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Extinção dos depósitos para garantia do juízo

Agenda 01/03/1999 às 00:00

A doutrina jurídica do Direito construiu, ao longo de séculos, conceitos que não podem ser ignorados pelos que elaboram, ou aplicam as normas, sem graves prejuízos para a Ciência do Direito e para a operacionalidade do ordenamento jurídico, que termina por não alcançar a sua finalidade.

Existem, é certo, conceitos de Direito Positivo que podem ser criados e alterados pelo legislador com relativa liberdade, mas existem os conceitos consolidados universalmente, que fazem parte da Teoria Jurídica, e estes evidentemente não podem ser atingidos em seus elementos, e em seus efeitos essenciais. Assim é que não se concebe uma compra e venda sem o elemento essencial, o preço, e sem o efeito que lhe é próprio, a transmissão da propriedade da coisa vendida. Pela mesma razão, não pode o legislador determinar que em virtude de uma hipoteca a propriedade do bem hipotecado restou transferida, ou que da realização de um pagamento não decorre a extinção da dívida a que se refere.

Há, todavia, quem pense que em Direito tudo é apenas questão de nome, e sendo assim, se chamarmos um pagamento de depósito, depósito este será. Parece que desta forma pensam os que assessoraram o Presidente da República na feitura da Medida Provisória nº 1.721, de 28.10.98, já convertida na Lei nº 9.703, de 17.11.98.

Realmente, o citado diploma legal estabelece:

"Art. 1º Os depósitos judiciais e extrajudiciais, em dinheiro, de valores referentes a tributos e contribuições federais, inclusive seus acessórios, administrados pela Secretaria da Receita Federal do Ministério da Fazenda, serão efetuados na Caixa Econômica Federal, mediante Documento de Arrecadação de Receitas Federais – DARF, específico para essa finalidade.

§ 1º O disposto neste artigo aplica-se, inclusive, aos débitos provenientes de tributos e contribuições inscritos em Dívida Ativa da União.

§ Os depósitos serão repassados pela Caixa Econômica Federal para a Conta Única do Tesouro Nacional, independentemente de qualquer formalidade, no mesmo prazo fixado para recolhimento dos tributos e das contribuições federais."

Como se vê, assim dispondo o legislador na verdade extinguiu, pura e simplesmente, a figura jurídica do depósito, como se passa a demonstrar.

O depósito, sabemos todos, não transfere a propriedade do dinheiro depositado para a Fazenda Pública. Depósito não é pagamento. É garantia de que este será feito. Apenas uma garantia. Sua característica essencial, em se tratando de depósito para garantia do juízo, como ocorre no caso de que se cuida, é a de permanecer em mãos de terceiro. O depósito é medida preparatória, preventiva ou de segurança, que consiste na entrega de coisa apreendida à guarda ou vigilância de terceiro.

O depósito é sempre voluntário. Mesmo no caso de depósito do valor de tributo que o contribuinte pretenda discutir com a Fazenda. Não obstante o contribuinte possa ficar exposto à execução fiscal, o ato de depositar é sempre um ato de vontade. Não pode jamais ser obrigatório. É medida preventiva ou de segurança que consiste na entrega da coisa – no caso de que se cuida, o dinheiro – a terceiro.

Todo depósito tem um depositante, "pessoa que entrega a coisa a outrem para que este a guarde e a restitua quando for exigido", e um depositário, "pessoa que recebe a coisa para a guardar e a restituir quando for exigida."

É induvidoso, portanto, que o depósito feito pelo contribuinte, para garantia do juízo enquanto questiona com a Fazenda Pública, há de ficar em mãos de terceiro. Não da Fazenda, que é parte no processo. Se fora para ficar em mãos de parte, poderia ficar com o próprio contribuinte, certamente. Se a lei impõe que entregue ao que se diz credor, tem-se pagamento. Não depósito, porque este, em sentido próprio, é um contrato. Contrato que tem por objeto uma coisa – no caso uma quantia em dinheiro – a ser devolvida ao depositante. "O depositário deve guardar a coisa, não a podendo usar nem dar em depósito a outrem, a não ser com autorização do depositante."

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Aliás, o legislador, no caso de que se cuida, traiu-se, e disse que se a Fazenda for a final vencedora no processo, o valor respectivo será "transformado em pagamento definitivo." Se é assim, é porque antes ocorrera um pagamento não definitivo, construção que não cabe na cabeça de um jurista, porque evidentemente anômala, desconforme com os princípios e conceitos do Direito.

Por outro lado, depósito não constitui receita pública. Depósito e receita pública são figuraras jurídicas inconfundíveis. Receita pública, segundo definição de Baleeiro, "é a entrada que, integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem acrescer o seu vulto, como elemento novo e positivo."

Destaque-se, com Aliomar Baleeiro, que "as quantias recebidas pelos cofres públicos são genericamente designadas como "entradas" ou "ingressos". Nem todos esses ingressos, porém, constituem receitas públicas, pois alguns deles não passam de "movimentos de fundo", sem qualquer incremento do patrimônio governamental, desde que estão condicionados à restituição posterior ou representam mera recuperação de valores emprestados ou cedidos ao governo."

A Lei nº 9.703, de 17 de novembro de 1998, na verdade converteu os depósitos em pagamentos, pura e simplesmente, determinando que a Caixa Econômica Federal repasse os valores respectivos para a conta única do Tesouro Nacional, independentemente de qualquer formalidade. E com isto consumou verdadeira expropriação, num atentado claro e ostensivo ao direito de propriedade, que a Constituição expressamente assegura.

Estabeleceu, é certo, a mesma Lei,

 "Mediante ordem da autoridade judicial ou, no caso de depósito extrajudicial, da autoridade administrativa competente, o valor do depósito, após o encerramento da lide ou do processo litigioso, será:

I – devolvido ao depositante pela Caixa Econômica Federal, no prazo máximo de vinte e quatro horas, quando a sentença lhe for favorável ou na proporção em que for, acrescido de juros, na forma estabelecida pelo § 4º do art. 39 da Lei nº 9.250, de 26 de dezembro de 1995, e alterações posteriores;"

Pretendeu com isto o legislador obter a conformação do contribuinte expropriado em seu depósito, determinando que a Caixa lhe faça o pagamento, a débito da conta única do Tesouro, ... mas ao determinar a pronta restituição da quantia que fora objeto de pagamento, ainda que dito implícita e estranhamente não definitivo, o legislador mais uma vez atentou contra norma expressa da Constituição Federal, segundo a qual "à exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim."

Como se vê, a Lei nº 9.703/98 alberga duas inconstitucionalidades flagrantes. A primeira, no dispositivo que transformou o depósito em pagamento, atingindo em cheio, embora disfarçadamente, o direito de propriedade. A segunda, no dispositivo que autoriza a Caixa Econômica Federal a debitar à conta única do Tesouro Nacional, em subconta de restituição, as quantias devolvidas ao contribuinte em virtude de sentença judicial.

Na verdade, a Lei nº 9.703/98 diz, em outras palavras, o seguinte: o contribuinte que pretender questionar a exigência de tributo deve pagar, com o nome de depósito, na Caixa Econômica Federal, e a ele será garantida uma restituição preferencial, não se lhe aplicando o art. 100 da Constituição.

Já foi assim em outros tempos. Nos tempos de Vargas, quando se instituiu, com o Decreto-lei 42, de 13.12.37, a exigência de um depósito, que na verdade extinguia o crédito tributário, como requisito para a propositura da ação ordinária para anulação de débito fiscal.

Com o restabelecimento daquela estranha forma de depósito, que na verdade é um pagamento, aparentemente o contribuinte nada perdeu, e pode até ter lucrado, pois os valores a ele devolvidos serão acrescidos da remuneração calculada pela SELIC, nos termos do art. 39, § 4º, da Lei nº 9.250, de 26.11.95, que tem sido superior à remuneração da caderneta de poupança, hoje garantida aos depositantes. Mas essa vantagem de repente pode desaparecer, frágil como são todos os artifícios.

Com efeito, nada nos garante que depois de aceita a fórmula pelos contribuintes iludidos pela aparente vantagem, algum defensor da ordem jurídica não vai argüir a inconstitucionalidade, somente a segunda das duas acima apontadas. Dirá que houve na verdade um pagamento, que o contribuinte aceitou fazer, e que a restituição do que indevidamente pagou vai para o famoso caminho do precatório.

É certo que a supremacia constitucional foi construída pelo moderno constitucionalismo como uma garantia do cidadão contra o Poder Público, porque, como já afirmou o Ministro Celso de Melo,

"O poder absoluto exercido pelo Estado, sem quaisquer restrições e controles, inviabiliza, numa comunidade estatal concreta, a prática efetiva das liberdades e o exercício dos direitos e garantias individuais ou coletivos. É preciso respeitar, de modo incondicional, os parâmetros de atuação delineados no texto constitucional. Uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem é simples estrutura de normatividade e nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos Povos e das Nações. Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica - dos Tribunais, especialmente - porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade. - A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste - enquanto for respeitada - constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar por que essa realidade não seja desfigurada."

Realmente, como temos insistentemente sustentado, a supremacia da Constituição é uma garantia do cidadão contra o Estado. Não pode este valer-se daquela para, em face de obra sua, que é a lei, violar direitos do cidadão. Em outras palavras, se o Estado labora contra a Constituição, não pode retirar proveito disto, em detrimento do cidadão, e da segurança jurídica.

Temos, porém, exemplo recente de exitosa invocação, pelo Estado, de inconstitucionalidade de lei, por defeito formal do procedimento legislativo, em detrimento do cidadão. Daí o receio de que o Supremo Tribunal Federal pode vir a acolher aquela segunda inconstitucionalidade, e assim vedar a pronta restituição, deixando o contribuinte apenas com o penoso caminho do precatório.

Enquanto a Caixa Econômica Federal, que na verdade é a maior prejudicada com a Lei de que se cuida, dispuser de dinheiro para fazer as restituições a débito da conta única do Tesouro, tudo pode correr sem problemas. No momento em que a instituição falsamente batizada de depositária não dispuser da verba suficiente para a efetiva restituição certamente surgirão complicações.

Válida, portanto, é a pretensão do contribuinte, que ingressa com ação para discutir exigência tributária, de que os valores por ele depositados na Caixa Econômica não sejam creditados à conta única do Tesouro Nacional, que é parte na causa, porque esse crédito configura verdadeiro pagamento, restabelecendo assim a regra autoritária do "solve et repete", há muito repelida pela jurisprudência.

Sobre o autor
Hugo de Brito Machado

professor titular de Direito Tributário da UFC, presidente do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET), juiz aposentado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Hugo Brito. Extinção dos depósitos para garantia do juízo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 29, 1 mar. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/412. Acesso em: 21 nov. 2024.

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