Resumo: No Século XXI, após a promulgação da Constituição de 1988 e a consolidação da democracia e dos direitos fundamentais, no Brasil, o Poder Judiciário passou a criar direitos e normas que não encontram fundamento expresso no texto constitucional. Assim, o STF declarou a existência de direitos não escritos na Constituição, legalizou a união civil entre pessoas do mesmo gênero e permitiu a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos; o CNJ criou o casamento entre pessoas do mesmo gênero e o TSE estabeleceu a verticalização das coligações partidárias, instituiu a hipótese de perda de mandato por infidelidade partidária e alterou a representação das unidades da Federação no Parlamento. Esse ativismo judiciário que cria direitos e normas jurídicas que não constam expressamente do texto da Constituição tem dividido opiniões entre os juristas. O presente estudo analisa a legitimidade de um posicionamento mais forte do judiciário na defesa do procedimento democrático e das minorias, sob o fundamento teórico de John Hart Ely.
Palavras-chave: Constituição - ativismo judicial – hermenêutica jurídica.
Abstract: In the XXI century, after the promulgation of the 1988 Constitution and the consolidation of democracy and the fundamental rights, in Brazil, the Judiciary Power started to create rights and rules which do not find fundament expressed by the constitutional text. Thus, the STF declared the existence of rights not written in the Constitution, it legalized the civil union between people of the same gender and permitted the interruption of pregnancy of anencephalic fetuses. The CNJ created the marriage between people of the same gender and the TSE established the verticalization of coalitions between political parties, it instituted the possibility of mandate loss for unfaithfulness to political parties and altered the representation of Federation units in Parliament. This Judiciary activism, which creates rights and rules that are not expressly in the Constitutional text, has divided opinions between jurists. The present study analyzes the issue of the legitimacy of a stronger position of the judiciary in defense of the democratic procedure and of minorities, under John Hart Ely’s theoretical fundament.
Key words: Constitution – judicial activism – juridical hermeneutics.
Sumário: Introdução. 1. O ativismo judicial do STF. 2. Os juízes devem interpretar ou criar o texto da Constituição? 3. John Hart Ely e a legitimidade do ativismo judicial na defesa do procedimento democrático e das minorias. 4. O momento histórico do ativismo judicial. Conclusão.
Introdução
Após a consolidação da democracia brasileira, com a promulgação da Constituição de 1988, o Poder Judiciário passou a tomar decisões que não têm o seu fundamento claramente expresso no texto da Constituição de 1988. Por meio dessa atitude ativista do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal declarou a existência de direitos não escritos na Constituição, legalizou a união civil entre pessoas do mesmo gênero e permitiu a interrupção de gravidez no caso de anencefalia; o Conselho Nacional de Justiça criou o casamento entre pessoas do mesmo gênero e o Tribunal Superior Eleitoral estabeleceu a verticalização das coligações, instituiu hipótese de perda de mandato por infidelidade partidária e alterou a representação dos Estados e do Distrito Federal na Câmara dos Deputados.
O presente artigo pretende analisar a legitimidade democrática dessas decisões que podem não ter o seu fundamento encontrado claramente com base na análise do texto expresso da Constituição de 1988.
Para cumprir o proposto, primeiro se verificará o ativismo judicial[3] do STF, bem como se analisarão os argumentos favoráveis e contrários expostos pela doutrina especializada. Em seguida, será exposta especificamente a teoria de John Hart Ely sobre a legitimidade do ativismo judicial na defesa do procedimento democrático e das minorias. Por fim, analisar-se-á o momento histórico no qual o Poder Judiciário tornou-se ativista, bem como serão apresentadas breves conclusões sobre a legitimidade democrática de uma atitude mais forte do Poder Judiciário na defesa do procedimento democrático e das minorias.
1.A legitimidade democrática e o ativismo do Poder Judiciário
A legitimidade democrática do Poder Judiciário, composto exclusivamente por juízes não eleitos, para declarar nula uma norma elaborada pelos representantes eleitos pelo povo brasileiro, que ocupam cargos no Poder Legislativo (deputados e senadores) e no Poder Executivo (presidente), decorre da Constituição democraticamente aprovada pelo Poder Constituinte em 1988. Assim, ao realizar o controle de constitucionalidade, os juízes somente fazem prevalecer a vontade democrática do Poder Constituinte, escrita na Constituição de 1988, sobre a vontade democrática dos poderes constituídos, escritas nas normas infraconstitucionais.
Segundo Hamilton:
“a Constituição deve prevalecer sobre a lei ordinária, a lei do povo sobre a de seus agentes. Todavia, esta conclusão não deve significar uma superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Somente supõe que o poder do povo é superior a ambos; e que, sempre que a vontade do Legislativo, traduzida em suas leis, se opuser a do povo, declarada na Constituição, os juízes devem obedecer a esta, não àquela, pautando suas decisões pela lei básica, não pelas ordinárias” (HAMILTON, 2005, p. 470).
Esse argumento, defendido por Hamilton (2005) e por Sieyès (2001), no Século XVIII, implantado por John Marshall (1994), no Século XIX, tem sido repetido, por mais de dois séculos, por diversos outros defensores do controle de constitucionalidade, como Hans Kelsen (2003), no Século XX, ou Luis Roberto Barroso (2009), no Século XXI.
Contudo, da mesma forma que fez a Suprema Corte norte-americana anteriormente[4], o Supremo Tribunal Federal, o Tribunal Superior Eleitoral e o Conselho Nacional de Justiça passaram a criar direitos e a tomar decisões que não podem ser encontradas explicitamente no texto da Constituição de 1988 ou nas demais normas do ordenamento jurídico brasileiro.
No Século XXI, sem ter um fundamento claro no texto expresso da Constituição, o Poder Judiciário criou a verticalização das coligações, hipótese de perda de mandato por infidelidade partidária, direitos não escritos na Constituição, união civil entre pessoas do mesmo gênero, hipótese legal de interrupção de gravidez no caso de anencefalia, alterou representação dos Estados e do Distrito Federal na Câmara dos Deputados e criou o casamento entre pessoas do mesmo gênero.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por meio da Resolução 20.121/98 e da Resolução 20.993/2002[5], sem que houvesse nem uma norma expressa na Constituição nesse sentido, criou a obrigatoriedade de que houvesse compatibilidade entre coligações partidárias para as eleições estaduais com as coligações partidárias para a candidatura para Presidente da República. Em resposta ao ativismo judicial do TSE, o Congresso Nacional, por meio da Emenda Constitucional nº 52/2006, alterou o texto do § 1º do art. 17 da Constituição de 1988, a fim de garantir a autonomia partidária para adotar coligações sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal. Dessa forma, derrubou a verticalização das coligações criada pela jurisprudência do TSE.
Em 2007, o Tribunal Superior Eleitoral criou uma hipótese de perda de mandado eletivo por infidelidade partidária não prevista na Constituição de 1988 ou em alguma lei eleitoral. O TSE criou a hipótese de perda de mandato no julgamento da resposta à Consulta n.º 1398, do Partido da Frente Liberal (atual DEM), em 27 de março de 2007. No referido julgamento, o TSE decidiu que os mandatos obtidos nas eleições, pelo sistema proporcional (deputados estaduais, federais e vereadores), pertencem aos partidos políticos ou às coligações e não aos candidatos eleitos. No mesmo ano, a Resolução do TSE nº 22.610/2007, declarada constitucional pelo STF nos acórdãos das ADIs nº 3999 e nº 4086, criou o procedimento que disciplina a perda de cargo eletivo e o processo de desfiliação partidária.
Em 2011, o Supremo Tribunal Federal criou jurisprudencialmente o “direito à preferência sexual”, o “direito à autoestima” e o “direito à busca da felicidade”[6], que não estavam escritos na Constituição ou em alguma norma do direito brasileiro. Com fundamento nos referidos direitos não escritos e de outras normas do direito brasileiro, “criou” a união civil entre pessoas do mesmo sexo, no Acórdão que decidiu a ADI 4.277-DF e a Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132-RJ[7].
Em 2012, o STF criou uma hipótese de interrupção legal de gravidez ao estabelecer que é inconstitucional a interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, no julgamento da ADPF n.º 54.
Em 2013, a Resolução do TSE nº 23.389 alterou a representação dos Estados e do Distrito Federal na Câmara dos Deputados para as eleições de 2014. Em resposta, o Congresso Nacional estabeleceu o Decreto Legislativo nº 424/2013, que sustou um ato normativo emanado do Poder Judiciário. No julgamento da ADI nº 4.965/DF e da ADI nº 4.963/DF, o STF, por sete votos a três, declarou a inconstitucionalidade do Decreto Legislativo nº 424/2013.
No mesmo ano de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sem que houvesse nenhuma norma explícita na Constituição de 1988, criou o casamento entre pessoas do mesmo gênero, por meio da Resolução 175, bem como vedou a recusa da realização da habilitação, da celebração de casamento civil ou da conversão de união estável pelas autoridades competentes.
Com esses e outros exemplos, o Poder Judiciário, composto por membros não eleitos, tem imposto uma parcela substancial das regras que disciplinam a democracia e os direitos fundamentais dos brasileiros.
Por um lado, essa atitude é defendida por alguns juristas. Por exemplo, o Ministro do STF, Luis Roberto Barroso (2009, p.8), afirma que o ativismo judicial normalmente se instala em situações de retração do Poder Legislativo, decorrente de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, que impediria que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. Esse descolamento acarretaria “uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes” (BARROSO, 2009, p.8).
Para o Ministro, nos últimos anos, uma persistente crise de representatividade, de legitimidade e de funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judiciário nessa direção, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem omissões e, por vezes, inovam na ordem jurídica, com caráter normativo geral (BARROSO, 2009, p.8).
O fenômeno, segundo Luis Roberto Barroso (2009, p.9), tem sua face positiva: o Judiciário está atendendo às demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo Parlamento.
Por outro lado, o ativismo judicial sofre críticas. Ao analisar a possibilidade da regulação da união homoafetiva por decisão judicial, os juristas Lênio Luiz Streck, Vicente de Paulo Barreto e Rafael Tomaz de Oliveira (2009, p. 81) afirmaram que, em uma democracia, não se quer saber o que o juiz pensa sobre determinado fenômeno e, definitivamente, o direito não é – e não pode ser – aquilo que o judiciário “diz que é”!
Segundo Streck, Barreto e Oliveira (2009, p.81), não cabe ao Poder Judiciário “colmatar lacunas” do constituinte. Ao permitir decisões ativistas, de acordo com esses juristas, estar-se-á incentivando que o Judiciário “crie” uma Constituição “paralela” (uma verdadeira “Constituição do B”), estabelecendo, a partir da subjetividade dos juízes, aquilo que “indevidamente” – a critério do intérprete – não constou no pacto constituinte. Segundo os referidos autores, há limites hermenêuticos para que o Judiciário se transforme em legislador (STRECK, BARRETO e OLIVEIRA, 2009, p.81).
2.Os juízes devem interpretar ou criar o texto da Constituição?
Nesse debate polifônico sobre se cabe aos juízes ou ao Parlamento criar o direito, ocorreu uma bipolarização fundamental entre as posições chamadas “interpretativistas” e as posições denominadas de “não-interpretativistas”[8] Para os primeiros, em termos gerais, os juízes, ao realizarem o controle de constitucionalidade deveriam limitar-se a aplicar as normas escritas na Constituição ou claramente implícitas nela. A segunda posição, por sua vez, defende que a Justiça Constitucional não deveria restringir-se a esses termos, ao contrário, deveria ir mais além e aplicar normas que podem ser descobertas fora do corpo do documento (ELY, 1980, p.1).
Enquanto as correntes “não interpretativistas” procuram fundamentos legítimos para a realização do controle de constitucionalidade (GREY, 1975, pp. 43 a 72) nos valores do juiz, no direito natural, nos princípios neutrais[9], na razão, na tradição, no consenso e no predecting progress[10], os “interpretativistas”, ao contrário, afirmam que qualquer fundamento para o controle de constitucionalidade das leis que não esteja na Constituição (ou implícito nela) é antidemocrático e, portanto, ilegítimo. A dicotomia entre “interpretativismo” e “não interpretativismo” remete, em linhas gerais, à antiga distinção que abrange todo o direito entre direito positivo e direito natural. Nesse sentido, o “interpretativismo” seria análogo ao positivismo e as correntes jusnaturalistas seriam similares às correntes “não-interpretativistas” (ELY, 1980, p. 1).
Segundo Robert H. Bork (1990, pp. 06 e 07):
“[os defensores do ativismo judicial] desenvolveram uma filosofia [...] de acordo com a qual os juízes devem criar direitos individuais que ponham de lado decisões democráticas. Estes direitos, por maior que seja a extensão dada as palavras do documento ou aos materiais históricos, não são encontrados na Constituição, mas apesar disso, devem ser estabelecidos como uma ordem constitucional. É evidente, então, que o debate [...] é um debate sobre até onde a vida – até onde a moralidade, os arranjos sociais e econômicos [...] - deve ser governada pelos juízes e até onde deve ser governada pelo povo, atuando através das instituições da democracia”.
Os “interpretativistas” postulam que a única fonte de legitimação do Poder Judiciário é a própria Constituição. Essa, na qualidade de norma suprema do Estado, constitui os poderes políticos do Estado como limitados e estabelece que o poder político democrático é o seu valor fundamental. Portanto, a realização do controle de constitucionalidade, além de ser um mecanismo excepcional, somente é admissível e possível se tiver como fundamento a própria Lei Fundamental. Mesmo que admitam em geral que não seja possível encontrar a resposta completa e acabada de todas as questões que envolvem o controle de constitucionalidade na Constituição (ELY, 1980, p. 2)[11], diferenciam-se dos “não interpretativistas” pela defesa de que um ato do poder público somente pode ser declarado inconstitucional de acordo com uma interpretação cujo ponto de partida possa, pelo menos, ser descoberto com claridade na Constituição. Caso não seja possível fundamentar o controle de constitucionalidade no texto da Lei Maior, a competência decisória para a questão pertence aos órgãos democraticamente eleitos e democraticamente substituídos pelo voto popular.
Esse limite ao controle da constitucionalidade dos atos dos órgãos eleitos é posto pelo princípio democrático. Sem ter por fundamento o texto claro da Constituição, a decisão judicial não pode substituir a decisão política legislativa da maioria democrática por lhes faltar legitimidade democrática. De acordo com o entendimento “interpretativista”, fazer isso seria transformar o Estado de Direito na “Lei dos Juízes”. Segundo os seguidores das teorias “interpretativistas”, fora das garantias especificadas no texto da Constituição, são as instituições democráticas que governam o Estado (BORK, 1990, p. 7).
Em linhas gerais, os “interpretativistas” admitem que as limitações ao governo da maioria são necessárias, mas enquanto os “não interpretativistas” defendem que juízes não eleitos e livres de qualquer responsabilidade política devem selecionar e definir aqueles valores que devem ser protegidos da vontade da maioria, os “intepretativistas” insistem que essas limitações somente podem ser feitas pela própria Constituição. Dessa maneira, não seriam os juízes que controlariam o povo, mas, sim, a Constituição, esta seria o instrumento pelo qual o povo controla a si mesmo.
Nesse sentido, o respeito pelo texto funcionaria como um substituto de uma responsabilidade política que os juízes não possuem e fixaria o limite adequado entre o poder da maioria e os direitos da minoria. Enquanto os juízes respeitarem esse limite estariam a agir de forma legitimada. Se, ao contrário, os juízes procurarem estabelecer direitos (QUEIROZ, 2000, p. 203 a 204) por intermédio de uma filosofia ou de um raciocínio filosófico, produzirão direitos contra o raciocínio majoritário da população, que repousarão em nada mais firme do que as predileções de uma maioria de juízes que por acaso esteja no cargo em um determinado momento (BORK, 1990, p. 8).
3.John Hart Ely e a legitimidade do ativismo judicial na defesa do procedimento democrático e das minorias.
Para justificar o ativismo judicial, o Ministro Luis Roberto Barroso fundamenta-se no argumento de que a Constituição desempenha dois grandes papéis: um é estabelecer as regras do jogo democrático e o outro é proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de quem tem mais votos. Como o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal, seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais (BARROSO, 2009, p. 11 e 12).
Portanto, de acordo com o Ministro do STF, a jurisdição constitucional é mais uma garantia para a democracia do que um risco (BARROSO, 2009, p. 12). Segundo Barroso (2009, p. 12), o STF deve ser deferente para com as deliberações do Congresso. Com exceção do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em relação a tudo mais, os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos.
O argumento apresentado pelo Ministro do STF foi proposto por John Hart Ely, no seu livro Democracy and Distrust, de 1980. No referido livro, Ely demonstra a impossibilidade de um “interpretativismo” vinculado ao texto, a ilegitimidade democrática do “não interpretativismo” e propõe estabelecer uma síntese entre as duas correntes. Para Ely, uma visão “interpretavista” – ao menos a que considera a Constituição como uma unidade fechada – é incapaz de manter-se perante o manifesto de algumas de suas próprias disposições. Da mesma forma, diz o autor, se buscamos uma fonte externa com a qual preencher a textura aberta da Constituição – uma fonte que não termine por simplesmente em constituir a Suprema Corte em uma Câmara de revisão legislativa – buscamos em vão (ELY, 1980, pp. 73 e ss.).
Segundo Ely (1980, pp. 73 e ss.), apenas uma teoria que enxergue o controle de constitucionalidade como um reforço da democracia - e não como um guardião superior que arbitra quais resultados devem e quais não devem ser admitidos - será compatível com a própria democracia.
Desvinculando-se, assim, tanto das teorias “interpretativistas”, quanto das “não interpretativistas”, Ely (1980, pp. 73 e ss.) não se propõe a criar uma nova teoria, mas, sim, a interpretar a jurisprudência da Corte Warren[12]. Essa Corte, diz ele, foi a primeira a atuar na defesa do adequado funcionamento do processo democrático (ELY, 1980, pp. 73 e ss.).
Durante a Corte Warren, a Justiça Constitucional americana assegurou respeito aos direitos dos acusados, a liberdade de expressão e de associação política, combateu as restrições ao sufrágio, especialmente quando pretendiam subestimar os votos dos negros ou de setores marginais da população, e defendeu o trato igual para os desiguais da sociedade, em especial as minorias raciais, os estrangeiros ilegais e os pobres (ELY, 1980, pp.73 e 74).
Com essa jurisprudência, segundo Ely (1980, pp. 74 e 75), a Justiça Constitucional procurou proteger o processo político, mantendo-o aberto a todos. Os objetivos foram, por um lado, limpar os canais de câmbio político e, por outro, corrigir certos tipos de discriminação política contra minorias.
Esses são valores participativos cuja imposição não é incompatível com o sistema de democracia participativa; ao contrário, é condicionante desse sistema. Os tribunais, por serem independentes do processo político, encontram-se em condições excepcionais para “defendê-los” (ELY, 1980, p. 75).
O enfoque adotado pela Corte Warren, afirma Ely (1980, pp. 75 e 76), foi antecipado pela nota de rodapé n.º 4 do voto proferido por Harlan Stone no caso United States vs. Carolene Products Co, julgado em 1938, pela Suprema Corte. Essa nota de rodapé aponta um procedimento a ser utilizado na avaliação da validade de uma lei. Primeiro, afirma que os juízes devem se ater o máximo possível ao texto; mas ressalva que em determinadas situações o texto não é suficiente e que, portanto, os juízes devem avaliar se os canais de participação e de comunicação política estavam abertos e verificar se a norma em questão discrimina ou prejudica grupos minoritários.
Do exposto, pode-se concluir que a Justiça Constitucional deve, a princípio, exercer uma função de garantidora do texto da Constituição se entender que o ato não discriminou minorias e que não houve impedimento dos canais de comunicação política. Contudo, caso os juízes constitucionais concluam que não houve livre participação dos cidadãos nas decisões governamentais e/ou que os atos do poder público discriminam ou violam os direitos das minorias, a atuação da Justiça Constitucional deve ser mais abrangente e incisiva, deixando de lado a política do autocontenção judicial e adotando o ativismo judicial.
Para Ely (1980), os direitos de participação política e os direitos das minorias derivam do princípio democrático em virtude de condicionarem a eficácia desse princípio. A Justiça Constitucional, ao defendê-los dos abusos aos quais estão expostos, não lesa; mas, antes, reforça, o próprio princípio democrático.
Assim, com base no pensamento de John Hart Ely, as decisões ativistas do Poder Judiciário brasileiro relativas ao procedimento democrático (verticalização das coligações; perda de mandato por infidelidade partidária; alteração da representação dos Estados) e em defesa de minorias, com fundamento no princípio da isonomia, para garantir que os direitos que a maioria se concede sejam garantidos às minorias (instituição da união civil e do casamento entre pessoas do mesmo gênero; estabelecimento de direitos não escritos na Constituição; permissão da interrupção de gravidez do feto anencefálico) seriam legítimas por defender o processo democrático e as minorias das violações a que estão sujeitos pela maioria no Parlamento. As referidas decisões em defesa do procedimento democrático e das minorias reforçariam, em vez de violar o princípio democrático.