprietário e o cônjuge ou companheiro do devedor que teve protegido o seu direito sobre a metade do imóvel.
Na legislação pátria, há vários dispositivos que regulamentam as matérias atinentes aos condomínios e não é difícil perceber que problemas entre os coproprietários (novo proprietário e cônjuge ou companheiro do devedor) podem surgir facilmente, citando-se como exemplo dificuldades no rateio do pagamento das despesas; exigência unilateral de divisão da coisa comum; imposição sobre a venda do imóvel quando prejudicada a adjudicação a um só, dentre outros motivos que pode desencadear constrangimentos e intimidações desarrazoadas.
Doutro lado, a nova lei acabou por minorar as possibilidades do credor de alimentos ver satisfeito o pagamento do débito alimentar pelo devedor que contraiu novas núpcias ou convive em união estável. Se a dívida alimentar for maior que o valor da metade penhorada, o credor terá ainda que buscar contra o devedor outras formas legais para que a dívida seja quitada, e não raras vezes, o devedor não tem e não quer ter outros meios que possam garantir o pagamento do débito.
Por certo, a preservação dos direitos sobre a metade do imóvel conferida ao coproprietário cônjuge ou companheiro do devedor carrega em si o objetivo de justiça, segurança jurídica, dignidade da pessoa e da família, além dos direitos de uso, gozo e disposição inerentes à propriedade, quando revestido de boa-fé.
Entretanto, com o advento da nova lei, poderá se abrir ao devedor uma possibilidade, data venia, de lesão futura aos direitos do credor, já que aquele poderá contrair novas núpcias e, posteriormente, deixar de pagar a verba alimentar por um longo período de tempo, restando ao credor apenas pleitear a constrição de metade do bem imóvel, talvez insuficiente para a quitação integral do débito.
A alteração legislativa feita pela Lei 13.144/2015 carrega em si valores a serem ponderados. De um lado, restringiu-se o direito do credor de pensão alimentícia ver satisfeito o pagamento integral da verba alimentar, mais facilmente possível se a penhora fosse permitida sobre a totalidade do bem imóvel do devedor. De outro lado, há a proteção ao patrimônio do novo cônjuge ou companheiro do devedor, resguardando-se a sua meação, mas que poderá ser usada como burla aos direitos do credor.
Não resta qualquer dúvida de que a nova complementação restritiva do inciso III do artigo 3º da Lei 8.009/1990, advinda com a Lei 13.144/2015, trará mais prejuízos ao credor da pensão alimentícia do que benefícios ao companheiro ou cônjuge do devedor de alimentos.
A única vantagem na alteração do referido inciso III é a tendência de se esgotar qualquer discussão sobre a impenhorabilidade total do bem de família do devedor casado, sob pena de incorrer o julgador em flagrante desrespeito à ordem legal expressa. Atos de excussão patrimonial sobre o imóvel familiar do devedor de alimentos são permitidos, ainda que somente sobre a sua cota-parte, afastando-se, assim, as decisões que impunham a impenhorabilidade integral do bem.
O Direito como ciência deve evoluir na medida em que a sociedade avança no tempo. Por vezes justificável, a falta de sintonia e paralelismo entre as transformações é inerente ao próprio sistema social, mas o retrocesso, nefasto, fragiliza a confiança depositada no Poder Público.