Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Amor e ódio no Tribunal do Júri: homicídio passional

Exibindo página 1 de 2
Agenda 21/07/2015 às 14:57

Quem ama mata? Mata. Claro que mata. Mas no momento do homicídio, o que impulsiona o agente não é o amor. É a ira, o ódio e a violência. Se amor existiu, isso foi antes. O crime veio depois...

 

Sumário:

 

1. Homicídio Passional. A emoção e a paixão como causas não excludentes da culpabilidade. 2. Homicídio Passional. A motivação criminosa: ciúme e inconformismo pelo fim do relacionamento. 3. Homicídio Passional. Traição. A legítima defesa da honra. 4. Homicídio Privilegiado: Violenta Emoção. Relevante Valor Social ou Moral. 5. Inexigibilidade da Conduta Diversa. Causa Supralegal. 6. Considerações Finais.

 

 

 

1.Homicídio passional. A emoção e a paixão como causas não excludentes da culpabilidade

No cotidiano forense, vez ou outra, depara-se com crimes bárbaros, violentos e cruéis. E o agente, ao justificar sua conduta, invoca sempre motivos nobres, tal qual o amor. Aí se insere a figura do homicida passional. Assim, homicídio passional é a conduta de causar a morte de alguém, motivado por amor, por uma forte paixão ou emoção[1].

A emoção e a paixão, a primeira, uma manifestação do psiquismo ou da consciência humana mais fugaz e passageira, a segunda mais duradoura e prolongada, não excluem a imputabilidade penal (art. 28 I CP), não influenciando, portanto, na capacidade de discernimento do agente, que se mantém hígida. Em outras palavras, nem a emoção nem a paixão excluem o crime.

É verdade que o homem não é uma máquina fria. O homem é um ser formado de corpo e alma, matéria e espírito. O homem se emociona cotidianamente, ao perder uma pessoa querida, ao ver seu filho nascer, ao assistir um filme, ao ver seu time vencer. Todavia, a lei não tolera que o indivíduo, mesmo emocionado, saia por aí cometendo crimes. A paixão, por sua vez, faz parte das relações sociais, e todos nós já experimentamos tal sentimento. Mas é preciso lidar com as paixões, controlar tais sentimentos, para se viver em sociedade. Assim entende Fernando Capez:

Porque a emoção e a paixão não patológica são irrelevantes para excluir a imputabilidade penal? Porque não constam do rol de dirimentes constante do art. 26 do CP. Para que haja a exclusão da culpabilidade, pela inimputabilidade, é necessário que a perda total da capacidade de entender ou de querer decorra de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado. [...] Isso porque o indivíduo que comete crime sob o domínio de violenta emoção não tem anulada a sua capacidade de entendimento e de autodeterminação, já que tanto a emoção quanto a paixão são sentimentos inerentes ao homem comum, que não se enquadram, na maioria das vezes, em um quadro clínico patológico. Não há substituição ou abolição da consciência, ao contrário do que se verifica nas doenças mentais. A emoção, como um processo crescente que pode desencadear uma conduta criminosa, é possível de ser reprimida ab initio [...] O indivíduo, inicialmente, não tem a vontade eliminada, podendo reprimir sua emoção [...] Por outro lado, a certeza da punição exercerá grande poder inibitório sobre o indivíduo, que resistirá ao impulso emotivo em seu nascedouro[2].

Por isso sabidamente a lei expressamente informa que o homem apaixonado ou emocionado tem total capacidade de reger a si próprio, de entender o caráter lícito ou ilícito dos seus atos, e de determinar-se e reger-se de acordo com este entendimento.

Todavia, tais estados emocionais (paixão ou emoção) podem ser[3] o sintoma de uma doença mental, de uma patologia, o que deverá será atestado pericialmente, através do incidente de sanidade mental[4]. Nesses casos, pericialmente comprovados, o agente será inimputável ou semi-imputável, a depender do grau de comprometimento da doença na capacidade de auto-regência do autor. Assim ensina Cezar Roberto Bitencourt:

Os estados emocionais ou passionais só poderão servir como modificadores da culpabilidade se forem sintomas de uma doença mental, isto é, se forem estados emocionais patológicos. Mas, nessas circunstâncias, já não se tratará de emoção ou paixão, estritamente falando, e pertencerá à anormalidade psíquica, cuja origem não importa, se tóxica, traumática, congênita, adquirida ou hereditária.[5]

Da mesma forma Celso Delmanto:

Todavia, caso a emoção ou a paixão tenha-se tornado estado patológico, enquadrável nas hipóteses do art. 26, caput, ou seu parágrafo único, poderá ser reconhecida à inimputabilidade ou semi-responsabilidade do agente. Entretanto, mesmo que não se tenham transformado em patológicas, a emoção e a paixão, dependendo das circunstâncias, podem influir na pena como atenuante, se o crime é cometido sob influência de violenta emoção provocada por ato injusto da vítima (CP, art. 65, III, c, última parte), ou como causa de diminuição da pena, no homicídio e lesão corporal privilegiados (CP, arts. 121, § 1º, e 129, § 4º).[6]

Afora tal hipótese (doença mental pericialmente comprovada), a emoção e a paixão não excluem o crime. Todavia, agregada a outras condicionantes, pode atenuar a pena (art. 65 III “c” do CP) ou diminuir a reprimenda (art. 121 § 1º do CP), conforme abaixo se verá.

 

2.Homicídio passional. A motivação criminosa: ciúme e inconformismo pelo fim do relacionamento.

Também são comuns crimes motivados pelo ciúme ou pelo inconformismo pelo fim do relacionamento amoroso, configurando uma segunda acepção jurídico-penal da expressão homicídio passional. Para uma análise mais aprofundada dessa segunda acepção, é preciso estudar o móvel do crime.

Nem todo homicídio possui um motivo. Não é incomum alguém matar outrem sem motivo. Todavia, a lei se preocupa com o móvel propulsor do delito. Embora a ninguém, salvo pouquíssimas exceções, seja dado o direito de tirar o bem mais precioso de outrem, qual seja, a vida, em determinadas hipóteses o crime possuirá como motivação algo que seja de menor reprovação social, minimizando a pena.

No extremo oposto, há motivos que por elevarem a censurabilidade, mereceram do legislador o agravamento da sanção penal. O móvel do crime pode qualificar o homicídio, quando insignificante/mesquinho (fútil) ou repugnante/vil (torpe). Mas quando não há motivo? Matar alguém sem nenhum motivo é ainda pior que matar por mesquinharia. A lei aumenta a pena daquele que mata por motivo de somenos importância, não se compreendendo que o legislador fosse permitir pena mais branda àquele que mata sem qualquer motivo[7].

Matar por ciúme pode configurar tanto a qualificada da futilidade ou da torpeza, a depender das circunstâncias. É verdade que o ciúme, por si só, não configura as referidas qualificadoras.[8] Mas somada a outras circunstâncias que demonstrem a extrema desproporção entre o motivo e a reação homicida (futilidade)[9] ou a depravação espiritual do agente (torpeza), o homicídio será qualificado.

E o que dizer daquele que mata pelo inconformismo ao fim do relacionamento. Hodiernamente, vivemos em um mundo identificado pelo sociólogo Zygmunt Bauman como líquido, em que as relações afetivas tornaram-se fluídas, descartáveis. Em outras palavras, os relacionamentos entre casais passam pela senda da fugacidade. Findar um relacionamento é tão simples quanto constituí-lo. O divórcio, quando há consenso entre o casal e não há interesses de menores, sequer demanda um processo judicial. Daí pergunta-se: matar alguém em razão do fim do relacionamento merece um abrandamento penal? A resposta só pode ser negativa.

O relacionamento afetivo é lastreado no amor. Quando acaba o afeto, rompe-se o relacionamento, que deixa de existir. Quando acaba o desejo de viver em comum, nada, nem a lei, pode obrigar o casal a se manter unidos. Cada um deve seguir sua vida, trilhando seu próprio caminho, agora de forma individual ou com outra pessoa. É a busca da felicidade, que não é direito, mas dever de todos nós.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Infelizmente, muitos homens e mulheres, insistem no aforismo: se você não ficar comigo, não ficará com ninguém? Como se a anterior parceira fosse parte integrante do patrimônio do homem. Como se a mulher não tivesse o direito de romper o relacionamento quando lhe aprouvesse, ao seu alvedrio, buscando a felicidade por outros meios. Trata-se de exercício regular do direito de romper o atual relacionamento, buscando outras formas de felicidade. Ao se casar, o cônjuge recebe uma certidão de nascimento, não um carimbo de “minha propriedade”.

Todo aquele que se relaciona afetivamente se submete a um risco de que esse relacionamento não venha a dar certo. Evidente que o fim de qualquer relacionamento gera dor e sofrimento. Mas essa dor faz parte da vida, tratando-se de um risco previsível, o risco de não dar certo.

Portanto, aquele que mata pelo inconformismo ao fim do relacionamento, mata na verdade, não por amor, mas por vingança, aquilo que Leon Rabinowicz denomina de vingança do amor próprio ofendido[10]. E matar por vingança, a depender das circunstâncias, implica em homicídio qualificado, em razão da torpeza. É verdade que a vingança, nem sempre configura tal qualificadora[11], mas aliada a outros fatores, capazes de gerar excessiva repulsa à sociedade, configura a torpeza[12].

Ressalte-se que as qualificadoras do motivo fútil e torpe (natureza subjetiva) não permitem a existência concomitante com as circunstâncias legais do privilégio (também de natureza subjetiva), permitindo a concomitância somente com as qualificadoras de natureza objetiva[13]. Exemplo da qualificadora de natureza objetiva é o feminicídio[14] (matar a mulher por ela ser mulher)[15].

 

3. Homicídio Passional. Traição. A legítima defesa da honra

Na literatura, também se admite uma terceira acepção jurídico-penal para a expressão homicídio passional: a conduta daquele que traído, mata o seu parceiro adúltero e/ou o amante deste[16].

Daí pergunta-se: a honra pode ser defendida validamente pela excludente da legítima defesa? Para responder, é preciso colocar a questão em seus devidos termos.

A honra, embora seja um bem imaterial, é passível de proteção penal. A honra é um bem jurídico penalmente tutelado, bastando ver os crimes contra a honra, tipificados criminalmente. Daí a primeira conclusão: a honra é tutelada penalmente.

Todavia, a honra é um valor para o direito penal de importância menor, em comparação com outros bens jurídicos. Basta verificar que a maioria dos crimes contra a honra é de ação penal privada e de menor potencial ofensivo. Portanto, é um disparate comparar a honra à vida. É algo incomparável. Na balança dos bens jurídicos, a vida tem valor e peso significativamente maior.

Mas nossa sociedade insiste em enxergar um culpado no fim do relacionamento amoroso. Será que nos dias atuais, é possível ter alguém como culpado pelo fim do relacionamento?

Após um longo período de desgaste, brigas, desavenças, incompatibilidades, o casal resolve por fim ao casamento. Ao assim decidirem, certamente, comunhão plena de vida já não mais existia entre eles. Ao tomarem essa decisão, certamente, o que os unia era tão somente um resquício cartorário, pois o amor e o afeto já não mais existiam. Embora esse processo de erosão afetiva seja longo, contínuo e diário, não eclodindo em um determinado momento, nossa sociedade insiste em procurar um culpado para o fim do matrimônio. Nas palavras de Cristiano Chaves:

Efetivamente, há grande equívoco na tese do único culpado pela dissolução, inexistindo uma única causa isolada que compromete a estabilidade afetiva. O desgaste do relacionamento não admite perquirições históricas acerca dos fracassos e dramas. É resultado da soma de fatores que vão cimentando com o tempo. [...] Impõe, por conseguinte, perceber que não há, seguramente, um único responsável pelo fracasso do amor. Ninguém é culpado por não mais gostar. Não há responsabilidade pela frustração do sonho comum, da frustração das expectativas próprias e do outro consorte, de felicidade eterna[17].

Portanto, a segunda conclusão que se extrai é a impossibilidade de se invocar a legítima defesa da honra nos casos de inconformismo pelo fim do relacionamento, mesmo nos casos em que o ex-consorte passe a se relacionar com outrem.

Resta saber acerca da possibilidade de se invocar tal excludente de ilicitude quando o traído mata o adúltero e/ou o amante. Para responder, é preciso bem entender a legítima defesa.

Consoante o art. 25 do CP, age em legítima defesa aquele que usa moderadamente dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Pois bem. A agressão à honra, como visto, pode ser defendida. Mas a agressão precisa ser atual (que está acontecendo) ou iminente (que está prestes a acontecer). Não existe legítima defesa de agressão pretérita, terminada, finda, porque ninguém se defende do que já passou[18]. Se a traição já ocorreu e somente posteriormente descobre o traído, impossível falar em legítima defesa.

Mas se a traição está ocorrendo e o traído flagra sua esposa e o amante, é possível invocar a legítima defesa? Sim, desde que o traído use moderadamente os meios necessários para repelir a injusta agressão - no caso a traição[19].

Em outras palavras, pode utilizar de violência moderada, expulsando o amante e a esposa de casa, mesmo que para isso empregue força física, não devendo nesse caso responder por lesões corporais, em razão da excludente de ilicitude. Mas daí invocar a legítima defesa para excluir o crime de homicídio vai uma distância muito grande[20].

Conforme ensina Guilherme de Souza Nucci, muitas das vezes é possível encontrar uma razão plausível para a ocorrência da traição: uma mulher maltratada física e psicologicamente pelo marido; uma mulher farta das traições do marido; um marido massacrado por exigências injustas e frequentes da esposa, etc[21]. A traição, é bem verdade, é a consequência da falência do relacionamento, o sintoma do fim. Não quer dizer que não pode ser repelida. Evidente que pode, por ser uma ofensa à honra. Mas o que não se tolera é matar, sob o pretexto de defender a honra[22]. Falta nesse caso a moderação no uso dos meios necessários, afastando, portanto, a legítima defesa[23].

Assim ensina Guilherme de Souza Nucci:

O Direito também tem, inegavelmente, a missão de educar a sociedade, incentivando, por meio da edição de normas, pensamentos e posturas mais nobres – e outra não é a explicação para combatermos a tortura, as penas degradantes e cruéis e caminhos menos elevados para a dignificação da vida em sociedade. Dessa forma, ainda que o brasileiro médio possua a concepção de que a honra se lava com sangue – e tal postura é exercitada não somente no contexto do flagrante adultério – torna-se indispensável que o legislador, sensível à importância do valor da vida, jamais deixe de se voltar ao direito ideal e não somente ao pensamento coletivo real, por vezes envolto de banalidade, agressividade, egoísmo e mesquinharias de toda ordem. Não se descura, em aspecto relevante para a honra objetiva do cônjuge traído, da possibilidade de haver uma reação momentânea, quando se depara com uma ofensa à sua reputação, mormente no delicado contexto do adultério. Toda a energia e paixão geradas em seu espírito não podem motivar, com o beneplácito da lei, um julgamento sumário, feito em regime puramente emocional, sem qualquer chance de defesa, ceifando a vida do cônjuge traidor e mesmo do amante. [...] Desnecessária, certamente, a solução fatal, impondo pena de morte a quem comete o deslize. Repita-se que o mais condizente, nessa situação, é aceitar uma reação moderada, expulsando de casa o ofensor, destruindo algum bem do traidor ou mesmo do amante, enfim, demonstrando seu inconformismo, mas sempre com o controle que se espera do ser humano preparado a viver em sociedade. A honra sexual não pode tornar-se o grande apanágio a justificar a inversão de valores e a submissão da vida à reputação, mesmo porque inúmeros mecanismos existem para reparar a situação. Atualmente, tem-se até mesmo admitido a indenização por dano moral a quem se julga traído pelo cônjuge. A evolução do pensamento humano é esperada e deve ser fomentada pelo direito, sem jamais se esquecer o legislador da realidade. O homicídio, caso aceito pelo direito como solução legítima para reparar a honra ferida, é o atestado nítido da involução, de regressão aos costumes mais bárbaros, passo indesejável quando se pretende construir, cada vez mais, uma sociedade amparada pelo respeito aos valores e direitos fundamentais do ser humano.[24]

Citando Leon Rabinowicz, João José Leal:

O marido enganado que mata, é um personagem particularmente odioso, porque não mata impelido por seu grande amor, mas por muitas razões que nada têm de comum com esse sentimento e, em primeiro lugar, por medo ao ridículo [...] O crime passional é uma maneira inadmissível de se fazer justiça por suas próprias mãos [...] O marido que mata a mulher, a amante que mata o amante, erijem-se em juízes da sua própria causa e em executores de uma sentença que não tinham o direito de proferir. Após a humanidade ter abandonado a vingança privada, o crime passional estaria nos conduzindo a ela[25].

Em outras palavras, não se discute a possibilidade de legítima defesa da honra e sim a proporcionalidade entre a ofensa a intensidade da repulsa. Não poderá o ofendido, em defesa da honra, matar o agressor, ante a manifesta ausência de moderação[26]. A prática do homicídio contra o adúltero ou amante, como forma de reparar a honra ofendida, ante a evidente desproporcionalidade entre a injusta agressão e a reação, não configura a legítima defesa[27].

 

4.Homicídio Privilegiado: Violenta Emoção. Relevante Valor Social ou Moral.

No art. 121 §1º do CP temos o homicídio privilegiado, que se dá nas hipóteses de crime praticado por relevante valor social ou moral, ou na hipótese do agente estar sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima.

Relevante valor é aquele importante para a vida em sociedade. Relevante valor moral leva em conta interesse de ordem pessoal. Relevante valor social leva em consideração interesses gerais e coletivos. Assim escreveu Heleno Fragoso:

O motivo de valor social é aquele que atende aos interesses ou fins da vida coletiva. O valor moral do motivo se afere segundo os princípios éticos dominantes. São aqueles motivos aprovados pela moralidade média, considerados nobres e altruísta[28].

Todavia, não se deve banalizar a motivação relevante para a eliminação da vida alheia[29], pois não é essa a melhor exegese. Relevante valor não é aquele que, tão somente sob a ótica do criminoso, é de saliente valia. Relevante valor deve possuir um reconhecimento geral da sua proeminente e acentuada importância, a ponto de amenizar a reprovabilidade e a censurabilidade do crime. Do contrário, bastaria ao autor do homicídio, invocar ao seu talante, o motivo do crime, alegando ser relevante. Não é assim que ocorre com todas as confissões?!

Portanto, a princípio não há se falar em relevante valor a prática do homicídio passional, salvantes outras circunstâncias excepcionalmente ocorrentes.

Outra hipótese de homicídio privilegiado é a prática criminosa sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima, chamado de homicídio emocional. Primeiro há a necessidade de uma injusta provocação da vítima, seguida da conduta criminosa (que deve ocorrer de forma imediata e instantânea[30]) que é praticada sob o domínio de violenta emoção. É preciso comparar tal privilégio com a atenuante do art. 65 III “c” do CP. Na atenuante basta o cometimento do crime sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima. Na atenuante não há a necessidade de que o crime seja praticado de forma instantânea e imediatamente após a injusta provocação. Também na atenuante basta a influência, não exigindo que o agente esteja dominado pela violenta emoção.

A questão é de intensidade, tanto em qualidade, como quantidade de carga emocional a ponto de dominar o agente. No privilégio há como uma tempestade psíquica, onde é tão intenso o estado emotivo do agente, que ele perde o autocontrole por completo, agindo como um instrumento da emoção, porquanto está sob o domínio dela. Se o agente não dispara sua arma de fogo a esmo e desordenadamente, mas sim faz pontaria, se não atira no pé, mas sim em região vital do corpo da vítima, o caso não é de aplicação do privilégio. O agente dominou a emoção e não foi dominado por ela, embora possa ter sido influenciado pela emoção[31].

Portanto, o homicídio passional pode se enquadrar – desde que presentes seus requisitos – na atenuante ou no privilégio, a depender das circunstâncias da concretude do caso. Não presente a totalidade dos seus requisitos, seja do privilégio, seja da atenuante, não há se falar em qualquer contemplação ao homicida passional.

 

5. Inexigibilidade da Conduta Diversa. Causa Supralegal.

A exigibilidade de conduta diversa, como elemento da culpabilidade, consiste na expectativa social de um comportamento diferente daquele que foi adotado pelo agente. As causas legalmente previstas que levam à exclusão da exigibilidade de conduta diversa são: coação moral irresistível e obediência hierárquica, levando, portanto, à exclusão da culpabilidade, consequentemente, do crime.

Embora hodiernamente tem se aceito a causa supralegal de inexigibilidade de conduta diversa (fora das hipóteses legais: coação moral irresistível e obediência hierárquica), tal tese, nos crimes dolosos contra a vida, é de dificílima aplicação, embora a inexigibilidade (como causa supralegal) tenha se sedimentado como tese subsidiária (como uma espécie de última cartada) para justificar (rectius: desculpar) os crimes mais graves do nosso Estatuto Penal, quais sejas, aqueles levados à julgamento pelo Tribunal Popular.

Não obstante, pergunta-se: é possível invocar referida tese ao agente que mata sua amada, alegando que assim fez em razão de um incontrolável amor, capaz de perturbar-lhes os ânimos e embaçar-lhe a razão? A resposta só pode ser negativa.

Somente haverá inexigibilidade de conduta diversa quando a coletividade não podia esperar do sujeito que tivesse atuado de outra forma. São casos de extrema urgência, onde não é humanamente possível agir de outro modo. Veja bem, trata-se da exceção da exceção, ou seja, quando a sociedade não podia esperar outra conduta do agente[32]. Exatamente o que não ocorre no contexto dos crimes dolosos movidos por sentimentos passionais. Em uma frase: é absolutamente exigível conduta diversa[33].

Ora, nós vivemos em pleno século XXI, numa sociedade moderna, fraterna (preâmbulo da CF), que tem como valores mais caros a igualdade e a liberdade (art. 5º caput CF), como objetivo a solidariedade (art. 3º I da CF), e como núcleo axiológico a dignidade da pessoa humana (art. 1º III CF). Sequer se tolera os maus-tratos aos animais (art. 32 da Lei 9605/98), como se admitirá a ideia da inexigibilidade de conduta diversa àquele que mata seu semelhante, alegando estar movido por amor.

Quando a vítima é mulher, é de ressaltar ainda a legítima repulsa a esse tipo de comportamento, consagrado através da Lei Maria da Penha (Lei 11340/2006), importante instrumento de proteção às mulheres que sofrem toda sorte de violência física, psicológica, sexual, moral ou patrimonial, em ambiente doméstico, familiar ou íntimo de afeto. A submissão da mulher ao homem não é somente um dado histórico, pois infelizmente tal fato ainda se observa na realidade atual. Por isso veio a lume referida legislação protetiva à mulher, que visa recrudescer o tratamento penal e processual penal ao agressor, como forma de reprovação e prevenção de tais ilícitos, frequentes na sociedade brasileira.

Estamos em pleno século XXI. Estamos no Brasil e não na floresta. Quem mata alegando um irrefreável amor, não precisa de um banho de loja, precisa de um banho de civilização![34]

 

6.Considerações Finais.

Aquele que mata alegando amor, invocando ser o paladino da honra conjugal, não é e não pode ser considerado vítima de uma paixão cega. Como dizia Nelson Hungria, o amor é a antítese, a contra-face do crime. O amor se contrapõe à conduta criminosa. O amor é um sentimento nobre, que se alimenta de fantasia e sonho, de ternura e êxtase e purifica o nosso próprio egoísmo e maldade. O amor não pode deturpar-se num assomo de cólera vingadora e tomar de empréstimo o punhal do assassino[35].

Volta-se, assim, à questão inicialmente levantada. Quem ama mata? Mata. Mas conforme ensina Edilson Mougenot Bonfim, no momento do crime o que impera é o ódio, a vilania, a rudeza, a crudelidade, a agressão, e não o amor. O verdadeiro passional é aquele que mata e se mata, como no famoso registro de Giacomo Leopardi “não posso viver contigo, nem sem ti”. Ou seja, o amor e o ódio devem ser compreendidos num contexto histórico-temporal distinto. Se amou, foi antes, o crime veio depois. E à lei o que interessa é o momento do crime. Nesse, o que impera é o ódio, não o amor[36].

Amor é algo sublime, belo e suave. Amor visita maternidades e berçários. Amor não visita cemitérios, necrotérios e túmulos. Esse é o poder da vida sem violência, pois não se mata por amor.

 

Referências Bibliográficas

BITENCOURT. Cezar Roberto. Código Penal Comentado. Saraiva.

BONFIM, Edilson Mougenot. No Tribunal do Júri. Saraiva. 4ª ed.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Especial. vol. 2. Saraiva.

_______. Curso de Direito Penal Parte Geral. vol. 1. 5ª ed. Saraiva.

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar.

DOURADO, Luiz Ângelo. Raízes neuróticas do crime. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

FARIAS, Cristiano Chaves de. Redesenhando os contornos da dissolução do casamento – casar e permanecer casado: eis a questão. Temais atuais de Direito e Processo de Família. Lumenjuris.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Especial. 9ª ed. Forense.

FRANÇA, Genival Veloso. Medicina Legal. 6.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Especial. Vol. II. Impetus.

_______. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Vol. I. 5ª ed. Impetus.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. V. 5. Forense.

LEAL, João José. Cruzada doutrinária contra o homicídio passional: análise do pensamento de Leon Rabinowicz e de Nelson Hungria. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 787, 29 ago. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7211>. Acesso em: 24 nov. 2012.

MASSON,  Cleber. Direito Penal Esquematizado. vol. 2. 8ª ed. São Paulo: Método, 2015.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Especial. Vol. II. 22ª ed. Atlas.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 2ª ed. RT.

_______. Manual de Direito Penal. RT. 4ª ed.

 

Sobre o autor
Cleber Couto

Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!