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Entre a cruz e a espada:

a disposição da Medida Provisória n. 685/15 e a sua face oculta

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A urgência não deve justificar, ainda que transitoriamente, o manejo do aparato penal. Muito menos quando o objetivo pretendido for, tão-somente, de cunho econômico.

A relação de gato e rato entre o governo e o contribuinte é velha conhecida de todos: enquanto a política versa no sentido de arrocho da carga tributária, a fim de garantir a arrecadação e o abastecimento dos cofres públicos e as contas no azul; o particular tenta – de igual forma – otimizar os seus lucros e, para isso, por vezes, busca abrigo nas brechas da lei para esquivar-se das contribuições pesadas.

Nos momentos de crise, então, isto é acentuado, uma vez que as contas públicas insistem em tingir-se de vermelho e o poder de compra é cada vez menor. Neste contexto, pode-se identificar um recrudescimento nos ramos do Direito que servem para garantir a confluência de fundos ao erário, mormente o Direito Tributário e o Direito Penal. Mais especificamente, trata-se do âmbito do Direito Penal Econômico, moderno viés do sistema penal que se ocupa dos intitulados “crimes de colarinho branco”.

Tal fenômeno dá-se por razão um tanto óbvia: a tendência para um momento de crise é todos voltarem-se a assegurar a captação de recursos, inclusive o ente público.

Importante consignar que o presente ensaio não tem por objetivo tecer críticas à política econômica, traçar o caminho a ser adotado por qualquer das partes. A finalidade precípua do trabalho cinge-se às questões de natureza eminentemente penal no cenário que se mostra no nosso horizonte.

Destarte, otimizar o faturamento público, por vezes, confunde-se com a expansão da influência dos sistemas tributários e penais. Mais especificamente quanto a este último, a ampliação dos poderes estatais e conseguinte retração dos poderes dos particulares implica no aparecimento de novas modalidades delitivas, antes não pensadas, ou apenas formas repensadas de crimes já existentes.

Um novo capítulo desta novela começa a ser esboçado (e, talvez, acenda um sinal de alerta para o que ainda está por vir).

Em 22 de julho do corrente ano, foi publicada a Medida Provisória n. 685/15, cujo objeto é a instituição do Programa de Redução de Litígios Tributários – PRORELIT – mais uma das medidas do Palácio do Planalto, na tentativa de inverter indicadores tão pessimistas da atual conjuntura econômica do Brasil.

O cerne desta previsão normativa (ao menos a partir de uma perspectiva menos astuta) é incentivar a desistência por parte dos contribuintes que têm créditos tributários em discussão na via judicial ou administrativa dos respectivos litígios e, como condição, deverão pagar as dívidas obedecendo-se às condições lá previstas.

O presente artigo, repisa-se, não tem o escopo de fazer a análise jurídico-tributária do corpo da MP em alusão, mas, sim, dar destaque ao aspecto penal que, veladamente, carrega. Mais especificamente, devem-se voltar as atenções ao disposto do art. 7º ao 12.

O art. 7º impõe a obrigação ao contribuinte de comunicar à Receita Federal “operações realizadas no ano-calendário anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo”.  Sobre operações ainda não concretizadas, o Palácio do Planalto deu, como uma espécie de incentivo para que o contribuinte possa colaborar com a Autoridade Fazendária, o tratamento de mera consulta, quando relatar tais atos e negócios jurídicos (art. 8º).

O art. 9º, por sua vez, mantém o tom pretensamente pacífico e diz que, caso a Receita Federal não reconheça como legítimo o ato praticado no art. 7º, poderá o contribuinte recolher ou parcelar os tributos, no prazo de trinta dias, com a benevolência de ver incidir, apenas, juros de mora sobre o valor devido. O discurso, todavia, não se mantém tão amistoso nos dispositivos que se seguem e o faminto leão começa a ser desvendado.

O art. 11 trata da ineficácia da declaração contida no art. 7º, quando: a) apresentada por quem não for o sujeito passivo das obrigações tributárias eventualmente resultantes das operações referentes aos atos ou negócios jurídicos declarados; b) omissa em relação a dados essenciais para a compreensão do ato ou negócio jurídico; c) contiver hipótese de falsidade material ou ideológica; e d) envolver interposição fraudulenta de pessoas.

Por fim, tem-se o art. 12, que aparenta estar perdido entre tantos dispositivos, de redação enxuta e inofensiva, porém, indubitavelmente, o mais perigoso deste corpo normativo. Isso porque prevê que o não cumprimento das obrigações do art. 7º, ou mesmo a ocorrência de uma das hipóteses contidas no art. 11 serão considerados “omissões dolosas do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude”, quando os tributos serão cobrados com juros moratórios e acrescidos de multa de 150%.

Eis que aquela perfunctória leitura da medida provisória não mais satisfaz e revelam-se as pretensões do governo com a sua adoção. Consiste em mais uma forma de compelir o contribuinte a cumprir com as suas pesadas exações, mas, não é só. Não satisfeito com o manejo do aparato tributário para tanto, arvora-se de instrumentos tipicamente penais, o que faz apontar uma arma ao seu alvo: está-se entre a cruz e a espada.

Não é demais lembrar que o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, nos idos de 2013, publicou estudo em que apontava que a carga tributária brasileira tinha, para aquele ano, previsão de atingir uma marca correspondente a 36,04% do Produto Interno Bruto do país[1]. Ao fim do ano, não atingimos a meta, mas estivemos bem próximos a ela: a carga tributária correspondeu a 35,92%, como mostrou a Gazeta do Povo, em matéria publicada em 13 de dezembro do ano passado[2]. E a nossa expectativa não é nem um pouco encorajadora. Com o mercado em forte crise e inflação batendo previsões após previsões e acrescido a isto o fato da irredutibilidade das exações, significa dizer que uma fatia ainda maior da riqueza que será produzida neste ano será destinada de volta aos cofres públicos. E isto a que custo?

Aparentemente, a sede pela positividade dos números da economia parece ser uma meta que deve ser alcançada custe o que custar e a quem custar. Neste contexto, uma das armadilhas já saiu do Palácio do Planalto e dirige-se ao Congresso Nacional, enquanto, tecnicamente, já deve produzir seus efeitos: a MP 685/15.

Cumpre esclarecer, em breves linhas, que medida provisória é espécie normativa com força de Lei Ordinária, de competência do Chefe do Executivo, muito utilizada para a adoção de medidas que se relacionem com a governabilidade. Trata-se de ato normativo com força imediata de Lei Ordinária, cuja análise posterior compete ao Congresso Nacional, que decide sobre a sua aceitação, ou não, e, em caso negativo, regula sobre os referidos efeitos, nos termos do artigo X da Constituição Federal.

No bojo da MP 685/15, portanto, o contribuinte arcará com o ônus da incerteza, enquanto as atividades da Receita Federal tornam-se aparentemente mais fáceis: deverá receber daquele comunicado sobre as operações realizadas ou; quando ainda não as tiver colocado em prática, deverá ser consultado acerca do que o contribuinte pensa fazer. Todas as informações chegarão por “livre e espontânea” vontade do contribuinte.

Ingenuidade de lado, a probabilidade de haver discordância quanto às operações do contribuinte é real e considerável. Basta ligar os pontos: não se pretende abrir mão do que mantém a saúde dos cofres e dos indicadores, logo, dificilmente haverá medida nesta contramão.

O que o Poder Executivo fez, a bem da verdade, consiste numa forma de evitar o que se convencionou chamar “planejamento tributário”. Ao menos, não pretende ser desconhecedor deste planejamento – que é lícito, cumpre consignar desde já – e seu informante será o próprio beneficiário de tal prática. Se não pretender contribuir, será considerado sonegador e fraudador.

Mas, o afã do Executivo em otimizar a arrecadação e – ao mesmo tempo – tentar reduzir a sonegação conduziu-o a deslize irreparável: a previsão do art. 12 viola frontalmente a Constituição da República de 1988.

Desde 1990, com a edição da Lei n. 8.137, têm-se novas modalidades criminosas atentatórias à Ordem Tributária. Tal previsão legal sofreu – e ainda sofre – severas críticas, em virtude da inconsistência em diferentes âmbitos, como a frágil sustentação de tratar-se a Ordem Tributária um bem jurídico digno de tutela penal, recorrer – como parte dos crimes econômicos – a normas penais em branco, trazendo insegurança ao campo penal e, por fim, por mostrar-se unicamente como mecanismo de garantia do pagamento do tributo. Fato é que tais críticas mostraram-se inócuas com o passar do tempo, afinal a lei fará 25 anos em vigor e as modalidades criminosas surtem seus efeitos na prática.

Dentre elas, há a prática de crime quando houver supressão ou redução de tributo, através de omissão de informação (art. 1º, §1º, da Lei n. 8.137/90). Não coincidentemente, os mesmos termos são utilizados no bojo do art. 12 da MP 685/15.

É dizer que, a bem da verdade, a despeito do esforço de transfigurar o caráter penal da medida provisória, indene de dúvidas a sua existência. O art. 12 que ora se debate consiste numa ampliação do rol previsto na Lei n. 8.137/90 e funciona como uma das espécies de omissão à qual se refere, amplamente, o art. 1º, §1º, da Lei dos Crimes Tributários.

Este dispositivo contido na referida medida provisória talvez seja o de maior relevância, pois, indubitavelmente, a partir dele, ter-se-á força imperativa para fazer valer as demais previsões. O que se testemunha é, novamente, o recurso desmedido ao aparato penal para fazer valer previsões jurídicas estranhas ao Direito Penal.

Ocorre que o Estado que se pretende Democrático e de Direito não convive com um Direito Penal (e, por conseguinte, Direito Penal Tributário) em franca expansão – conforme se observa – e, para tanto, impõem-se limites ao seu raio de intervenção. É dizer que o Direito Penal concebido democraticamente deve obedecer a diversas restrições e ser utilizado apenas quando realmente necessário.

Para isso, um dos princípios basilares do Direito Penal Brasileiro – talvez, o mais importante – é o princípio da legalidade que está consagrado no art. 5º, XXXIX, da Carta Democrática de 1988 (não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal) e em conformidade com o art. 11, item II, da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Por “lei”, deve-se entender a norma emanada do exercício do Poder Legislativo, em respeito à repartição dos Poderes da República[3] e este requisito é fundamental.

A previsão de crimes através de leis oriundas do Poder Legislativo assegura ao cidadão viés mais democrático na previsão legal. Respeitar-se o limite da competência do Congresso Nacional para versar acerca de normas de Direito Penal ou Processual Penal consiste numa forma de rechaçar atos autoritários e avessos aos ares democráticos, tão caros aos Homens.

O crime consiste, indubitavelmente, num mecanismo de controle social e, por tal razão, o princípio da legalidade deve ser obedecido desde a sua dimensão política, nos atos constitutivos das leis[4]. A salutar mantença do Estado Democrático de Direito perpassa pela garantia de que o Poder Legislativo – arvorando-se no sistema representativo – faz emanar as leis e estas serão aplicadas e interpretadas pelo Poder Judiciário. Ao Poder Executivo, no que tange ao Direito Penal, resta o manejo do poder repressivo, quando necessário for, através da polícia, v.g.[5].

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A fim de extirpar qualquer dúvida acerca da faculdade ao Chefe do Executivo legislar sobre a matéria penal, a Constituição Federal de 1988 foi alterada através da aprovação da Emenda Constitucional n. 32/2001 que veda, taxativamente, a edição de medidas provisórias de natureza penal ou processual penal.

O caminho percorrido leva a uma conclusão peremptória: o art. 12 da MP 685/15 é manifestamente inconstitucional e afronta o ideal de democracia brasileira. Não há espaço para defender tratar-se de previsão de natureza extrapenal, pois são as brechas que permitem a inversão dos valores.

Por mais sutil que seja o texto, por mais que apenas tangencie o Direito Penal, este encontra-se em flagrante violação aos ditames sufragados pela Carta Magna de 1988 e não deve encontrar amparo, seja no âmbito do Poder Legislativo, ou, se instado a manifestar-se, pelo Poder Judiciário.

Para concluir o que se defende no presente escólio, bem-vindas são as lições de Alberto Silva Franco, em texto de 1989, ao se ater aos pressupostos das medidas provisórias e a dissonância com a matéria penal:

“Embora o pressuposto da relevância seja próprio da matéria penal – cuida-se, aqui, da mais grave das sanções do arsenal estatal e justamente daquele que atua quando as demais sanções do ordenamento jurídico fraquejaram ou se revelaram inoperantes – não se pode dizer o mesmo em relação ao pressuposto da “urgência”. A urgência ‘é expressão de uma necessidade do Estado: a necessidade de atuar rapidamente’ e tal necessidade não condiz com o Direito Penal. Com efeito, se através do Direito Penal se determina a imposição de uma pena, se estão em jogo direitos e liberdades que necessitam ser salvaguardadas diante do próprio Poder Executivo, não se compreenderia que razões de urgência pudessem desguarnecer o cidadão de suas garantias e permitir a transferência de poderes legislativos ao Poder Executivo de forma que, nas mãos deste, ficasse a possibilidade de concretizar disposições penais.”[6]

A urgência não deve justificar, ainda que transitoriamente, o manejo do aparato penal. Muito menos quando o objetivo pretendido for, tão-somente, de cunho econômico.


Notas

[1] Cf. CARGA tributária brasileira é quase o dobro da média dos BRICS. Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação, Curitiba, 18 dez. 2013. Estudo. Disponível em: <https://www.ibpt.org.br/noticia/1443/Carga-tributaria-brasileira-e-quase-o-dobro-da-media-dos-BRICS>. Acesso em: 27 jul. 2015.

[2] Cf. Passadas as eleições, Brasil caminha para a maior carga tributária da história. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/passadas-as-eleicoes-brasil-caminha-para-a-maior-carga-tributaria-da-historia-ehdajgmtepm1tjntm8w32awy6. Acesso em: 27 jul. 2015.

[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais – 2ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 92

[4] BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral ­- São Paulo: Atlas, 2013. p. 35.

[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit. p. 93

[6] SILVA FRANCO, Alberto. A medida provisória e o princípio da legalidade. In: SILVA FRANCO, Alberto; NUCCI, Guilherme de Souza (Org.). Doutrinas essenciais: direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. v. 1. p. 319.

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Sobre os autores
Brenno Cavalcanti

Advogado criminalista. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBa). Especialista em Ciências Criminais pelo JusPodivm - Rede LFG. Professor de Direito Penal do Centro Universitário Jorge Amado.

Ilana Martins

Advogada criminalista. Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia (UFBa) e professora dos cursos de graduação e pós-graduação de Direito Penal da Faculdade Salvador (UNIFACS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, Brenno ; MARTINS, Ilana. Entre a cruz e a espada:: a disposição da Medida Provisória n. 685/15 e a sua face oculta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4425, 13 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41729. Acesso em: 26 abr. 2024.

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