SUMÁRIO: 1. Introdução 2. A origem do interesse punitivo como pretensão 3. Liberdade pública 4. Inexistência da lide penal 5. O brutal aumento da criminalidade e a necessidade da criação de um "Novo Processo Penal" 6. Conclusão 7. Bibliografia
1.Introdução
A Revolução Francesa, marco na história do repúdio ao absolutismo e de todos os seus congêneres, inaugurou a era dos Estados Democráticos e das Constituições liberais, mostrando que as antigas estruturas do poder – enquanto manifestações da organização social – não mais representavam e nem atendiam as necessidades da sociedade moderna.
Com efeito, a mudança de paradigma não só atingiu as concepções referentes ao exercício do poder, como também o modo como esse "Novo Estado" exerceria a sua força para proteger essa sociedade, atingindo em cheio o mérito sobre a quem pertence o direito de punir.
Deste modo, representou o fim do paradigma do ius puniendi de origem metajurídica, transferindo-o das figuras transcendentes para a figura do Estado. Não é mais Deus quem estipula as regras e pune o transgressor, mas, sim, o Estado é quem passa a fazer esse viés.
Compete a ele o dever de repelir os delinqüentes causadores de mazelas, protegendo a sociedade daqueles que não podem conviver em grupo, estabelecendo um verdadeiro conflito, onde de um lado se encontra o Estado com o interesse de punir e de outro o indivíduo transgressor defendendo a sua liberdade.
Destarte, o debate sobre liberdade pública e interesse punitivo decorre, justamente, da opinião daqueles que vislumbram este antagonismo da eterna luta entre o ius puniendi e o ius libertatis (produto da visão liberal), enxergando no processo penal, assim como no processo civil, a existência de uma lide, ou seja, o conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos interessados – o Estado - e pela resistência do outro [1] – o cidadão –, como produto da aplicação da teoria geral do processo civil ao processo penal.
Logo, o interesse punitivo passou a ser sinônimo de pretensão punitiva, posto que se resume na exigência de subordinação do interesse de outrem (direito de liberdade) ao próprio. Assim, na concepção clássica, a finalidade do processo penal é a composição da lide penal, isto é, a solução desse conflito de interesses.
Todavia, com o avanço dos direitos humanos e suas novas diretrizes, contra a adoção do conceito de lide no processo penal levantam-se não poucos autores de escol [2], revelando o caráter não tão pacífico da doutrina, pois há aqueles que não mais vêem a contradição entre liberdade pública e interesse punitivo. Muito pelo contrário, com o novo papel do Ministério Público, entendem que este dois elementos são consoantes, caminhando em harmonia, concebendo novos conceitos ao direito adjetivo criminal.
É inquestionável que na patente crise do direito penal, sucumbido pelo crescente aumento da criminalidade, certamente este assunto torna-se de curial relevância. A relação entre interesse punitivo e liberdades públicas é tema importantíssimo, cuja resposta à questão de contradição ou harmonia pode mudar radicalmente o modelo e a teoria do processo.
2.A origem do interesse punitivo como pretensão.
A história do direito penal remonta ao surgimento da humanidade, datando-se, daquilo que se tem notícia, há aproximadamente cinco mil anos atrás, isso sem entrarmos em conjecturas pré-históricas, sendo o Código de Hamurabi o registro mais antigo de codificação.
Na Antigüidade, a sociedade patriarcal compreendia o direito como o direito da força, tendo na idéia de crime conceitos bem diferentes dos de hoje. O direito se confundia com a religião e com a moral, resumindo-se à vingança privada e, consequentemente, o interesse punitivo era sinônimo de pretensão vingativa. A "justiça", em caso de delito, era sempre efetuada pelas mãos do ofendido (autotutela).
Posteriormente, com o surgimento de uma maior organização, especialmente em Roma, sentiu-se a necessidade de regulamentar as relações entre os homens, principalmente no tocante aos delitos, aparecendo o processo penal como instrumento para buscar na figura do "Estado", não no sentido que possui hoje, um mediador entre o ofendido e o delinqüente (composição), a fim de solucionar os conflitos entre as partes.
Nesta fase, o processo penal, como ferramenta para o indivíduo pleitear a punição sobre o causador do dano, cuja pena ainda era exercida pelas mãos do próprio acusador, se caracteriza pelo jus puniendi de natureza privada. À assertiva se confere veracidade, pois, somente em uma fase posterior, ainda em Roma, surge a divisão entre os delitos públicos e os delitos privados, mas todos de iniciativa de qualquer cidadão (judicia publica). A grande mudança e radical diferença entre eles é que, pela primeira vez, a pena se revertia ao Estado e não mais aos indivíduos [3].
Outrossim, é inequívoco que a atual doutrina, propugnadora da existência de uma lide penal, possui as suas raízes em uma fonte romana, posto que no passado o interesse punitivo era literalmente uma pretensão, uma vez que este ficava nas mãos do indivíduo, sendo um direito subjetivo invocado por qualquer do povo e não pelo Estado, deixando claro ser um remanescente do processo penal romano.
3.Liberdade pública.
Termo razoavelmente recente na história do direito, as liberdades públicas surgem com a luta da burguesia pela garantia dos direitos individuais, especialmente do direito à propriedade privada. Na França, em 1776, é editada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, tornando-se modelo para as demais Declarações [4], positiva-se, assim, os que são chamados atualmente de direitos de primeira geração, servindo de base para a formação das primeiras Constituições.
Como pactos sociais limitadores do poder do Estado, a finalidade das Constituições é a de submeter o Estado ao Direito. Os abusos do passado já não são mais admitidos, o povo, como poder soberano, cria o Estado, disciplina-o e impõe os limites de sua atuação, resumindo a sua função na de salvaguardar a liberdade dos indivíduos, a qual a humanização do direito penal faz parte.
Contudo, o fracasso do Estado liberal repousou na negligência das misérias dos menos favorecidos, tratando igualmente os desiguais, gerando uma injustiça maior e insatisfação generalizada. Em decorrência, com o intuito de resolver as diferenças, surge o conceito de Estado social, cujo fim não é mais o de somente proteger os direitos individuais, mas o de promover a igualdade entre os cidadãos, ou seja, a promoção das justiças sociais.
Ademais, a finalidade do Estado é a de proteger a sociedade, potencializando, deste modo, a legitimidade do jus persequendi, mas sem, em hipótese alguma, violar os direitos fundamentais do cidadão. Ou seja, o objetivo do processo penal, principalmente do jus puniendi enquanto uma das manifestações do poder de polícia, é o de garantir a segurança e o interesse público dentro da máxima legalidade e, com isso, garantindo também, inclusive, o ius libertatis do acusado e os direitos fundamentais do preso.
Destarte, o processo penal do Estado Democrático de Direito onde a justiça social é o alvo a ser atingido, pela própria natureza do Estado social, torna paradoxal a doutrina da pretensão punitiva pontificada pela tradição de juristas brasileiros. Sendo assim, é imperioso adotarmos uma nova teoria sobre a natureza do processo penal, senão incorremos no risco de corroborar com os velhos abusos dos Estados ditatoriais, que se escoram nessas obsoletas visões.
4.Inexistência da lide penal.
O interesse punitivo pertencente ao Estado é uma das expressões do poder de polícia, entendendo esse último termo em seu sentido lato, como todos os atos do Estado destinados a manter o bem comum da coletividade, ou seja, a ordem social, que não é senão a mesma finalidade do ius puniendi.
Logo, os princípios norteadores da Administração Pública, bem como o modo de seu exercício, não são exclusivos do Poder Executivo, mas são imperativos gerais erga omnes aplicáveis a todos os Órgãos sem distinção de Poderes, incluindo o Ministério Público – o exclusivo detentor da ação penal pública.
Portanto, os atos do Ministério Público são de certa forma atos policiais e, nas palavras do Mestre José Cretella Júnior, " Não basta que a lei possibilite a ação coercitiva da autoridade para justificação do ato de polícia. É necessário ainda, que se objetivem condições materiais que solicitem ou recomendem a sua inovação. A coexistência da liberdade individual com o poder de polícia repousa na harmonia entre a necessidade de respeitar essa liberdade e a de assegurar a ordem social. O requisito de conveniência ou de interesses públicos é, assim, pressuposto necessário à restrição dos direitos individuais.
Por fim, o poder de polícia, ao manifestar-se, de modo concreto, pela ação policial não pode ferir as liberdades públicas,. .. Erguem-se, desse modo, as liberdades públicas como barreiras intransponíveis, que o poder de polícia, ao exercer-se, deve respeitar. [5]"
Ademais, quando a Constituição Federal, em seu art.127, diz que o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, deu-lhe o caráter de Órgão imparcial.
Com efeito, a figura do promotor mudou radicalmente, deixando de ser o Promotor de Acusação para se tornar o Promotor de Justiça, cuja tarefa não é fazer valer a sua "pretensão punitiva", mas a de utilizar o processo na busca da verdade real com o fim de proteger a lei e as Instituições Democráticas, tanto na esfera civil como na criminal, mesmo que para isso seja necessário requerer, se for no âmbito penal, a absolvição do réu.
Agora, não somente o ius puniendi é depositado na mão do promotor como também a defesa do jus libertatis de todos os cidadãos, incluindo o do próprio acusado, não no sentido de inocentá-lo, mas no sentido de que, mesmo quando verificada a sua culpabilidade, cumpra a sua pena exclusivamente nos limites da lei, fazendo valer, em sua aflição, os direitos fundamentais do preso prescritos na Constituição Federal [6].
Desta forma, as antigas concepções de lide penal caem por terra uma vez que o promotor deixa de ser parte no processo e se transforma em alguém que intervém de forma desinteressada. Já não há mais de se falar em contrariedade entre o interesse punitivo e a liberdade pública, pois, todavia, no Estado social (Wellfair State) elas caminham lado a lado.
Corroborando, Fernando de Almeida Pedroso, pontificou: "...se não há pretensão diretamente dirigida à condenação do acusado e conseqüente subordinação do direito de liberdade do mesmo àquela, crível é que não se deve falar em conflito de interesses entre o jus punendi e o ius libertatis do indigitado autor do crime. Donde a conclusão: inexiste lide penal." [7]
5.O brutal aumento da criminalidade e a necessidade da criação de um "Novo Processo Penal".
Deixando de lado o foco central, mister se faz tecermos alguns comentários sobre o assustador aumento da criminalidade, pois dentre as atuais preocupações da sociedade brasileira, sem dúvida, esta é a que figura em maior destaque.
Os atuais estudos apontam diversos fatores contribuintes para a explosão dos números do crime no Brasil, enumerado, entre os principais: a miséria, a exclusão social e a ruptura do modelo familiar. Contudo, nas análises das causas dos delitos, esquecem-se que, dos morros do Rio de Janeiro às gangues de playboys de Brasília, verifica-se o fetichismo da violência – componente dos discursos políticos proferidos pela ideologia non sense dos programas de televisão e filmes hollywoodianos – como fator preponderante na propagação da cultura da destruição.
Por conseguinte, a industrialização do terror pelos meios de comunicação, utilizadores da mídia no controle de massas, transformou o ódio ao próximo em produto vendável na sociedade do consumo. Os reality shows, os programas sensacionalistas, associados à condição de miséria absoluta, criam caldo para a marginalidade [8], instigando o comportamento promíscuo e o uso de psicotrópicos, valorizando a figura do delinqüente em detrimento dos agentes públicos de combate ao crime, culminando numa total inversão de valores.
Sendo assim, resta claro que a criminalidade exacerbada é fruto do descaso das instituições políticas, bem como é o resultado do desgastado uso, pela classe dominante, de métodos de alienação das massas, sendo a retribuição pelo tratamento dispensado ao longo dos séculos à famélica população brasileira, que não mais aceita a organização social vigente.
É um anuncio da iminente falência do Estado, que está caindo, não por conta de movimentos revolucionários, mas pelo caos generalizado espalhado por todos os cantos, sendo evidente a rivalidade desse Estado com as dezenas de estados paralelos que surgiram para preencher o vácuo deixado pelo poder vigente.
Portanto, a razão pela qual o aumento da criminalidade se torna fato relevante para nosso estudo é que, proporcionalmente a esse aumento, cresce a tendência do Estado em sobrepor o interesse punitivo aos direitos individuais garantidos na Constituição, como uma reação tardia de quem é incapaz de solucionar o problema, visando atender ao clamor público, recorrendo à arbitrariedade em lugar da legalidade.
Com efeito, reformas radicais nas instituições e no Código de Processo Penal são imperiosas, e a protelação dessas medidas tendem a propugnar a explosão da desordem e implosão da ordem constituída, já que, historicamente, a sobreposição abusiva do interesse punitivo sobre os direitos individuais não demonstra ser um mecanismo eficiente contra a marginalidade, mas ao contrário, aumenta o sentimento de impunidade, uma vez que a lei se torna ineficaz até mesmo para o Estado, apimentando a insatisfação popular.
6.Conclusão
Ex posits, as antigas concepções do processo penal fascista, em grande parte adotada pelo atual CPP, não mais podem ser admitidas nessa nova realidade brasileira de um Estado Democrático de Direito em franco processo de redemocratização, entendendo que medidas ressocializadoras são muito mais eficazes do que a predominância de medidas repressivas tão comuns da ditadura militar.
A falta de critério no arbitramento das penas e da qualificação dos criminosos, colocando lado a lado um estelionatário com um narcotraficante, por exemplo, bem como a patente inconstitucionalidade das prisões temporárias, onde prende-se o suspeito para investigação, partindo-se do indivíduo para a busca das evidências e não das evidências para a busca do indivíduo suspeito, mostra as contradições e ilogismos de nosso sistema.
Por conseguinte, a doutrina defensora da luta entre interesse punitivo e liberdades públicas como se existisse uma lide penal, nada mais é do que o reflexo de um arcaísmo obsoleto, corroborador da crise de legitimidade a qual o Estado enfrenta desde a Revolução de "64".
A única saída é a reformulação dogmática-doutrinária do direito e do processo penal, admitindo como axioma nuclear a consonância entre liberdades públicas e interesse punitivo, como deve ser em qualquer Estado Democrático.
Notas
01. MIRABETE, J. F. Processo penal. São Paulo: Atlas, 1988, p. 25.
02. PEDROSO, F. A. Processo penal, o direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 36.
03. José Cretella Junior mostra muito bem a tendência privatista dos romanos em todas as esferas do direito, apresentando, de modo didático e conciso, um esboço de seu sistema processual e as classificações dos delitos, in: Curso de direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 303
04. FERREIRA FILHO, M. G. Estado de direito e constituição. São Paulo: Saraiva, 1988, p.14
05. CRETELLA JÚNIOR, J.Curso de direito administrativo.Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 424.
06. Carlos Alberto Fanchioni Silva, em seu artigo O limiar do século XX no sistema penitenciário: a justa opção entre o combate à criminalidade das organizações criminosas ou o ensaio na aplicação dos direitos aos encarcerados. (RT/Fasc. Pen. São Paulo, ano 91, v. 803, set. 2002.p.474), assevera que o Estado tem o dever de executar a pena, sendo na sentença condenatória o momento onde são traçados os limites da aflição penal (qualitativos, quantitativos e intensidade de sofrimento), respeitando-se o princípio da legalidade (art.5°, XXXIX, CF/88), o qual o Ministério Público possui o dever de defender. Mas a hipocrisia se revela justamente que, no processo de limitação da pena, não se computam a isso o sofrimento incomensurável a qual os presos não ligados a organizações criminosas são submetidos, uma vez que, para garantirem a sua sobrevivência dentro do sistema carcerário, completamente corroído pela corrupção, haja vista o aparecimento de grupos paramilitares ligados ao narcotráfico, como o PCC (Primeiro Comando da Capital) e CV (Comando Vermelho), são coagidos a aderirem a uma facção que, de dentro dos presídios, comandam e administram toda essa industria, sustentáculo da empresa da criminalidade
07. Ob. cit. n.2, p. 43
08. O efeito da comercialização da violência pode ser observado nas músicas dos jovens de periferia, como no rap e no funk, cujas letras fazem apologia ao crime, ao uso de narcóticos e a vulgaridade.
Bibliografia
CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
_______.Curso de direito administrativo.Rio de Janeiro: Forense, 2002.
FERREIRA FILHO, M. G. Estado de direito e constituição. São Paulo: Saraiva, 1988.
MAIEROVITCH, W. F. Prisão temporária. JTJ 1992-Texto 286. In: Jurisprudência consolidada Lex - Tribunais do Estado de São Paulo. (Biblioteca Digital Lex). São Paulo: Lex, 2001. CD-ROM. Produzido por Lexistema Informática.
MIRABETE, J. F. Processo penal. São Paulo: Atlas, 1988.
PEDROSO, F. A. Processo penal, o direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.
SILVA, E. A. Ação penal pública: princípio da oportunidade regrada. São Paulo: Atlas, 1999.
SILVA, C. A. F. O limiar do século XX no sistema penitenciário: a justa opção entre o combate à criminalidade das organizações criminosas ou o ensaio na aplicação dos direitos aos encarcerados. Revista dos Tribunais. São Paulo, ano 91, v. 803, fascículo penal, p. 470-477, set. 2002.
TOURINHO FILHO, F. da C. Prisão especial? Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 50, abr.2001.Disponível em: <http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=1977>. Acesso em: 13 mar. 2003.