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Comportamento corrupto:

Se não sabem, são estúpidos; e, se sabem, são maus

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Agenda 18/08/2015 às 14:37

A corrupção não entende de vítimas e, quando se acumula, tolerante e/ou impunemente, dentro de uma sociedade, acaba por transmitir a aterradora mensagem de que é aceitável comportar-se mal em grande escala: onde a corrupção triunfa, a moral capitula.

“La esperanza de una mala ganancia  es el comienzo de una pérdida. El  olvido de las propias faltas trae consigo la desfachatez. La vergüenza miedosa produce servilismo; pero la disposición amistosa no tiene esa recompensa. Para nada debe uno avergonzarse más frente a otros que frente a si propio, ni debe contar, en un acto de maldad, el que no se entere nadie o el que se entere la humanidad toda. Ante nosotros mismos debemos primordialmente avergonzarnos, y esto tiene que figurar como ley a las puertas del alma: nada hacer que sea indigno”. Demócrito

A compreensão que tenho da Moral carece da mais mínima sintonia com o chamado "comportamento corrupto". Digamos que minhas intuições e valores morais me predispõem contra qualquer indício de corrupção em qualquer de suas modalidades e sucedâneos. Um tipo de comportamento que resulta nauseabundo para qualquer concepção acerca de um sentido moral próprio do ser humano. Por que isso é assim? Qual a razão de uma conduta tão estranha e corrosiva? Quais são as causas, os motivos, as condições que fazem possível esta forma de ser?

Aristóteles, em seus debates sobre a moralidade, insiste nas habilidades pessoais e sociais para prosperar no âmbito moral. Segundo esta perspectiva, a aquisição e o exercício das habilidades morais dependem da prática de hábitos adequados, e podem ver-se influenciado pelos modelos, as práticas sociais e as instituições que encontramos na vida diária. De fato, o entender a moralidade como um tema essencialmente prático e resultado de um longo treinamento nos recorda a enorme importância que têm as habilidades que diariamente costumamos exercer sem esforço, de modo fluido e contumaz, como uma virtuosa extensão de nosso caráter e de nossa vontade.

O problema é que a maioria das pessoas dá por descontado que, embora levem a cabo condutas social e moralmente reprováveis, continuam a crer que são boas, que são distintas, que são melhores, diferentes ou superiores. Construímos umas ideias preconcebidas interessadas e egocêntricas, que melhoram a imagem que temos de nós mesmos e fazem com que nos sintamos especiais, nunca normais e correntes, sempre «por cima da média», em qualquer prova de integridade pessoal ou ética. Esses prejuízos cognitivos e egocêntricos desempenham uma função valiosa, porque reforçam nossa autoestima e alimentam nossa sensação de invulnerabilidade moral. Permitem-nos justificar nossas faltas, atribuir-nos o mérito de nossos êxitos e eludir a responsabilidade de nossas más decisões, fazendo-nos ver nosso mundo subjetivo através de uma lente multicolor (P. Zimbardo). Um agente corrupto, em última instância, sempre se perguntará se não é também ele um ser humano. (B. Brecht)

Da mesma forma, não são poucas as pessoas que se negam a reconhecer que, embora a virtude se exerça de maneira unificada, em um conjunto de situações significativas, em determinadas situações podem existir forças externas e internas potentes, mas sutis, com poder potencial de transformá-las. Se negam a admitir que certos estados de coisas influem em nossos próprios estados motivacionais, alterando o comportamento e que é necessário uma grande disposição e força de vontade para paliar as falhas e debilidades do autocontrole. Ignoram que nosso velho «eu», vulnerável ao atrativo que exerce o «lado escuro», sempre pode não atuar da maneira esperada, quando as regras básicas cambiam.

A questão, portanto, reside em saber o que impulsa a conduta humana. O que determina nossos juízos e comportamentos morais? No contexto do complicado atuar humano, o que faz com que algumas pessoas levem uma vida reta e honrada, enquanto que outras parecem cair com certa facilidade na imoralidade e no delito? Que fatores ou influências guiam nossos pensamentos, nossos sentimentos e nossos atos para o bom ou o mau caminho? Até que ponto nosso comportamento moral está à mercê de acontecimentos situacionais cumulativos, isto é, da situação e do momento em que nos encontramos? Em que medida a conduta viciosa está condicionada por nossa natureza inexoravelmente «corrupta e caída»? Quais são os mecanismos institucionais e mentais que fazem possível a corrupção? Que passa na cabeça dos corruptos quando levam a cabo atividades delitivas, a incorrer e aceitar a corrupção? É possível ser ético em um entorno corrupto de uma sociedade distorcida em seus valores?

É indubitável que os verdadeiros expertos na corrupção são quem a praticam e que a análise deste fenômeno nunca poderia estar completa se não prestamos atenção a estes atores. Afinal, são os indivíduos que outorgam um determinado significado a suas ações e decidem que tipo de elementos do entorno em que atuam se convertem em incentivos que lhes estimulam a levar adiante determinados comportamentos.   

E, uma vez que a prática depende fundamentalmente das circunstâncias em que se apresentam, os desafios e da personalidade de quem os enfrenta, começarei por recordar que é um erro frequente perguntar se o ser humano é bom ou mau por natureza (agressivo ou pacífico, ou, por exemplo, se nossa sexualidade é monógama ou polígama). Os seres humanos não são essencialmente nem bons nem maus (agressivos nem pacíficos, nem monógamos nem polígamos). Os humanos respondem com bondade ou maldade (agressivamente ou cooperativamente, de forma monógama ou polígama) dependendo de histórias vitais específicas e dos ambientes em que se encontrem (e isto não é coisa dos seres humanos exclusivamente - ainda que tenhamos mais variedade -, senão também de outros animais).

O melhor recurso contra o descaro antropológico de que a corrupção estaria na «natureza humana» é a evidência de que somos tanto o resultado dos extensos sistemas – riqueza e pobreza, educação, predomínio cultural e religioso etc. - que governam nossa vida como das situações concretas em que nos encontramos cotidianamente; forças que interagem com nossa biologia e nossa personalidade. Desde um ponto de vista objetivo, a ideia (sustentada por muitos) de que o ser humano é corrupto por natureza é ridícula, um autêntico despropósito transparentemente inventado para proteger de qualquer desafio moral comportamentos humanos eminentemente discutíveis.[1]

Somos uma mescla de instintos em que o potencial para a bondade e para a perversão é inerente à complexidade da mente humana. Juntos, o impulso para o mal e para o bem compõe a dualidade mais básica da natureza humana – o que implica que a trajetória da ação que adotamos em um determinado momento e situação é o resultado de um estado mental emergente selecionado pela interação do complexo meio circundante em que opera o cérebro, isto é, de que existem infinidades de influências que guiam nossas condutas e nossos juízos morais. (M. Gazzaniga)

Dito isto, o que tratarei de fazer à continuação será conjecturar sobre algumas das possíveis causas do comportamento corrupto. 


Corrupção, comportamento corrupto e «maldade»

Geralmente, a corrupção se define como o abuso por parte de um servidor público em favor do benefício próprio ou de interesses privados, “un acto de deslealtad hacia los valores constitucionales” (A. Calsamiglia). No caso de corrupção pública, dá-se um uso incorreto ao dinheiro público e, a partir deste fato, se assegura que o ato afeta toda a sociedade: posto que o dinheiro público está destinado a satisfazer interesses de toda a sociedade, desviar este dinheiro tem como consequência afetar os interesses gerais em favor de um interesse particular.[2]

Independentemente da prática levada a cabo por estes tipos de sujeitos malfeitores (políticos e funcionários, por exemplo) que, locupletando-se dos «benefícios» da corrupção e sem nenhum tipo de escrúpulo, multiplicam seus patrimônios «estando dentro do governo», está claro que o fenômeno estendido da corrupção pode ser analisado desde distintas perspectivas. O primeiro que salta à vista é o ponto de vista moral. Mas, este enfoque moral pode variar desde uma relativamente simples convicção de rechaço ao «roubo» puro e duro, da apropriação de algo que não pertence ao agente corrupto, até uma maior consciência das consequências desse tipo de depredação social, entre as quais está a certeza do dano, sofrimento ou miséria de alguém que o agente corrupto não necessariamente conhece e de quem, geralmente, não verá jamais seu rosto.

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Para o que aqui interessa, e evitando perder-me em disquisições filosóficas ou em realizar um exame exaustivo do amálgama de teorias e crenças que conformam o pot-pourri da corrupção, limitar-me-ei a analisar este último aspecto: o do comportamento corrupto como uma forma perversa, imoral e diluída de rapinagem social, nomeadamente no que se refere à conduta de indivíduos vinculados à Administração Pública que, no uso de suas prerrogativas funcionais, direta ou indiretamente, obtêm e utilizam, de forma fraudulenta, desonesta e indecente, recursos ou meios públicos para enriquecimento pessoal. Dito do modo mais simples possível: do comportamento corrupto (ou da corrupção) como hábito antimoral de «crime contra a sociedade» (L. Boff) [3]. Que Deus os maldiga!

Também assumirei que a corrupção é um ato de maldade (de «erosão da empatia» ou «desconexão do circuito da empatia no cérebro», para utilizar a expressão empregada por Simon Baron-Cohen - “Zero Degrees of Empathy. A New Theory of Human Cruelty” -, que intenta explicar o problema do mal utilizando o conceito de empatia[4]), cuja definição é elementar, fácil e tem uma base psicológica: “A maldade consiste em obrar deliberadamente (por ação ou inação) de uma forma que provoque dano, maltrate, humilhe, desumanize ou cause sofrimento a pessoas inocentes, ou em fazer uso da própria autoridade e do poder sistêmico para praticar, alentar ou permitir que outros obrem com a mesma finalidade”. (A. G. Miller)

Por outro lado, admitirei que estes atos de autêntica «maldade administrativa» são praticados por indivíduos «terrorífica y terriblemente normales»: pessoas normais e correntes, que «educam» seus filhos e amam seus companheiros (as), que frequentam clubes e eventos sociais, que (provavelmente) oram e vão à igreja ou templos etc., e não uns «aliens» com rabo e chifres procedentes de outro mundo. Em definitiva, pessoas ordinárias - alguém como o amável leitor (a) ou eu – cujo comportamento parece dotado de um tipo de normalidade que, desde o ponto de vista de “nuestras instituciones jurídicas y de nuestros criterios morales, resulta mucho más terrorífica, por cuanto implica que este tipo de delincuente comete sus delitos en circunstancias que casi le impiden saber o intuir que realiza actos de maldad”. (H. Arendt)[5]

E para que nos entendamos, este tipo de análise, em modo algum, pretende escusar ou quitar responsabilidade a quem atua de maneira imoral ou ilícita, a esta espécie de ser humano animado única ou primordialmente por seu próprio interesse egoísta - ou, como se diz agora, com feio anglicismo, «auto-interesse» -  e que lhe costuma ir muito bem a arte do autoengano para a autorregulação moral ou limpeza moral mental. Tampouco é minha intenção desconsiderar o fato de que nenhuma conduta complexa em seres humanos livres se deve a uma série linear e aditiva de causas. Qualquer resultado importante, como a conduta corrupta, apresenta inumeráveis causas interrelacionadas, cada uma das quais tem inumeráveis efeitos potenciais, o que a sua vez origina uma prodigiosa complexidade prática, antes, inclusive, de chegar à certeza de que os efeitos práticos se codeterminam uns a outros.

Nada obstante, ainda que o esclarecimento da fonte de tal ou qual comportamento humano resulte endiabradamente difícil de localizar e determinar (e se incluímos os inumeráveis efeitos dos genes, então o problema se eleva à enésima potência - Eric Turkheimer), especular sobre os mecanismos mentais que usamos para desconectar os princípios morais de nossa conduta (ou de nossa empatia), talvez nos situe em uma posição melhor para combater esse fenômeno, sobretudo no que se refere à justiça e ao castigo, reafirmando a relevante e urgente necessidade de  combater, erradicar ou minimizar o alcance do monstruoso fantasma da corrupção.

Sigamos, pois, por esta senda.


Filosofia moral experimental: «roubo à mão armada», «trem assassino» e  «afogamento»

Alguns estudos sobre o fenômeno da corrupção argumentam que uma forma de inculcar a importância da defesa do patrimônio público, porque os danos a este afetam à sociedade em geral, seria a de articular complexas reflexões (emocionais) de causalidade ou estabelecer vínculos causais complexos – quer dizer, nexos entre causa e  consequências que costumam ser distantes no tempo e no espaço -, embora reconheçam que somente uma pequena proporção da população tem a capacidade de conceber esses vínculos causais pouco evidentes (E. Salcedo-Albarán et al.). Voltarei a esta questão mais adiante.

Retomando a teoria da interpenetração das emoções e a razão na construção de condutas e juízos morais, é possível inferir que, somente se há sentimentos («pessoalidade», «empatia», «cercania» etc.) em relação às pessoas, teremos motivos para não causar-lhes danos; isto é, que um fato capaz de suscitar uma reação emocional possui um espectro de impacto mais profundo que qualquer outra forma tradicional de interação ou comunicação racional no que ao ato causar dano aos demais se refere.

Aqui é onde parece jogar um papel fundamental a denominada filosofia moral experimental, desenvolvida por um grupo de investigadores e filósofos que descobriram que, para entender como atua o ser humano, “no bastaba con quedarse reflexionando sobre ello en el sillón de su despacho”(J. Knobe). Não, por certo, com o intuito de substituir as elaborações integrais da Ética, da filosofia e das ciências sociais e jurídicas, senão dando-lhes um aporte fático e prático – quer dizer, sem negar o papel determinante da cultura, mas sim reconhecendo a inegável relação entre «nature-nurture».

Ademais, a proposta de usar experimentos sobre os comportamentos para confirmar hipóteses acerca da natureza e do comportamento humano é antiga. Trata-se, o estudo experimental dos pensamentos e comportamentos chamados «morais» ou «imorais», de um programa de investigação que tem como objetivo comprovar hipóteses sobre nossos juízos e condutas, mas cujo interesse é mais evidente, e com métodos um pouco mais sérios, menos especulativos e um pouco mais respeitosos com a ciência.[6]

A ideia subjacente consiste em que uma vez que cheguemos a entender a natureza humana (ou ao menos alguns de seus aspectos) quiçá possamos cambiar a maneira de contemplar os problemas importantes do mundo real e o modo de afrontá-los. Como disse em certa ocasião Jonathan Haidt: “Vivimos la edad de oro de la nueva síntesis en el campo de la ética que predijo E. O Wilson en 1975: la «consilience»”. 

Vejamos por partes.

i) Anonimato, «desindividualização» e vínculo causal

Simulemos mentalmente o seguinte cenário. Se alguém rouba um banco à mão armada, com crianças entre as vítimas mortais, e o agarram, toda a opinião pública se voltará sobre o ladrão. E a justiça operará com diligência contra esse indivíduo para que cumpra uma longa pena em alguma cárcere. Isso sucede porque o autor e o delito são muito evidentes e porque houve vítimas diretas que sofreram muito: um horror sofrido por muitos. Igual passará com todos os delitos similares que sucedem, cotidianamente, em nossas cidades. A cidadania se solidariza com a vítima de imediato, e as notícias cumprem seu papel para que essa solidariedade seja cada vez maior.

Em contrapartida, quando um delito não tem vítimas imediatas, quando não são visíveis as feridas ou os mortos, será difícil que a cidadania possa ser solidária, porque não há dor ou sofrimento à vista. Isto é precisamente o que ocorre com o desfalque de dinheiro público. Se um político ou funcionário público «rouba», silenciosa e descaradamente, um enxame de dinheiro, todo mundo (meios de comunicação e cidadãos) cairá sobre ele por «corrupto» ou «ladrão» (refiro-me aos grandes escândalos de corrupção, porque, nos «pequenos» e muito mais frequentes, apesar de igualmente nocivos, o anonimato e a indiferença institucional é a regra[7]). No entanto, dificilmente se chegará a ser solidário com as vítimas desse desfalque, porque, insisto, estas não se veem.

Mas existem e são muitas. Se todo esse dinheiro foi usurpado, por exemplo, do sistema de saúde, haveria que se fazer o esforço colossal para se imaginar a quantidade de gente que foi deixada (ou deixará) de ser atendida em um hospital por falta de recursos, as mortes que se produzem em decorrência dessa defraudação, as caras amargas dos enfermos apinhados às portas de um hospital, a dor das mães com suas crias enfermas e sem tratamento etc. E, se todo esse dinheiro foi tirado do sistema público de educação, também seria necessário um grande esforço e energia mental para imaginar as daninhas consequências sobre suas potenciais vítimas.

Em síntese: é de esperar que a maioria dos indivíduos empatize ou se solidarize com as vítimas e reaja com profunda indignação ante um roubo ou ataque físico que causa um dano, direto ou indireto, a uma ou várias pessoas. Por que? Porque neste caso o vínculo causal entre o ato e o sofrimento (atual e futuro) de uma pessoa específica resulta evidente, porque os eventos «causa e efeito» não se encontram distantes no tempo e no espaço. Nada obstante, em alguns delitos, dado que os eventos «causa e efeito» não são tão evidentes, é comum que as pessoas (e, inclusive, o próprio agente corrupto), na medida em que não percebem ou identificam um vínculo causal, não experimentem qualquer sentimento de empatia ou solidariedade com as vítimas, nenhum sentimento de rechaço, repugnância ou repulsão contra os autores de tais atos (a maioria anônima) e, dessa forma, não se indignem como Deus manda, e nem atuem em consequência.

A corrupção, baixo o véu do anonimato do agente e/ou a «desindividualização» da vítima, ao exigir estabelecer relações causais complexas, pertence a este segundo tipo de crime. Como sentir-nos comprometidos com dramas que se situam distantes e aos que somente nos vincula uma série causal infinitamente tênue? Ao contrário dos outros delitos, seu secretismo (a distância e a delgada causalidade) encobre a maldade e dilui a responsabilidade do agente entre o bando e o grupo a que pertence: «Esto funciona así. Todo el mundo lo hacía. No va a pasar nada. Sencillamente no hables de ello, no lo menciones», parecem dizer os amigos, familiares, conhecidos e cúmplices dos corruptos, como se também eles temessem ver-se arrastados ao purgatório.

É a comédia suprema, a hipocrisia absoluta... Um “hecho que se ha vuelto odioso”, como diria Camus.

ii) Impessoalidade, razão e emoção

A pesquisa mais ampla sobre nossas intuições e juízos morais foi realizada por uma equipe de investigadores em psicologia, dirigida por Marc Huaser, no marco de uma investigação massiva através da internet e na qual participaram pessoas de ambos os sexos, de distintas categorias de idade, distintas religiões, distintos níveis de estudos, de diferentes comunidades étnicas ou culturais e em vários países. Consistia em apresentar o clássico dilema do trem, proposto inicialmente nesta forma por Phillipa Foot: “Um trem circula sem controle e se aproxima em direção a cinco pessoas que morrerão se o veículo mantiver a mesma trajetória. Pablo, que está passeando junto à via do trem, é testemunha da cena anterior e tem a oportunidade de salvar-lhes a vida mediante o simples movimento de pulsar um interruptor que desviará o trem para outra via diferente, donde só matará a uma pessoa em lugar de cinco.  Deve acionar o interruptor e desviar o trem com o fim de salvar a cinco pessoas a expensas de uma?”.

Se o amável leitor é como a maioria das pessoas, não vacilará à hora de pulsar o interruptor: experimentamos poucas dificuldades à hora de decidir o que fazer nessa situação. E, ainda que a perspectiva de pulsar o interruptor não seja precisamente agradável, a opção utilitarista (matar a uma pessoa em lugar de cinco) representa a «opção menos má». De fato, a grande maioria das pessoas que responderam em todo o mundo, aproximadamente 89%, afirmou que estava bem ou que era correto que Pablo acionasse o interruptor.

Em seguida, propuseram-lhes a seguinte variante, proposta por Judith Jarvis Thomson: “Como antes, o trem ameaça matar a cinco pessoas. Frank se encontra em uma passarela (ponte) sobre a estrada de ferro e tem ao seu lado uma pessoa corpulenta e de grande estatura. Se empurra o desconhecido e o joga às vias, deterá a marcha do trem. O desconhecido morrerá, evidentemente, mas se salvarão as cinco pessoas. Está bem ou é correto que Frank salve as cinco pessoas matando a este desconhecido? Deveria empurrar-lhe?”.

Se o amável leitor for como quase todo o mundo, se sentirá um pouco mais cauto e angustiado ante a sugestão de que Frank deveria empurrar uma pessoa inocente, ainda que seja para salvar outras cinco almas. Aqui poderíamos dizer que nos encontramos ante um dilema «real». Neste caso, 89% dos entrevistados respondeu que não. Esta coincidência em todos os grupos culturais e de idade, assim como a dicotomia na resposta, resulta assombrosa quando em realidade as cifras (salvar cinco pessoas permitindo a morte de uma) não variam entre os dilemas. E mais: quando se pediu aos entrevistados que justificassem suas respostas, estes ofereceram diversas explicações, nenhuma especialmente lógica.

Desde outra perspectiva e metodologia, Joshua Greene e colaboradores se perguntaram se as pessoas utilizavam a mesma parte do cérebro em ambas as circunstâncias, isto é, para a solução de ambos os dilemas. Assim que «escanearam» os sujeitos em um experimento com neuroimagem enquanto decidiam suas respostas. Descobriram que com o primeiro dilema, que era de caráter «impessoal» (pulsar o interruptor), incrementava-se a atividade nas áreas do cérebro associadas ao raciocínio abstrato e à resolução de problemas, enquanto que, no segundo caso, que era um dilema «pessoal» (havia que tocar fisicamente e empurrar a um desconhecido), incrementava-se a atividade nas áreas associadas com a emoção e a cognição social.

Agora mudemos o cenário.

“Passas por casualidade ante um pequeno lago e vês uma criança que se está afogando. Não há nem pai, nem mãe, ou nenhum outro transeunte por perto para socorre-la. Tu podes salvar-lhe a vida facilmente. Basta que corras até ela sem sequer desnudar-te e a tragas até a borda. Não é necessário que saibas nadar, pois o lago não é profundo. Se o fazes, só te expões a estragar os belos sapatos que acabas de comprar e a chegar tarde a teu trabalho. Não seria monstruoso deixar morrer essa criança para não estragar os sapatos novos e evitar a reclamação de um chefe?”.

Se o amável leitor responde que sim, também terá que admitir que é monstruoso deixar morrer de fome crianças que vivem em países mais pobres, quando bastaria que dedicasse uma parte ínfima de seu salário para salvá-las. J. Greene também explora esta hipótese para explicar o contraste entre nossa indiferença à sorte das crianças que morrem de fome distantes de nós, com as quais não temos contato pessoal, e nossa sensibilidade ao sofrimento exposto ante nossos olhos. Ao analisar este tipo de dilema, Greene e colaboradores descobriram que, ainda que as opções sejam superficialmente as mesmas – não faças nada e preserve teu interesse próprio ou salva vidas com pouco custo pessoal -, a diferença estriba em que o primeiro cenário é «pessoal», enquanto que o segundo é «impessoal».

No que concerne à (boa) neurociência, o mais interessante e o que realmente importa não é tanto as respostas que formulam os participantes desses experimentos, mas sim as áreas cerebrais que se lhes ativaram de forma distinta quando enfrentavam os dilemas morais pessoais e os dilemas morais impessoais, isto é, que tipo de dilemas as ativa e que zonas do cérebro intervêm quando se tomam decisões morais desse tipo. E posto que se trata, tanto no dilema do trem como do afogamento, de casos similares que requerem respostas similares, os correlatos neuronais diferenciais para a resolução dos dois grupos diferentes de dilemas se distinguem pelo modo de chegar a um mesmo resultado: um em que os sujeitos se encontram implicados «pessoalmente» em uma determinada ação (em que se incrementa a atividade nas áreas associadas com a emoção e a cognição moral/social) e outro que implica uma maior distância pessoal para quem atua (em que se incrementa a atividade nas áreas do cérebro associadas com o raciocínio abstrato e a resolução de problemas).

De acordo com as investigações procedentes das ciências, que se ocupam do cérebro e da conduta, parece razoável supor que não estamos frente a dois juízos reciprocamente excludentes, senão diante de dois juízos diferentes que ativam áreas distintas do cérebro por obra das circunstâncias e do envolvimento pessoal do agente que atua. Em realidade, esses resultados parecem indicar que, quando se apresenta um problema moralmente equivalente sobre o qual a pessoa decide não atuar, é porque a parte emocional do cérebro não se ativa.

No caso de comportamento corrupto, o abuso do poder, os vícios da avareza e da cobiça não são os únicos que sacam a reluzir as tendências assustadoramente egoístas e desonestas que, tão frequentemente, determinam o proceder dos indivíduos cujo comportamento perverso, imoral, cínico e perigoso não pode suportar que a luz da virtude brilhe com demasiada força no fascinante mundo da imoralidade. A incapacidade ou cegueira (deliberada ou não) para perceber o vínculo causal, a impessoalidade e/ou a distância emocional do agente em relação aos membros «invisíveis» da sociedade também parecem facilitar a prática de atos corruptos.

Resultado: um agente corrupto está sempre disposto a abraçar a ideologia de que «dinheiro público não é de ninguém» e a enriquecer-se como uma «impessoal» máquina de caça-níqueis, mas seguramente não estaria disposto a enriquecer-se utilizando uma arma e/ou provocando pessoalmente o sofrimento de membros concretos de uma comunidade.

Sobre os autores
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Marly Fernandez

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Cognición y Evolución Humana pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Teoría del Derecho pela Universidad de Barcelona- UB (Espanha). Pós-doutorado (Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica) pelo Laboratório de Sistemática Humana- UIB (Espanha). Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB pelo Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog (Espanha). Membro do Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB) do Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB (Espanha).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Marly. Comportamento corrupto:: Se não sabem, são estúpidos; e, se sabem, são maus. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4430, 18 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41869. Acesso em: 16 nov. 2024.

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