A democratização do direito na seara processual penal que surge na instância da jurisdição é algo equidistante para os menos favorecidos e que tem como uma de suas naturezas as leis, construídas, quase sempre pela elite.
No pensamento grego encontraremos a idéia da existência de um direito baseado no mais íntimo da natureza humana, como ser individual ou coletivo, como acreditavam alguns pensadores, existir um direito natural permanente e eternamente válido, independente de legislação, convenção ou qualquer outro expediente, imaginado pelo ser humano.
Tem-se no direito desde os tempos mais longevos, na fundamentação, a procura de razões para a existência da veracidade, através de mecanismos, buscando a concretização para o ordenamento dirigente da sociedade. A democratização do acesso à justiça é menos célere aos mais pobres.
O estudo de sua fundamentação deve caminhar além das teorias do direito positivo e natural, explicitando as demais formas de fundamentação que justifiquem o direito nas duas vertentes de pensamento: validade imutável no caminhar dos tempos, conectando-se aos princípios fundamentais de ordem abstrata, que correspondem à ideia de justiça, e de outra banda, por tempo determinado na vigência, como assevera Vasconcelos:
[...] direito positivo, portanto, que compete disponibilizar os meios legislativos ou judiciais para sua constante compatibilização com o ritmo do progresso social. Ao direito natural, tornado-lhe os princípios disponíveis, cabe fornecer-lhe as diretrizes desse ajuste. O que envelhece e se desatualiza são as normas do direito positivo, e não os princípios do direito natural, os quais, por seu descompromisso com os fatos da história, não contam tempo, nem perecem. (VASCONCELOS, 2006, p. 53).
Existe coação no mundo jurídico? A questão é identificar onde ela se encontra. Facilmente identificável ao se verificar o exato momento em que o ser é chamado a comparecer a contenda judicial em que há contendores sem o patrocínio de um bom jurista [1].
O direito, o humanismo e a democracia devem estar presentes nos tribunais que longe de serem estéreis e frios capitaneados pela letra seca da lei, pelo texto da doutrina e da jurisprudência, seja um palpitante convite à grande reflexão do arcabouço jurídico, que precisa ser interpretado holisticamente, visando extrair do direito a justiça reta aos que dela necessitam, com o apoio dos princípios fundamentais [2]. Afirmativa do contemporâneo Bobbio:
[...] direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais. (BOBBIO, 1992, p. 01).
Como pensar os pobres no processo penal? Tudo é muito evidente. Sem dúvida. Mas na verdade, as pessoas em geral temem os raciocínios complexos, como no direito, pois exige concentração e aprofundamento teórico, e que não estão afeitas a vida cotidiana dominada pela urgência.
A responsabilidade de pautar as ações em normas jurídicas, responderia ao chamado do princípio da legalidade, que a Constituição da República consagrou-o no art. 5º, inciso XXXIX, que aduz: "não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal", buscando nesse sentido, aparecer com o fim de agregar a defesa dos menos possuídos financeiramente e intelectualmente.
O pré-julgamento realizado pela imprensa pode induzir e levar a grandes erros no judiciário, em que a busca pela verdade é soterrada quando da exposição exagerada dos operadores jurídicos. Nessa seara, incluindo-se todos os artesões, advogados, promotores, juízes, e, sobretudo, os jurados, ao fascinante poder exercido pela mídia. Disse Barbosa, (1914), com grande sapiência que: “[...] de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus - o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”.
As diferenças sociais e desigualdades ideológicas são inevitáveis, cabendo ao Estado equilibrar os desníveis, aparando arestas, incidindo neste ponto a justiça isonômica, buscando o equilíbrio, dando direito e buscando justiça para um processo justo.
Para Reale (1999), “[...] o adjetivo democrático pode também indicar o propósito de passar-se de um Estado de Direito, meramente formal, a um Estado de Direito e de Justiça Social, isto é, instaurado concretamente com base nos valores fundantes da comunidade”.
O homem e o direito convivem na mesma morada, o lastro das possibilidades, onde se constrói o mundo dos valores. Direito injusto é, sem dúvida, direito. Direito deturpado, construído fora do seu modelo ideal e próprio, confiado aos aplicadores sem compromisso com a verdade, devem ser combatidos.
Na aplicação da pena ao condenado o juiz tem papel fundamental e deve observar determinadas circunstâncias, umas objetivas e outras subjetivas. Segundo Silva:
[...] magistrado, que manteve contato com o acusado, vítima, testemunhas e demais participantes do processo, e teve a oportunidade de colher a prova diretamente, estará sempre em melhores condições, fática e jurídica, inclusive pessoal de decidir, impondo uma pena que não seja mera medida aritmética, mas espelhe a realidade do que presenciou, vivenciou e depreendeu de todo o feito (SILVA, 1993, p. 9/10).
É fundamental democratizar o modelo penal de acordo com os princípios reitores do direito, visando à busca da verdade real, com a correta interpretação das leis postas em prol da cidadania e direitos fundamentais reconhecidos pela doutrina e jurisprudência mais avançada.
A estrita observância aos direitos humanos no processo penal é importante no que diz respeito à blindagem das garantias judiciais, independência do judiciário, prerrogativas de defesa ampla e do contraditório.
O contraditório deve ser experimentado por ambas as partes no processo e não somente à defesa, como já se pensou. A noção de contraditório deve ser incrementada como afirmado por Marques (1988) “no processo penal, então, em que as formas processuais se destinam a garantir direitos imediatamente tutelados pela Constituição, das diretrizes políticas desta é que partem os postulados informadores da legislação e da sistematização doutrinária”.
Faz-se necessário estabelecer um profundo sentimento social, uma preocupação com os humilhados, injustiçados e até certa piedade com os paupérrimos. A ação punitiva para ser legitimada precisa pautar-se na ideia de retração do exercício do poder de punir e o alargar da proteção aos direitos e garantias do ser infrator, mediante a opção por direito garantista mínimo, portanto, o último ratio.
O Estado Democrático de Direito possui dupla responsabilidade: cumprir a lei, e assegurar os direitos e garantias em que consagra valores primordiais, sendo responsável pela concretização das referidas garantias.
Humanizar o processo é tarefa árdua, assim como acessar a justiça. O acusado não se acha capaz de lutar por seus direitos e o cotidiano revela sempre um guardião proibindo o acesso do pobre aos palácios da justiça, é o que revela Kafka:
[...] o sentinela lhe diz que neste momento não é permitido entrar. O homem reflete e depois pergunta se mais tarde lhe será permitido entrar. “È possível”, diz o guarda, “mas agora não”. A grande porta que dá para a lei está aberta de par em par como sempre, e o guarda se põe de lado; então o homem, inclinando-se para adiante olha para o interior através da porta. Quando o guarda percebe isso desata a rir e diz: “Se tanto lhe atrai entrar, procura fazê-lo não obstante a minha proibição. Mas guarda bem isto: eu sou poderoso e, contudo não sou mais que o guarda inferior; em cada uma das salas existem outros sentinelas, um mais poderoso do que o outro. Eu não posso suportar já sequer o olhar do terceiro”. O camponês não esperara tais dificuldades [...]. (KAFKA, 2007, p. 238).
A Ministra Andrighi, relatou em palestra que em inesquecível julgamento proferido pelo juiz, La Guardia, proferiu sentença, aplicando a justiça em órbita diferente [3]:
Certa feita foi levado ao tribunal um pobre cidadão que fora surpreendido furtando um pão. Ouvidas as testemunhas, e tendo o réu confessado a prática do crime, La Guardia, do alto de sua magistratura, expediu o seguinte veredicto: “Fica o réu condenado à pena de recolher em juízo a multa de cinquenta dólares...” Todos se espantaram e perplexos entreolhavam-se pelo absurdo da punição imposta ao miserável infrator. Fez-se uma pausa silenciosa e prosseguiu o juiz, dirigindo-se agora não ao réu, mas à plateia atônita: “E todos os senhores, respeitáveis cidadãos americanos, estão condenados a se cotizarem até o valor da multa, por que: Numa terra onde um homem rouba um pão para mitigar sua fome, todos nós somos culpados!”
A ciência jurídica não acompanha o cidadão desde o procedimento inquisitório nas delegacias. Os inquéritos são elaborados de forma ditatorial e, por conseguinte, um processo cheio de vícios, mostrando as evidências de abuso de poder e flagelação dessa miserável casta social, o que nos dá o dever de ao menos discutir a questão.
Segundo Cesare Beccaria (2006), “[...] é monstruoso e absurdo exigir que um homem acuse-se a si mesmo, e procurar fazer nascer à verdade por meio dos tormentos, como se essa verdade estivesse nos músculos e nas fibras do infeliz”.
O agente delinquente é levado à seara judicial, às vezes patrocinado por um advogado dativo que se quer conhece o processo, não tendo direito e acesso ao debate em igualdade de condições com o representante do Ministério Público, na busca incessante da verdade real. Com a promulgação da Constituição, o direito ao silencio ganhou amparo constitucional, (art. 5°, LXIII CF/88) “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado”.
O preconceito dos membros da justiça com as classes mais pobres também é fruto da relação histórica entre os representantes da elite e do judiciário, sendo o acesso à justiça marcado por óbices que dificultam a busca da prestação para satisfação de uma pretensão.
Tem-se uma herança escravocrata, os negros, após a abolição, deixaram de ser o sustentáculo da economia nacional e passaram a serem excluídos e marginalizados, colhidos pela violência que os atinge, em sua maioria, os menos abastados da população.
As prisões brasileiras encontram-se abarrotadas, condições indignas, contribuindo para desenvolver o caráter violento do indivíduo e seu repúdio à sociedade que ali o colocou, seja aqui ou em outro lugar, porém, mesmo nesse universo de miséria, há presos que ainda conseguem dizer algo impressionante, como diz Carnelutti, ao conversar com um homicida,
[...] tinha matado dois homens, premeditadamente, desferindo dois tiros de pistola pelas costas [...] o colóquio que tive com ele, apenas chegado lá em baixo, lhe devia dizer que infelizmente para ele não havia esperança; tudo o mais se podia tentar, com as atenuantes genéricas, de converter a prisão perpétua em trinta anos de reclusão. Ele me ouviu impassível; depois disse: “não se ocupe de mim, advogado; não importa; eu sou um homem perdido; pense para salvar meu irmão, que tem nove filhos”. Então um raio de amor iluminou a sua fronte. Não era a sua riqueza aquele amor fraterno, que o fazia esquecer até o seu terrível destino? (CARNELUTTI, 2008, p. 26).
A democratização, o acesso à justiça no processo penal é ferramenta distante. Deve-se funcionar como meio necessário e inafastável de garantia dos direitos do acusado e não mero instrumento de efetivação do direito penal. Ser verdadeiramente um instrumento de satisfação de direitos fundamentais dos que caminharam ao arrepio da lei.
A idéia de que o sistema processual penal deveria significar segurança jurídica é distorcida diante da realidade vivenciada pelos pobres quando selecionados entre as pessoas criminalizáveis.
Existe um enorme déficit na investigação preliminar em todos os aspectos. A consequência disso é a baixa qualidade da prova colhida sob o crivo do contraditório, em virtude da pouca utilização de provas técnicas como perícias, isolamento do local, colheita de digitais, entre outras.
Neste contexto o processo penal depende e muito da prova testemunhal, motivo pelo qual os aplicadores do direito não podem ignorar as contribuições de outras ciências, como a neurociência e a psicologia cognitiva no âmbito do estudo da memória humana. Isto, pois, a denominada justiça efetiva deve estar sempre compatibilizada com um processo penal constitucional que respeite as normas.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Rui. Discursos Parlamentares-Obras Completas - vol. XLI - 1914 - Tomo III.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Martin Claret, 2006.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
CARNELUTTI, Francisco. As misérias do processo penal. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russell Editores, 2008.
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Campinas: Bookseller, v. 1. 1998.
REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
KAFKA, Franz. O Processo. Tradução e Revisão: Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2007.
ROSA, Alexandre Morais da & SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para um Processo Penal Democrático: Crítica à Metástase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2009.
SILVA, Marco Antonio Marques. A Vinculação do Juiz no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1993.
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, Humanismo e Democracia. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2006.
Notas:
[1] No Código Penal, pode ver-se o aparecimento da coação: a) com a qualificação de irresistível (art. 22), ou b) como agravante (art. 62, II), ou atenuante da pena (art. 65, III, c), ou constrangimento ilegal (art. 146).
[2] A dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (art. 1°, III), a carta maior não admite as penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e quaisquer outras de natureza cruel (art. 5°, XLVII). Assegura aos presos o respeito à integridade física e moral; cumprimento da pena em estabelecimentos distintos, conforme o delito, a idade e o sexo do condenado e assegurado às presas condições para que possam permanecer com os filhos, durante o período de amamentação (CF art. 5°, XLVIII, XLIX e L).
[3] Fragmentos extraídos do artigo publicado por: Dra. Monica Rodrigues Campos Moraes - Humanização da Justiça - Uma Abordagem Conceitual. http://www.jurisway.org.br/. (Palestra proferida na Federação Espírita do Estado do Rio de Janeiro - Niterói, 29 de agosto de 2004 - Juizados Especiais de Família e o Espiritismo, pela Ministra Fátima Nancy Andrighi).