12. Nulidades materiais como supedâneo para ajuizamento da ação anulatória
O cabimento da ação anulatória se define não como problema de direito processual, mas concernente ao direito material. A lei material será aquela a definir quando são anuláveis, mediante ação anulatória do art. 486 do CPC, os atos que não dependem de sentença ou chancelados por "sentença meramente homologatória".
Afirma, ainda, o artigo 486 do CPC, que os atos serão anuláveis "como os atos jurídicos em geral", motivo este que nos faz crer cabível a ação anulatória como ação declaratória de nulidade de um ato viciado nos termos do direito material, independentemente deste ato ser ou não processualizado, ou seja, ser ou não praticado dentro de um determinado processo.
Isso, a nosso ver, pode ser realizado com supedâneo no artigo 5º, Inciso XXXV da Constituição Federal (in verbis: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", dispositivo este que assegura constitucionalmente o amplo acesso ao judiciário), além, é claro, analisando literalmente o artigo 486 do CPC.
Trata-se do direito constitucional de ação, previsto no dispositivo supra mencionado e que garante o ajuizamento de uma ação ante a lesão a um direito. É um princípio processual constitucional. [77]
É necessário, para o ajuizamento da ação anulatória, saber precipuamente qual a natureza do ato judicial e se este está eivado de vício de nulidade nos termos do direito material.
Marcos Afonso Borges, comentando esse problema, menciona: "Saber quando são anuláveis os atos independentes de sentença ou chancelados por sentença homologatória não é problema do direito processual, mas do direito material". [78]
Para se definir o cabimento da ação anulatória em determinada hipótese temos que realizar um exame do "ato judicial", dependente ou não de homologação, a fim de que se possa concluir seja passível de ser anulado em face de algumas das regras do direito material.
O fundamento da ação anulatória de ato judicial, homologado ou não, consubstancia-se em relação às regras relativas às nulidades dos atos tanto processuais como jurídicos em geral, pois diz respeito às nulidades atinentes ao direito material e também ao direito processual, sendo diferente (muito mais abrangente) do que ocorre, v. g., com a ação rescisória, que tem como fundamento para seu cabimento as hipóteses do art. 485 do Estatuto Processual, que retratam nulidades de ordem processual (rescisão da sentença de mérito transitada em julgado); cabimento muito mais restrito, portanto do que a ação anulatória.
O artigo 486 do CPC. dispõe serem passíveis de anulação os atos judiciais, dependentes estes ou não de sentença homologatória, "como os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil".
Temos uma grave imprecisão terminológica do artigo em exame que se refere à expressão "lei civil", pois, não apenas a lei civil, mas todo o direito material deve ser passivo da anulabilidade do ato via ação anulatória, desde que, evidentemente, presentes as nulidades materiais que possam fulcrar o ajuizamento dessa ação.
Não devemos interpretar restritivamente a expressão "lei civil", pois os motivos de anulabilidade são os previstos em quaisquer normas de direito material de todos os ramos, não apenas especificamente relativas ao direito civil.
Humberto Theodoro Júnior também entende assim: "Os fundamentos da ação anulatória deverão ser procurados no direito material. A expressão "lei civil" do art. 486 deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo todos os ramos do direito material". [79]
Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda menciona: "lei civil abrange qualquer direito material, público ou privado, que se refira a ato jurídico em exame para a rescindibilidade". [80]
É óbvio que a expressão "nos termos da lei civil" somente pode significar "nos termos do direito material", estendendo-se a todos os ramos do direito material público ou privado, inseridos nesse conceito o direito civil (a ser entendido como regra geral), o direito administrativo, o direito comercial, o direito do trabalho, bem como as demais legislações especiais, desde que tratem de direito material.
Devidamente esclarecido este lapso ortográfico existente no artigo 486 do CPC., passemos a analisar os fatos jurídicos, ensejadores do fulcro material para o ajuizamento da ação anulatória.
Fato jurídico em sentido amplo é todo acontecimento dependente ou não da vontade humana e engloba os atos jurídicos. O fato jurídico em sentido estrito é todo evento independente da vontade humana que traz efeitos jurídicos. O ato jurídico é todo fato jurídico que depende da vontade do homem. O ato processual, normalmente, é a exteriorização de uma vontade, através da prática de um ato jurídico, válido de acordo com o direito processual e o direito material, inserido na relação jurídica processual (processo).
Assim, a ação anulatória será cabível para declarar e desconstituir tanto o ato praticado em juízo pelas partes, eivado de vício de nulidade (absoluta ou relativa), por não se ter observado regras dispostas no direito material, como o ato jurídico em geral.
Ao mencionar "nos termos da lei civil", a legislação somente poderia abranger todo o direito material, pois, o direito processual civil, decorrente das relações civis, em nosso ordenamento, é aplicado subsidiariamente em todos os demais procedimentos judiciais ou extrajudiciais (penais, administrativos, trabalhistas, etc.). Deve englobar essa expressão todo e qualquer direito material, de forma que os "atos judiciais", em geral nos termos da lei material, poderão ser anulados ou nulos, dependendo do que dispuser a legislação de direito material.
Portanto, ato processual, para ser anulado mediante a ação disposta no art. 486 do CPC, deverá estar maculado com os vícios de nulidade (absoluta ou relativa), conforme as regras do direito material.
As nulidades processuais, embora não possuírem os mesmos princípios que norteiam o sistema das nulidades do direito material, conservam a mesma terminologia e a característica de serem as nulidades mais graves que as anulabilidades.
Os processualistas ressaltam que se está em busca de subsídios, recorrendo ao direito civil, o mais remoto ramo do direito, mas, tendo em vista que o processo civil encontra-se atualmente desenvolvido como ciência, não tem sentido venha este lançar mão das nulidades dispostas no direito material. [81]
Ocorre que, como já mencionamos, além dos atos processuais, os atos jurídicos em geral são passivos da anulabilidade via ação anulatória; assim, portanto, além da lei ser clara em lançar a aplicabilidade da lei civil aos atos passivos da nulidade e anulabilidade lá previstas, os atos jurídicos em geral (e aí se inclui os atos processuais) são anuláveis nos termos da lei civil.
No entanto, algumas nulidades processuais devem ser declaradas por ação, em consonância com as regras específicas contidas no direito processual, não as vinculando ao direito material. Todavia, se determinado ato praticado pelas partes em juízo estiver maculado pelos vícios de nulidade do direito material, poderá ser ajuizada a ação anulatória do art. 486 do CPC, que terá efeito desconstitutivo do ato.
Teresa Arruda Alvim Wambier acaba com a discussão acerca da anulabilidade dos atos processuais de forma implacável, desenvolvendo brilhante tese, que, a nosso ver, não deixa margens a maiores discussões. Ela afirma que o tema concernente às "nulidades" refere-se à teoria geral do direito, abrangendo todas as áreas do Direito. [82]
Com efeito, temos uma posição bastante ampla com relação ao cabimento da ação anulatória; entendemos ser passivo de decretação de nulidade qualquer ato jurídico, seja de qualquer ramo do direito, uma vez viciado de alguma forma, seja ele de direito material ou de direito formal.
Os artigos 138 e seguintes do Código Civil tratam das nulidades (absolutas e relativas) dispostas no direito civil, ramo do direito privado, mas que muitas vezes expõe normas gerais do direito, com abrangência e aplicação a todos os ramos do direito.
Não obstante o direito processual civil faça parte do direito público, por possuir normas que dizem respeito a uma relação jurídica onde o Estado participa, o direito positivo brasileiro não fornece base concreta para que se possa proceder à elaboração de uma teoria das nulidades no direito público. E por esse motivo, pode-se aplicar, com ressalvas e adaptações, as regras do direito privado no atinente às nulidades. [83]
No entanto, quanto ao direito civil, não se aplicam regras, princípios ou doutrina civil aos atos processuais, em razão das diferentes circunstâncias em que se constituem, sendo impossível confundir ou assimilar as nulidades civis às processuais, já que estas últimas se governam por princípios totalmente distintos. [84]
Mas, como já foi afirmado, a discussão acerca das nulidades processuais resulta impertinente a este estudo, pois o art. 486 do CPC só faz menção aos princípios que norteiam o sistema das nulidades do direito material.
Assim, a ação anulatória trata da nulidade do ato praticado em juízo pelas partes; muitas vezes a ausência do procedimento de requisito processual indispensável para prática de determinado ato jurídico em juízo, dependente ou não de sentença, poderá maculá-lo de vício de nulidade pela ausência de obediência à forma prescrita em lei, conforme dispõe o direito material. Exemplo típico tem-se na ausência de prévia intimação do executado na arrematação, que consubstancia ausência de forma prescrita em lei, nulidade absoluta disposta no art. 166, IV do CC. [85]
Portanto, os atos jurídicos em geral, nos termos da lei civil, podem ser rescindidos via ação anulatória prevista no artigo 486 do CPC., podendo, assim, todo e qualquer ato, desde que não seja uma sentença de mérito transitada em julgado (passiva, neste caso, de decretação de nulidade via ação rescisória), ser decretado nulo via ação declaratória de nulidade.
13. Atos inexistentes
A teoria das nulidades no direito brasileiro centra-se nos arts. 138 a 184 do Código Civil. Toda ela se arquiteta a partir desses dispositivos. Estes, por sua vez, vão buscar sua origem remota no sistema de nulidades do Direito Romano, engendrado não pelos romanos, mas pelos romanistas contemporâneos, com base nos antigos textos, principalmente do Corpus Iuris Civilis, do séc. VI da era cristã. [86]
Podemos dividir os atos viciados de alguma forma em quatro categorias: os atos nulos, anuláveis, ineficazes e inexistentes.
Além dos atos inválidos, haveria os inexistentes. A inexistência dos atos jurídicos se dá sempre que o ato contiver defeito tão grave que nem chega a existir. Falta-lhe pressuposto ou elemento essencial de existência. É diferente dos atos inválidos, porque estes existem, não produzindo, porém, os efeitos almejados. Os atos jurídicos inexistentes, nem chegam a existir. Não necessitam ser anulados. O máximo que se pode requerer é a declaração de sua inexistência.
Exemplos de atos inexistentes são o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o testamento verbal, etc. Repetindo, serão inexistentes os atos aos quais faltar elemento essencial. Também se consideram inexistentes aqueles atos cuja nulidade não houver de ser pronunciada pelo juiz. Isto porque, na verdade, não são defeituosos, mas inexistentes, no sentido de que não devem ser considerados. Tal é o caso das condições fisicamente impossíveis.
O Código Civil Italiano contém as seguintes normas a respeito do tema, verificando-se, entretanto, que não há disposições de caráter genérico, mas referentes a uma espécie de negócios jurídicos, qual seja, os contratos:
"Art. 1418. O contrato é nulo, quando contrário a normas imperativas, salvo quando a Lei disponha diversamente. Tornam nulo o contrato a falta de um dos requisitos indicados no art. 1325, a ilicitude dos motivos, no caso indicado no art. 1345, e a falta no objeto dos requisitos estabelecidos no art. 1346. O contrato também será nulo nos outros casos estabelecidos em lei.
Art. 1421. Salvo nos casos de disposição legal em contrário, a nulidade pode ser argüida por qualquer interessado e pode ser pronunciada de ofício pelo juiz.
Art. 1422. A ação declaratória de nulidade não se sujeita a prescrição, salvo os efeitos do usucapião e da prescrição das ações de repetição.
Art. 1423. O contrato nulo não pode ser convalidado, a não ser que a Lei disponha de modo diverso.
Art. 1425. O contrato é anulável se uma das partes era legalmente incapaz de contratar. É também anulável, quando ocorrerem as condições estabelecidas no art. 428, contrato celebrado por pessoa incapaz de entender e de querer.
Art. 1441. A anulação do contrato pode ser demandada apenas pelos interessados, indicados em lei. A incapacidade do interdito pode ser argüida por qualquer interessado.
Art. 1442. A ação anulatória prescreve em cinco anos.
Art. 1444. O contrato anulável pode ser convalidado por quem tenha legitimidade para anulá-lo, mediante ato que contenha a menção do contrato e do motivo da anulabilidade, bem como declaração de que se deseja convalidá-lo".
O Código Civil Francês é pobre sobre o assunto. Apenas um artigo tem caráter, mais ou menos, genérico: "Art. 1304. Em todos os casos em que a ação anulatória ou de rescisão de uma convenção não estiver limitada a tempo menor por lei especial, esta ação durará cinco anos".
Os romanos mesmo pouco teorizaram a respeito do tema. O estudo e a sistematização do sistema de nulidades no Direito Romano é obra posterior, que tem início no direito canônico medieval, desenvolvendo-se na modernidade, principalmente, nos sécs. XVIII e XIX, na Alemanha, França e Itália.
Na opinião generalizada dos tratadistas, intérpretes do Direito Romano, os atos do ius civile eram válidos ou nulos. O Direito Pretoriano introduziu a anulabilidade, alargada e generalizada pelo Direito Justinianeu.
O chamado ius civile era o direito da cidade, o ius civitatis, o Direito Romano propriamente dito, cuja expressão máxima foi a Lei da XII Tábuas, do séc. V a.C. Era direito rígido e formalista, inadequado à evolução dos tempos, já mesmo naqueles idos anteriores à Era Cristã. Daí a importância da atuação dos magistrados que, por meio de seus editos, foram adaptando o ius civile a novas situações, emergentes de novas realidades. Esse Direito Romano, inovado pelos magistrados, principalmente pelos pretores (ius honorarium, Direito Pretoriano), introduziu a anulabilidade, mais à frente (séc. VI d.C.) ampliada pelo Direito Justinianeu.
Já havia duas espécies de nulidade: a relativa e a absoluta. Tratando-se de nulidade absoluta, o ato não produzia qualquer dos efeitos que se tinha em vista. Neste caso a espécie de nulidade que o feria equivalia a considerá-lo verdadeiramente inexistente.
Esses negócios não dependiam de anulação judicial. Não produziam efeitos por não existirem. Eram nulos ab origene, pleno iure. Exemplos seriam a compra e venda sem preço; o testamento sem as formalidades exigidas; etc.
Era nulo o negócio quando lhe faltasse elemento essencial. Não é sempre fácil determinar, em face do Direito Romano, se um ato é absolutamente nulo, relativamente nulo ou anulável. O critério deve ser o do interesse em respeito do qual a ineficácia foi cominada. Se for de ordem pública, a nulidade será absoluta; se de ordem puramente privada, a nulidade será relativa ou o negócio será anulável.
O ato inexistente não produzia efeitos. O ato inexistente não admitia convalidação, a não ser que se o praticasse novamente, quando seus efeitos se produziriam ex nunc.