A relação de gato e rato entre o governo e o contribuinte é velha conhecida de todos: enquanto a política versa no sentido de arrocho da carga tributária, a fim de garantir a arrecadação e o abastecimento dos cofres públicos e as contas no azul; o particular tenta – de igual forma – otimizar os seus lucros e, para isso, por vezes, busca abrigo nas brechas da lei para esquivar-se das contribuições pesadas.
Nos momentos de crise, então, isto é acentuado, uma vez que as contas públicas insistem em tingir-se de vermelho e o poder de compra é cada vez menor. Neste contexto, pode-se identificar um recrudescimento nos ramos do Direito que servem para garantir a confluência de fundos ao erário, mormente o Direito Tributário e o Direito Penal. Mais especificamente, trata-se do âmbito do Direito Penal Econômico, moderno viés do sistema penal que se ocupa dos intitulados “crimes de colarinho branco”.
Tal fenômeno dá-se por razão um tanto óbvia: a tendência para um momento de crise é todos voltarem-se a assegurar a captação de recursos, inclusive o ente público.
Importante consignar que o presente ensaio não tem por objetivo tecer críticas à política econômica, traçar o caminho a ser adotado por qualquer das partes. A finalidade precípua do trabalho cinge-se às questões de natureza eminentemente penal no cenário que se mostra no nosso horizonte.
Destarte, otimizar o faturamento público, por vezes, confunde-se com a expansão da influência dos sistemas tributários e penais. Mais especificamente quanto a este último, a ampliação dos poderes estatais e conseguinte retração dos poderes dos particulares implica no aparecimento de novas modalidades delitivas, antes não pensadas, ou apenas formas repensadas de crimes já existentes.
Um novo capítulo desta novela começa a ser esboçado (e, talvez, acenda um sinal de alerta para o que ainda está por vir).
Em 22 de julho do corrente ano, foi publicada a Medida Provisória n. 685/15, cujo objeto é a instituição do Programa de Redução de Litígios Tributários – PRORELIT – mais uma das medidas do Palácio do Planalto, na tentativa de inverter indicadores tão pessimistas da atual conjuntura econômica do Brasil.
O cerne desta previsão normativa (ao menos a partir de uma perspectiva menos astuta) é incentivar a desistência por parte dos contribuintes que têm créditos tributários em discussão na via judicial ou administrativa dos respectivos litígios e, como condição, deverão pagar as dívidas obedecendo-se às condições lá previstas.
O presente artigo, repisa-se, não tem o escopo de fazer a análise jurídico-tributária do corpo da MP em alusão, mas, sim, dar destaque ao aspecto penal que, veladamente, carrega. Mais especificamente, devem-se voltar as atenções ao disposto do art. 7º ao 12.
O art. 7º impõe a obrigação ao contribuinte de comunicar à Receita Federal “operações realizadas no ano-calendário anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo”. Sobre operações ainda não concretizadas, o Palácio do Planalto deu, como uma espécie de incentivo para que o contribuinte possa colaborar com a Autoridade Fazendária, o tratamento de mera consulta, quando relatar tais atos e negócios jurídicos (art. 8º).
O art. 9º, por sua vez, mantém o tom pretensamente pacífico e diz que, caso a Receita Federal não reconheça como legítimo o ato praticado no art. 7º, poderá o contribuinte recolher ou parcelar os tributos, no prazo de trinta dias, com a benevolência de ver incidir, apenas, juros de mora sobre o valor devido. O discurso, todavia, não se mantém tão amistoso nos dispositivos que se seguem e o faminto leão começa a ser desvendado.
O art. 11 trata da ineficácia da declaração contida no art. 7º, quando: a) apresentada por quem não for o sujeito passivo das obrigações tributárias eventualmente resultantes das operações referentes aos atos ou negócios jurídicos declarados; b) omissa em relação a dados essenciais para a compreensão do ato ou negócio jurídico; c) contiver hipótese de falsidade material ou ideológica; e d) envolver interposição fraudulenta de pessoas.
Por fim, tem-se o art. 12, que aparenta estar perdido entre tantos dispositivos, de redação enxuta e inofensiva, porém, indubitavelmente, o mais perigoso deste corpo normativo. Isso porque prevê que o não cumprimento das obrigações do art. 7º, ou mesmo a ocorrência de uma das hipóteses contidas no art. 11 serão considerados “omissões dolosas do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude”, quando os tributos serão cobrados com juros moratórios e acrescidos de multa de 150%.
Eis que aquela perfunctória leitura da medida provisória não mais satisfaz e revelam-se as pretensões do governo com a sua adoção. Consiste em mais uma forma de compelir o contribuinte a cumprir com as suas pesadas exações, mas, não é só. Não satisfeito com o manejo do aparato tributário para tanto, arvora-se de instrumentos tipicamente penais, o que faz apontar uma arma ao seu alvo: está-se entre a cruz e a espada.
Não é demais lembrar que o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, nos idos de 2013, publicou estudo em que apontava que a carga tributária brasileira tinha, para aquele ano, previsão de atingir uma marca correspondente a 36,04% do Produto Interno Bruto do país[1]. Ao fim do ano, não atingimos a meta, mas estivemos bem próximos a ela: a carga tributária correspondeu a 35,92%, como mostrou a Gazeta do Povo, em matéria publicada em 13 de dezembro do ano passado[2]. E a nossa expectativa não é nem um pouco encorajadora. Com o mercado em forte crise e inflação batendo previsões após previsões e acrescido a isto o fato da irredutibilidade das exações, significa dizer que uma fatia ainda maior da riqueza que será produzida neste ano será destinada de volta aos cofres públicos. E isto a que custo?
Aparentemente, a sede pela positividade dos números da economia parece ser uma meta que deve ser alcançada custe o que custar e a quem custar. Neste contexto, uma das armadilhas já saiu do Palácio do Planalto e dirige-se ao Congresso Nacional, enquanto, tecnicamente, já deve produzir seus efeitos: a MP 685/15.
Cumpre esclarecer, em breves linhas, que medida provisória é espécie normativa com força de Lei Ordinária, de competência do Chefe do Executivo, muito utilizada para a adoção de medidas que se relacionem com a governabilidade. Trata-se de ato normativo com força imediata de Lei Ordinária, cuja análise posterior compete ao Congresso Nacional, que decide sobre a sua aceitação, ou não, e, em caso negativo, regula sobre os referidos efeitos, nos termos do artigo X da Constituição Federal.
No bojo da MP 685/15, portanto, o contribuinte arcará com o ônus da incerteza, enquanto as atividades da Receita Federal tornam-se aparentemente mais fáceis: deverá receber daquele comunicado sobre as operações realizadas ou; quando ainda não as tiver colocado em prática, deverá ser consultado acerca do que o contribuinte pensa fazer. Todas as informações chegarão por “livre e espontânea” vontade do contribuinte.
Ingenuidade de lado, a probabilidade de haver discordância quanto às operações do contribuinte é real e considerável. Basta ligar os pontos: não se pretende abrir mão do que mantém a saúde dos cofres e dos indicadores, logo, dificilmente haverá medida nesta contramão.
O que o Poder Executivo fez, a bem da verdade, consiste numa forma de evitar o que se convencionou chamar “planejamento tributário”. Ao menos, não pretende ser desconhecedor deste planejamento – que é lícito, cumpre consignar desde já – e seu informante será o próprio beneficiário de tal prática. Se não pretender contribuir, será considerado sonegador e fraudador.
Mas, o afã do Executivo em otimizar a arrecadação e – ao mesmo tempo – tentar reduzir a sonegação conduziu-o a deslize irreparável: a previsão do art. 12 viola frontalmente a Constituição da República de 1988.
Desde 1990, com a edição da Lei n. 8.137, têm-se novas modalidades criminosas atentatórias à Ordem Tributária. Tal previsão legal sofreu – e ainda sofre – severas críticas, em virtude da inconsistência em diferentes âmbitos, como a frágil sustentação de tratar-se a Ordem Tributária um bem jurídico digno de tutela penal, recorrer – como parte dos crimes econômicos – a normas penais em branco, trazendo insegurança ao campo penal e, por fim, por mostrar-se unicamente como mecanismo de garantia do pagamento do tributo. Fato é que tais críticas mostraram-se inócuas com o passar do tempo, afinal a lei fará 25 anos em vigor e as modalidades criminosas surtem seus efeitos na prática.
Dentre elas, há a prática de crime quando houver supressão ou redução de tributo, através de omissão de informação (art. 1º, §1º, da Lei n. 8.137/90). Não coincidentemente, os mesmos termos são utilizados no bojo do art. 12 da MP 685/15.
É dizer que, a bem da verdade, a despeito do esforço de transfigurar o caráter penal da medida provisória, indene de dúvidas a sua existência. O art. 12 que ora se debate consiste numa ampliação do rol previsto na Lei n. 8.137/90 e funciona como uma das espécies de omissão à qual se refere, amplamente, o art. 1º, §1º, da Lei dos Crimes Tributários.
Este dispositivo contido na referida medida provisória talvez seja o de maior relevância, pois, indubitavelmente, a partir dele, ter-se-á força imperativa para fazer valer as demais previsões. O que se testemunha é, novamente, o recurso desmedido ao aparato penal para fazer valer previsões jurídicas estranhas ao Direito Penal.
Ocorre que o Estado que se pretende Democrático e de Direito não convive com um Direito Penal (e, por conseguinte, Direito Penal Tributário) em franca expansão – conforme se observa – e, para tanto, impõem-se limites ao seu raio de intervenção. É dizer que o Direito Penal concebido democraticamente deve obedecer a diversas restrições e ser utilizado apenas quando realmente necessário.
Para isso, um dos princípios basilares do Direito Penal Brasileiro – talvez, o mais importante – é o princípio da legalidade que está consagrado no art. 5º, XXXIX, da Carta Democrática de 1988 (não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal) e em conformidade com o art. 11, item II, da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Por “lei”, deve-se entender a norma emanada do exercício do Poder Legislativo, em respeito à repartição dos Poderes da República[3] e este requisito é fundamental.
A previsão de crimes através de leis oriundas do Poder Legislativo assegura ao cidadão viés mais democrático na previsão legal. Respeitar-se o limite da competência do Congresso Nacional para versar acerca de normas de Direito Penal ou Processual Penal consiste numa forma de rechaçar atos autoritários e avessos aos ares democráticos, tão caros aos Homens.
O crime consiste, indubitavelmente, num mecanismo de controle social e, por tal razão, o princípio da legalidade deve ser obedecido desde a sua dimensão política, nos atos constitutivos das leis[4]. A salutar mantença do Estado Democrático de Direito perpassa pela garantia de que o Poder Legislativo – arvorando-se no sistema representativo – faz emanar as leis e estas serão aplicadas e interpretadas pelo Poder Judiciário. Ao Poder Executivo, no que tange ao Direito Penal, resta o manejo do poder repressivo, quando necessário for, através da polícia, v.g.[5].
A fim de extirpar qualquer dúvida acerca da faculdade ao Chefe do Executivo legislar sobre a matéria penal, a Constituição Federal de 1988 foi alterada através da aprovação da Emenda Constitucional n. 32/2001 que veda, taxativamente, a edição de medidas provisórias de natureza penal ou processual penal.
O caminho percorrido leva a uma conclusão peremptória: o art. 12 da MP 685/15 é manifestamente inconstitucional e afronta o ideal de democracia brasileira. Não há espaço para defender tratar-se de previsão de natureza extrapenal, pois são as brechas que permitem a inversão dos valores.
Por mais sutil que seja o texto, por mais que apenas tangencie o Direito Penal, este encontra-se em flagrante violação aos ditames sufragados pela Carta Magna de 1988 e não deve encontrar amparo, seja no âmbito do Poder Legislativo, ou, se instado a manifestar-se, pelo Poder Judiciário.
Para concluir o que se defende no presente escólio, bem-vindas são as lições de Alberto Silva Franco, em texto de 1989, ao se ater aos pressupostos das medidas provisórias e a dissonância com a matéria penal:
“Embora o pressuposto da relevância seja próprio da matéria penal – cuida-se, aqui, da mais grave das sanções do arsenal estatal e justamente daquele que atua quando as demais sanções do ordenamento jurídico fraquejaram ou se revelaram inoperantes – não se pode dizer o mesmo em relação ao pressuposto da “urgência”. A urgência ‘é expressão de uma necessidade do Estado: a necessidade de atuar rapidamente’ e tal necessidade não condiz com o Direito Penal. Com efeito, se através do Direito Penal se determina a imposição de uma pena, se estão em jogo direitos e liberdades que necessitam ser salvaguardadas diante do próprio Poder Executivo, não se compreenderia que razões de urgência pudessem desguarnecer o cidadão de suas garantias e permitir a transferência de poderes legislativos ao Poder Executivo de forma que, nas mãos deste, ficasse a possibilidade de concretizar disposições penais.”[6]
A urgência não deve justificar, ainda que transitoriamente, o manejo do aparato penal. Muito menos quando o objetivo pretendido for, tão-somente, de cunho econômico.
Notas
[1] Cf. CARGA tributária brasileira é quase o dobro da média dos BRICS. Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação, Curitiba, 18 dez. 2013. Estudo. Disponível em: <https://www.ibpt.org.br/noticia/1443/Carga-tributaria-brasileira-e-quase-o-dobro-da-media-dos-BRICS>. Acesso em: 27 jul. 2015.
[2] Cf. Passadas as eleições, Brasil caminha para a maior carga tributária da história. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/passadas-as-eleicoes-brasil-caminha-para-a-maior-carga-tributaria-da-historia-ehdajgmtepm1tjntm8w32awy6. Acesso em: 27 jul. 2015.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais – 2ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 92
[4] BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral - São Paulo: Atlas, 2013. p. 35.
[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit. p. 93
[6] SILVA FRANCO, Alberto. A medida provisória e o princípio da legalidade. In: SILVA FRANCO, Alberto; NUCCI, Guilherme de Souza (Org.). Doutrinas essenciais: direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. v. 1. p. 319.