MONOCULTURA E TRANSGENIA:
IMPACTOS AMBIENTAIS E INSEGURANÇA ALIMENTAR
MONOCULTURE AND TRANSGENES:
ENVIRONMENTAL IMPACTS AND FOOD INSECURITY
Cirlene Luiza Zimmermann[1]
Sumário
1 Introdução; 2 Os impactos ambientais da monocultura; 3 O risco ambiental do desenvolvimento dos transgênicos; 4 A insegurança alimentar como consequência social da monocultura e da transgenia; 5 Sustentabilidade: caminho para a segurança alimentar; 6 Considerações finais; 7 Referências bibliográficas.
Contents
1 Introduction; 2 The environmental impacts of monoculture; 3 Environmental risk of developing transgenics; 4 Insecurity food as a social result from monoculture and transgenics; 5 Sustainability: path to security food; 6 Final considerations; 7 References.
Resumo
A produção agrícola mundial tem se concentrado em monoculturas, com a expectativa de obter aumento do volume produzido e garantir a alimentação de toda a população do planeta. Contudo, as consequências ambientais e sociais desse modelo têm sido desastrosas, provocando destruição da biodiversidade e esgotamento dos solos, além de os países das regiões mais pobres do planeta estarem passando fome, já que sua produção é primária e destinada, quase que exclusivamente, para exportação. O desenvolvimento dos transgênicos intensificou a monocultura e incrementou os riscos, havendo mais dúvidas sobre seus benefícios do que certezas. Para garantir segurança alimentar e sustentabilidade ambiental é preciso investir em novas técnicas de produção agrícola, inclusive com a interferência estatal.
Abstract
The global agricultural production has focused on monocultures, with the expectation of obtaining increase in production volume and to guarantee food for the entire population of the planet. However, the environmental and social consequences of this model have been disastrous, leading to destruction of biodiversity and depletion of soils, and the countries of the poorest regions of the world are starving, because their production is primary and designed almost exclusively for export. The development of transgenic has intensified the monoculture and increased risks, with more questions about their benefits than certainties. To ensure food security and environmental sustainability is necessary to invest in new agricultural production techniques, including with state interference.
Palavras-chave
Monocultura; meio ambiente; transgênicos; insegurança alimentar; sustentabilidade.
Key words
Monoculture; environment; GM; food insecurity; sustainability.
1 Introdução
O atual modelo agrícola mundial é altamente questionável no critério sustentabilidade, especialmente porque privilegia o desenvolvimento de novas técnicas, como a transgenia, de consequências ainda duvidosas, além de priorizar práticas largamente conhecidas como causadoras de impactos negativos sobre o meio ambiente, como a monocultura em grandes extensões de terra.
A simplificação dos ecossistemas, processo indispensável para o desenvolvimento da monocultura extensiva (arquétipo que se mantém com a transgenia, já que não foi pela necessidade dos pequenos produtores rurais que ela se desenvolveu), é extremamente perigosa para a manutenção desses ecossistemas, que, em geral, são complexos, considerando que o incremento dos agroecossistemas tem ocorrido nas regiões com maior biodiversidade do planeta e, desgraçadamente, também mais pobres.
Além dos impactos ambientais, também a segurança alimentar da população mundial é ameaçada por esse padrão agrário, apesar de a monocultura em grande escala durante muito tempo ter sido apresentada como solução para o problema da fome no mundo.
Hoje, diferentemente disso, sabe-se que as consequências negativas desse modo de produção, que envolve desmatamento, queimadas, utilização de agrotóxicos, fertilizantes químicos e transgênicos, são muito mais acentuadas que os benefícios, especialmente no que se refere aos impactos ambientais e à insegurança alimentar, fatores que passaram a ameaçar, inclusive, a continuidade da espécie humana.
Diante disso, a manutenção e avanço do método de produção monoculturista e a evolução da transgenia precisam ser disciplinados, para não dizer, barrados, se efetivamente houver interesse em garantir segurança alimentar. Esse controle depende de uma atuação estatal efetiva, orientada para o bem comum, com o resguardo de regiões de agricultura familiar e o desenvolvimento ou aprimoramento de técnicas ambientalmente adequadas, como a rotação de culturas, além do incentivo às pesquisas na busca de alternativas para um desenvolvimento rural sustentável.
2 Os impactos ambientais da monocultura
A monocultura é o cultivo de uma única espécie agrícola em determinada área ou região, ocorrendo, com maior intensidade, nas grandes propriedades rurais. No Brasil, esse modelo é bastante conhecido, pois desde que iniciou seu desenvolvimento como país agrário, concentrou seus esforços em culturas específicas, como foi o caso da cana-de-açúcar, do café e, atualmente, da soja. Essas produções em grande escala, em geral, são destinadas à comercialização, especialmente, para o mercado externo, até porque nenhum ser humano tem necessidade de uma quantidade muito expressiva de um único alimento para sobreviver. Essa especialização, contudo, é extremamente prejudicial ao solo, acarretando significativo desequilíbrio ambiental, devido ao desgaste e empobrecimento nutricional causados pela produção contínua de uma mesma planta e a consequente contaminação, gerada pelo uso indiscriminado de fertilizantes, com o intuito de manter ou recuperar a produtividade da terra, e de agrotóxicos, indispensáveis para combater as pragas que surgem em razão da uniformização das culturas.
O enfoque mercadológico, para Leff, é resultado da globalização econômica, que está gerando uma retotalização do mundo sob o valor unidimensional do mercado, superexplorando a natureza, homogeneizando culturas, subjugando saberes e degradando a qualidade de vida das maiorias (2001, p. 40).
A difusão em larga escala da prática da monocultura, baseada na utilização intensiva de fertilizantes químicos e em processos mecânicos de reestruturação e condicionamento de solos, além do emprego sistemático do controle químico das pragas, ocorreu com o desenvolvimento do modelo euro-americano de modernização agrícola após a Revolução Industrial. Antes disso, a monocultura de culturas temporárias só podia ser praticada por longos períodos em condições muito restritas: em regiões de solos excepcionais ou em regiões de conquista onde a degradação da terra não tem importância (ROMEIRO, 1998, p. 93).
Assim sendo, um país com alguma expectativa de desenvolvimento e com um governo consciente de suas responsabilidades jamais admitiria a instalação de um modelo agrícola de monocultura em seu território, o qual somente seria aceitável em países de pobreza extrema que, justamente por esse motivo, teriam apenas a alternativa da exploração de suas terras pela monocultura para manter suas populações miseráveis por mais algum tempo.
A monocultura, portanto, poderia ser a escolha diante do seguinte confronto: sobrevivência temporária da espécie humana em detrimento da natureza ou preservação do meio ambiente em detrimento da espécie humana. O antropocentrismo natural do homem o faria optar pela primeira alternativa, lançando-se na monocultura. Mas, não estando nesse limite, a preferência pela monocultura jamais deveria prevalecer, já que se trata de um modo de produção afeto à lógica econômica tradicional, de curto prazo, que, por isso mesmo, nunca conseguirá incorporar a dimensão ambiental de maneira sustentável.
No entanto, mesmo não estando nesse limiar, em todo o mundo o modelo de produção agrária incentivado é o da monocultura de grandes extensões, seja ela intensiva em agrotóxicos ou em transgênicos, o que representa, segundo Soares e Porto (2007), a expansão de sistemas ecológicos artificialmente homogêneos, sendo que, atualmente, 90% da produção mundial de alimentos estão restritos a somente quinze espécies vegetais, num âmbito de milhares de espécies vegetais comestíveis conhecidas, e oito animais.
Castro, em sua obra Geografia da Fome, lançada em 1946, apresenta um profundo estudo sobre o problema da fome no Brasil, com suas causas e consequências, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. Dentre as causas, aparece no nordeste açucareiro, com sua típica paisagem natural, a monocultura, caracterizada como uma doença grave da economia agrária (2006, p. 109):
Descobrindo cedo que as terras do Nordeste se prestavam maravilhosamente ao cultivo da cana-de-açúcar, os colonizadores sacrificaram todas as outras possibilidades ao plantio exclusivo da cana. Aos interesses de sua monocultura intempestiva, destruindo quase que inteiramente o revestimento vivo, vegetal e animal da região, subvertendo por completo o equilíbrio ecológico da paisagem e entravando todas as tentativas de cultivo de outras plantas alimentares no lugar, degradando ao máximo, deste modo, os recursos alimentares da região (Idem, p. 97).
A monocultura da cana-de-açúcar, explica Castro, se processa em regime de autofagia, já que a cana devora tudo em torno de si, engolindo terras e mais terras, consumindo o humo do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas e o próprio capital humano. Aparentemente, a cana constitui até um elemento de proteção da terra contra os perigos da erosão, em razão do recobrimento do solo com o revestimento vegetal de sua abundante folhagem e a consolidação da estrutura do solo com suas raízes intrincadas. Contudo, a perda da fertilidade é um fator importante no mecanismo de erosão e a monocultura da cana esgota rapidamente a fertilidade dos solos, alterando sua estrutura e diminuindo sua resistência às forças de desagregação (Idem, p. 98-99).
Os impactos ambientais produzidos pela cana no Nordeste, segue Castro, começaram pela destruição da floresta, abrindo com as queimadas as clareiras para seu cultivo. Depois, veio o empobrecimento rápido, o esgotamento violento do solo, diminuindo de um lado a renovação do seu húmus formado pela decomposição da matéria orgânica vegetal (que antes vinha da floresta) e, de outro, facilitando ao extremo seus processos de lavagens exageradas do solo e sua consequente erosão irreversível, já que o homem não dispõe de nenhum recurso para refazer a riqueza do solo que a água arrasta para o mar, nem mesmo lançando mão dos dispendiosos processos de fertilização (Idem, p. 103-105).
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, foi criada em 26 de abril de 1973, tendo por missão viabilizar soluções de pesquisa, desenvolvimento e inovação para a sustentabilidade da agricultura, em benefício da sociedade brasileira. Contudo, muitos de seus estudos permitiram, principalmente no início de sua atuação, a expansão da monocultura, até porque se acreditava que esse modo de produção poderia aumentar a produtividade e, consequentemente, representar um avanço social para o povo brasileiro.
No cerrado brasileiro, relata Porto-Gonçalves, antes da expansão do agronegócio, o fazendeiro podia ser proprietário da terra, mas não do babaçu ou do pequi, o que demonstra uma modalidade mais complexa de apropriação dos recursos naturais, onde as territorialidades não são mutuamente excludentes. Todavia, desde os anos de 1960 com a abertura de estradas e, sobretudo, nos anos de 1970 e 1980, com a colaboração dos estudos da Embrapa sobre a correção e adubação de solo e na seleção de sementes adaptadas à região, e o barateamento relativo de tecnologias de captação de água a 100 e 200 metros de profundidade, as chapadas passaram a se constituir em objeto de atenção das grandes empresas do complexo agropecuário, dando origem ao latifúndio produtivo do agronegócio (2006, p. 259).
A ampla expansão da atividade agrícola na região do cerrado brasileiro, segundo Soares e Porto (2007), é de monoculturas associadas ao uso intensivo de agrotóxicos e fertilizantes, o que é muito natural, pois o bioma do cerrado possui um solo não muito fértil para agricultura, o que intensifica o uso dessa tecnologia para atingir a alta produtividade que vem sendo obtida nessas áreas de solo mais pobre.
Mas algumas pesquisas da Embrapa, apesar dessas críticas, também têm tido a efetiva preocupação com o desenvolvimento de uma agricultura sustentável. Nesse sentido, um estudo sobre as tecnologias de produção de soja na região central do Brasil, realizado em 2004, incentivou a rotação de culturas, à medida que, a monocultura ou mesmo o sistema contínuo de sucessão do tipo trigo-soja ou milho safrinha-soja, tende a provocar a degradação física, química e biológica do solo e a queda da produtividade das culturas, além de proporcionar condições mais favoráveis para o desenvolvimento de doenças, pragas e plantas daninhas.
O sistema de rotação de culturas prevalecia nas práticas agrícolas tradicionais e consiste em cultivar, em uma mesma área de terras, diferentes espécies vegetais, as quais devem ser alternadas anualmente com o objetivo de recuperar o solo. Refere o relatório da Embrapa que as vantagens desse sistema são inúmeras:
Além de proporcionar a produção diversificada de alimentos e outros produtos agrícolas, se adotada e conduzida de modo adequado e por um período suficientemente longo, essa prática melhora as características físicas, químicas e biológicas do solo; auxilia no controle de plantas daninhas, doenças e pragas; repõe matéria orgânica e protege o solo da ação dos agentes climáticos e ajuda a viabilização do Sistema de Semeadura Direta e dos seus efeitos benéficos sobre a produção agropecuária e sobre o ambiente como um todo (2004).
A viabilidade econômica do sistema de rotação de culturas é atestada pela Embrapa, dependendo apenas de um adequado planejamento da propriedade, que consiste em dividir a área destinada à implantação dos sistemas de rotação em tantas glebas quantos forem os anos de rotação e, após essa definição, estabelecer o processo de implantação sucessivamente, ano após ano, nos diferentes talhões, previamente, determinados.
O sistema de rotação de culturas, portanto, é o mais adequado para a manutenção da integridade e da complexidade dos ecossistemas naturais. Segundo Romeiro, a rotação de culturas evita a simplificação extrema, sendo um meio notável de manutenção da estabilidade do ecossistema agrícola (1998, p. 202).
Apesar de todas as vantagens do sistema de rotação de culturas, a preferência agrícola mundial ainda tem sido pela monocultura, sendo seus maiores adeptos, na atualidade, os países não desenvolvidos (mais pobres), localizados nas regiões tropicais do planeta, que a utilizam para produção de commodities alimentícios, destinados, quase que exclusivamente, à exportação para os países ricos. Países ricos que, por sinal, já esgotaram suas terras em razão dos seus modelos insustentáveis de produção, mas que, ainda assim, foram importados e ainda hoje são aplicados pelos países pobres.
Ocorre que os impactos ambientais desse modelo euro-americano de modernização agrícola nas regiões tropicais são muito mais graves do que nas regiões de clima temperado frio, como enfatiza Romeiro, especialmente porque nos trópicos, a ausência de uma estação fria faz com que o equilíbrio de cada ecossistema dependa inteiramente da diversidade biológica, expressa na cadeia de presas e predadores. Diante disso, para a monocultura ser viável nessas regiões, é preciso um controle químico muito mais rigoroso, o que representa um problema sério de saúde pública nas regiões de agricultura moderna, além da reação clássica da natureza de gerar variedades resistentes, bem como de fazer desaparecer espécies úteis ou transformar outras até então inofensivas em pragas (1998, p. 112).
A substituição da complexidade (ecossistemas) pela simplificação (agroecossistemas), acrescenta Porto-Gonçalves, é menos grave em biomas como os das regiões temperadas e frias, em razão de serem menos diversificados biologicamente falando, enquanto que a questão se coloca de modo mais sério quando se trata de regiões tropicais, onde a diversidade biológica é maior e, portanto, onde mais complexos são os circuitos de matéria e energia como um todo, sendo que manter elevada a produtividade nessas regiões, com as grandes monoculturas, exige uma permanente importação de energia que, nesse caso, só pode advir de fontes que não a energia solar diariamente renovada (2006, p. 255-256).
Na esteira dos perigos ambientais decorrentes da monocultura e do uso ampliado de fertilizantes e insumos com vistas ao aumento da produtividade também estão os desmatamentos, as queimadas, a erosão dos solos, a desregulação da dinâmica hídrica, sendo a agricultura responsável pelo consumo de 70% da água de superfície no planeta, e a extinção de diferentes espécies.
Mesmo diante de tantos inconvenientes, os simpatizantes da técnica da monocultura a defendem, afirmando que conduz a uma maior produtividade, já que todos os esforços de determinadas regiões e/ou produtores se voltam para uma produção específica. Contudo, para verificar a consistência desse argumento, é preciso saber se essa maior produtividade não estaria associada a um incremento na utilização de fertilizantes, o que demonstraria as falhas do sistema, em razão dos impactos ambientais negativos decorrentes. E de fato, segundo Porto-Gonçalves, a relação entre produção de grãos e uso de fertilizantes caiu de 42 toneladas para 13 toneladas de grãos por cada tonelada de fertilizantes usada entre 1950 a 2000. Diante disso, conclui o autor: “saltam à vista as limitações ecológicas desses agroecossistemas, na medida em que, sendo extremamente simplificados, são, por isso mesmo, dependentes de insumos externos para manter seu equilíbrio dinâmico” (2006, p. 246) [grifo do autor].
Os impactos negativos da monocultura não são apenas agroambientais. A prática da monocultura envolvendo outras espécies vegetais, mas com objetivos igualmente econômicos, também causa enormes prejuízos à natureza, como é o caso da monocultura do eucalipto, encabeçada pelas grandes multinacionais de papel e celulose, que é uma forma de cultivo que utiliza intensamente os nutrientes do solo, principalmente grandes quantidades de água, além de ameaçar a biodiversidade.
Assim, resta evidente que a monocultura é uma prática ambientalmente insustentável, que precisa ser revista urgentemente, sob pena de tornar estéreis milhares de hectares de terras em todo mundo, além de agravar os já nefastos efeitos colaterais sobre os demais elementos dos ecossistemas envolvidos, que ameaçam, inclusive, a sobrevivência da espécie humana.
3 O risco ambiental do desenvolvimento dos transgênicos
As sementes transgênicas são organismos geneticamente modificados, isto é, que resultam da combinação de materiais genéticos, originando uma nova forma, com características diversas das dos organismos originais envolvidos no experimento. O desenvolvimento das sementes transgênicas, iniciado na segunda metade do século XX, visava desenvolver organismos mais tolerantes a herbicidas e resistentes a insetos, com os quais se obteria maior produtividade e se teria condições de resolver o problema da fome no mundo, promessa que, entretanto, não se concretizou.
Por outro lado, o que as sementes transgênicas conseguiram, apesar de não constar entre seus objetivos expressos, foi uma significativa poluição genética nas regiões em que passaram a ser cultivadas, nas quais não é mais possível produzir alimentos livres de transgênicos, seja em razão da contaminação do solo, seja pela contaminação ocorrida pelo ar (há estudos que demonstram que podem ser encontrados vestígios de transgênicos em locais distantes até cem quilômetros da área em que são produzidos). Acredita-se que essa poluição genética tenha sido planejada pelas grandes indústrias-laboratórios de fertilizantes, agrotóxicos e sementes, com o intuito de disseminar a contaminação, afim de que não restasse alternativa alimentícia aos consumidores a não ser a baseada em organismos geneticamente modificados.
Apesar das diversas pesquisas envolvendo os transgênicos, seja as favoráveis, custeadas pelos fabricantes, seja as desfavoráveis, geralmente frutos de estudos independentes, o fato é que, atualmente, ainda não há estudos suficientemente abrangentes, confiáveis e definitivos que assinalem os efeitos dos organismos transgênicos sobre a saúde humana e sobre o meio ambiente, até porque os diferentes biomas do planeta não respondem da mesma forma às diversas ações que sobre eles se realizam.
E no caso dos organismos transgenicamente modificados, a lógica de curto prazo, característica da razão econômico-mercantil e tão bem expressa na máxima tempo é dinheiro, não é uma boa companheira, pois a introdução de organismos transgenicamente modificados na natureza exige tempo para saber seus efeitos (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 270-272).
As sementes transgênicas, assim como a biotecnologia em geral, segundo Altieri (2002), estão sendo usadas na agricultura para reparar os problemas causados por tecnologias agroquímicas anteriores (resistência aos pesticidas, poluição, degradação do solo etc), desenvolvidas pelas mesmas empresas que agora lideram a biorrevolução, sendo que os cultivos transgênicos criados para o controle de pragas seguem de perto os paradigmas de usar apenas um mecanismo de controle (um pesticida) que demonstrou repetidas vezes seu fracasso frente aos insetos, aos patógenos e às pragas.
Dentre os riscos dos transgênicos para a agricultura, os mais relevantes, conforme Guerra e Nodari (2001), são o aumento da população de pragas e microorganismos resistentes e/ou patogênicos, o aumento ou promoção de plantas daninhas resistentes a herbicidas, contaminação de variedades crioulas mantidas pelos agricultores, contaminação de produtos naturais como o mel, diminuição da diversidade em cultivo com o aumento da vulnerabilidade genética, dependência dos agricultores a poucas empresas produtoras de sementes, produtividade e incerteza dos preços dos produtos transgênicos.
Além disso, destaca Altieri (2002), a agricultura desenvolvida com cultivos transgênicos favorece as monoculturas, que, como já se verificou, caracterizam-se por níveis perigosamente altos de homogeneidade genética, conduzindo a uma maior vulnerabilidade dos sistemas agrícolas ante situações de estresse biótico e abiótico. Ainda, há os perigos da alteração da complexidade biológica na qual se baseia a sustentabilidade dos sistemas tradicionais de cultivo e da transferência involuntária de transgenes às espécies silvestres relacionadas, com efeitos ecológicos imprevisíveis.
Os herbicidas de utilização obrigatória no cultivo dos transgênicos são outro fator com impactos muito negativos sobre o meio ambiente. As empresas biotecnológicas sustentam que esses herbicidas, especialmente o bromoxynil e glifosato, se degradam rapidamente no solo quando aplicados corretamente, não se acumulam nas águas subterrâneas, não têm efeitos sobre outros organismos e não deixam resíduos nos alimentos. Entretanto, existem evidências, demonstra Altieri (2002), de que esses herbicidas causam defeitos congênitos em animais, são tóxicos para os peixes e para algumas espécies que habitam o solo, podem causar câncer em seres humanos, se acumulam em frutas e em tubérculos porque sofrem relativamente pouca degradação metabólica nas plantas e alteram de maneira ainda desconhecida a biologia do solo, sendo que o glifosato age de uma forma parecida a dos antibióticos, causando efeitos como: reduzir a habilidade da soja e do trevo para fixar nitrogênio, tornar as plantas de feijão mais vulneráveis a enfermidades e reduzir o crescimento das micorrizas que vivem no solo, fungos chaves para ajudar as plantas a extrair o fósforo da terra.
A promessa da transgenia de aumentar a produtiva também foi uma grande falácia, pois, segundo Andrioli e Fuchs, a transgenia em si não pode proporcionar um aumento da produtividade, pois esta depende da combinação de muitos outros fatores, sendo que para alcançar uma produtividade maior, alterações genéticas de uma planta precisam ser combinadas com outros aspectos, tais como o clima, o combate à erosão e ao esgotamento do solo, a recuperação da capacidade produtiva do solo e reciclagem de nutrientes e o aumento da diversidade biológica (2008, p. 138). E para provar o que estão defendendo, os autores trazem à pauta o caso da soja transgênica, afirmando que:
Até o momento, não foi, efetivamente, desenvolvida uma variedade de soja que fosse mais produtiva que a convencional. Ao contrário: os resultados da produtividade de grãos transgênicos demonstram que as variedades convencionais são mais produtivas, quando comparadas às transgênicas (Idem, p. 136).
Mas, se está comprovado que a semente transgênica não aumenta a produtividade por área cultivada, quais seriam as causas do seu sucesso? Os motivos, seguramente, são econômicos, já que ela proporciona diminuição dos custos da produção, principalmente de mão de obra.
Além da produtividade que não se acentuou conforme anunciado, havia também o compromisso da redução na aplicação de herbicidas (ao invés de aplicar vários, haveria a necessidade de aplicar apenas um), mas que, segundo Andrioli e Fuchs, também não foi cumprido, sendo que, bem diferente disso, foi constatado que o uso desses químicos teve que ser aumentado em função da crescente resistência das ervas daninhas (2008, p. 38).
Diante de tantas adversidades ambientais e também sociais advindas da transgenia, além das dúvidas que ainda envolvem esses organismos, não é crível que os governos continuem se submetendo aos interesses das grandes corporações agroindustriais, admitindo a expansão do seu cultivo, sendo imperiosa uma reação estatal forte a esse modelo agrário imposto pelo capitalismo, especialmente fazendo valer as poucas, mas importantes regras ainda previstas em tratados internacionais e que podem ajudar a proteger a natureza e a saúde das populações dessas agressões.
4 A insegurança alimentar como consequência social da monocultura e da transgenia
Como se não bastassem todas as calamitosas consequências ambientais da prática da monocultura e do desenvolvimento da transgenia, há outra consequência preocupante: a social, relacionada com a insegurança alimentar. A questão alimentar está no meio do debate que tem de um lado a prática da agricultura monocultura e o desenvolvimento da transgenia e de outro a preservação da natureza.
Segurança alimentar, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), é a “situação na qual todas as pessoas, durante todo o tempo, possuam acesso físico, social e econômico a uma alimentação suficiente, segura e nutritiva, que atenda a suas necessidades dietárias e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável” (BELIK, 2003, p. 13). A questão do acesso aos alimentos, esclarece Belik, está na base da definição, de nada adiantando haver superávit na disponibilidade de alimentos em um determinado país se uma parte da sua população não tem renda para consumi-los ou se esses alimentos, culturalmente, não fazem parte de sua dieta.
O sucesso de qualquer espécie, ensina Porto-Gonçalves, depende de como resolve a questão da alimentação, sendo que a espécie humana, embora biologicamente a mesma, diferenciou-se pela cultura, conseguindo por meio das agriculturas a segurança alimentar (2006, p. 208-209).
A agricultura, portanto, é o alicerce da segurança alimentar. Mas não o modelo capitalista de agricultura, centrado na monocultura de exportação e, mais recentemente, também na transgenia, e sim a agricultura de subsistência, que preserva hábitos milenares de ressemeadura e garante a diversidade das sementes.
As populações indígenas, afrodescendentes e camponesas são as que têm as práticas culturais que mais se coadunam com os interesses da humanidade e da ecologia do planeta, motivo pelo qual devem ser respeitadas. Entretanto, esses conhecimentos vêm sendo usurpados pelas grandes corporações que controlam o mercado das sementes, sendo que as novas espécies de cultivares, criadas por esses laboratórios, substituem as nativas uniformizando a agricultura e destruindo a diversidade genética e, à medida que cresce a uniformidade, aumenta a vulnerabilidade, devendo ser ressaltado que:
Com o monopólio das sementes (e do novo modo de produção do conhecimento a ele associado) a produção tende a se dissociar da reprodução (Vandana Shiva) e, assim, a segurança alimentar perseguida por cada agrupamento humano durante todo o processo de hominização passa a depender de algumas poucas corporações que passam a deter uma posição privilegiada nas relações sociais e de poder que se configuram (PORTO-GONÇALVES, p. 219-222) [grifo do autor].
A Revolução Verde tentou despolitizar o debate da fome, naquela época um fenômeno europeu (pós-Segunda Guerra Mundial) atribuindo-lhe um caráter estritamente técnico-científico, ou seja, buscava afirmar a ideia de que só o desenvolvimento técnico e científico seria capaz de resolver o problema da fome e da miséria. Ocorre que a Revolução Verde e suas sementes híbridas e seu mais recente desdobramento com a biotecnologia dos transgênicos e do plantio direto priva a maior parte dos agricultores do acesso à propriedade, situação que, infelizmente, aumenta a insegurança alimentar (PORTO-GONÇALVES, 2006).
Em Geopolítica da fome, Castro trata do fenômeno da fome no mundo, definindo-a como o produto da desumana exploração das riquezas coloniais por processos de economia devastadores, monocultura e latifúndio, que permitem a obtenção, por preços vis, das matérias-primas indispensáveis ao seu industrialismo próspero (1965, p. 49), ou seja:
não são as condições naturais que conduzem os grupos humanos à situação de fome, e sim certos fatores culturais, produtos de erros e defeitos graves das organizações sociais em jogo. A fome determinada pela inclemência da natureza constitui um acidente excepcional, enquanto que a fome como praga feita pelo homem constitui uma condição habitual nas mais diferentes regiões da Terra: toda terra ocupada pelo homem tem sido por ele transformada em terra da fome (Idem, p. 74).
A monocultura de alimentos e a transgenia negam todo um legado histórico da humanidade em busca da garantia da segurança alimentar na medida em que, por definição, não visam alimentar quem produz e, sim, a mercantilização do produto. Assim, a segurança alimentar é deslocada pela lógica mercantil. E é em razão disso que as regiões especializadas em agricultura de exportação, sobretudo áreas coloniais (Ásia, África, América Latina e Caribe), vivem frequentemente diante da insegurança alimentar, não só porque os melhores solos são destinados a produzir para fora, mas também porque é concentrada a propriedade da terra (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. 213-214).
O colonialismo, na realidade, desestruturou as formas originais de produção agrícola existentes nas áreas conquistadas, que estava fundamentalmente voltada para atender às necessidades alimentares de seus povos, sendo substituída pela agricultura monocultora comercial de exportação e passando a ser um simples apêndice da grande lavoura (MELHEM, 1988, p. 37). No período canavieiro do Brasil colônia já era possível visualizar a insegurança alimentar decorrente desse modelo de produção. Nessa época, a crise da agricultura de subsistência, gerada pela concentração de todas as forças na monocultura da cana-de-açúcar, atingiu proporções tão graves que a metrópole teve de intervir através de uma legislação que tornava obrigatório ao proprietário de terras destinar uma parte de seu domínio ao plantio de gêneros alimentícios de subsistência (Idem, p. 42).
Outro exemplo mais recente da insegurança alimentar gerada pelo modelo agrário adotado pelo Brasil, é que em 1960, o país tinha excedentes de produção de alimento e, apenas vinte anos depois, foi obrigado a importar arroz e feijão para abastecer o mercado interno, mesmo período em que se tornou o quinto exportador mundial de oleaginosas, especialmente soja, e também 50% das famílias que viviam da terra perderam seu meio de sustento, enquanto que 9% dos proprietários de terra do país passaram a deter 82% das terras agricultáveis ou de pastagens (HELENE, MARCONDES, NUNES, 1997, p. 47 e 49).
As famílias que perderam suas terras, certamente, eram aquelas de pequenos agricultores, que, diante das novas tecnologias introduzidas no meio agrário pela Revolução Verde, não tiveram mais condições de sustentar suas propriedades e, impossibilitados de sobreviver dessa maneira, foram obrigados a abandonar suas terras ou vendê-las aos latifundiários a preços irrisórios e migrar para as áreas urbanas ou empregar-se junto aos grandes produtores rurais. Com isso, essas pessoas passaram de independentes a dependentes alimentares, enquanto o campo tornou-se o local de trabalho dos grandes latifundiários, detentores do capital e por isso capazes de se adequar às novas tecnologias disponíveis no ramo, cuja exigência impede a democratização desse modelo agrário.
A monocultura no Brasil, segundo Castro, é uma situação de desajustamento econômico e social, consequência da inaptidão do Estado Político para servir de poder equilibrante entre os interesses privados e o coletivo, ou, o que é ainda pior, entre os interesses nacionais e os dos monopólios estrangeiros interessados em nossa exploração de tipo colonial (2006, p. 267).
A principal responsável pela sobrevivência da fome no Brasil, já concluía Castro, em 1946, é a dualidade da civilização brasileira, com a sua estrutura econômica bem integrada e próspera no setor da indústria, e sua estrutura agrária arcaica, de tipo semicolonial, com manifesta tendência à monocultura latifundiária, sendo que nenhum fator é mais negativo para a situação de abastecimento alimentar do país do que a sua estrutura agrária feudal, com um regime inadequado de propriedade, com relações de trabalho socialmente superadas e com a não utilização da riqueza potencial dos solos (Idem, p. 289).
Segundo Romeiro, as características de mais de quatro séculos de desenvolvimento agropecuário no Brasil, podem ser resumidas em um grande sucesso comercial das agriculturas de exportação de um lado e a escassez relativa de gêneros alimentícios, exploração predatória da natureza, escravização da mão de obra seguida de precárias condições de acesso a terra e de emprego de outro. Historicamente, portanto, a monocultura de exportação concentrou as atenções e cuidados, sendo relegada a um segundo plano a produção de alimentos para o mercado interno. Diante disso, a efetiva produção de alimentos ocupa em nosso país áreas residuais, não ocupadas pela agricultura de exportação ou áreas ainda não ambicionadas por interesses mais poderosos (1998, p. 101).
A utilização da terra para a monocultura de exportação pode até garantir o crescimento econômico do país, como tem ocorrido com o Brasil, contudo, não gera desenvolvimento, não é independente e tende a manter ou até mesmo aumentar a miséria da população, e é nisso que reside o grande perigo desse processo.
A verdade é que não basta produzir alimentos lançando mão de todas as técnicas disponíveis; é preciso que esses alimentos possam ser adquiridos e consumidos pelos grupos humanos que deles necessitam, isso porque, se não se proceder à adequada distribuição e expansão dos correspondentes níveis de consumo, logo se formarão os excedentes agrícolas, criando-se o grave problema da superprodução ao lado do subconsumo (CASTRO, 1965, p. 424).
Outro fator a ser considerado, no que se refere à segurança alimentar, é que a dependência da espécie humana de energia para as mais diversas atividades e as consequências desastrosas para o meio ambiente do uso de fontes fósseis têm intensificado a busca por fontes de energia mais limpas e renováveis, como é o caso dos combustíveis líquidos derivados da biomassa (álcool etílico, fabricado de açúcar ou amido e biodiesel, originado de óleos vegetais ou gordura animal). No entanto, destaca Bressan Filho, a utilização crescente de matérias-primas agrícolas para a produção em grandes volumes desses biocombustíveis traz consequências sobre a segurança alimentar que não podem ser ignoradas, já que haverá uma tendência de substituição das lavouras tradicionais por lavouras energéticas, de mudança na destinação de produtos convencionais que também podem ser utilizados para a produção de biocombustíveis, como milho, trigo, beterraba, cana-de-açúcar e soja, para as fábricas de energia, além dos efeitos diretos sobre os preços desses produtos alimentícios tradicionais, pela agregação de um novo e expressivo fator de demanda, ou em razão da redução do volume da safra das demais produções agrícolas porque cederam suas áreas de plantio para as lavouras energéticas (2008, p. 147-149). Nesse cenário em que o objetivo é o de garantir a oferta de energia, restará profundamente afetada a garantia do fornecimento de alimentos para a população.
A perda dos solos também é um grave problema. Em todo mundo, estimam Helene, Marcondes e Nunes, perdem-se cerca de 24 bilhões de toneladas de solo superficial de terras agrícolas a cada ano, o que corresponde a 60 milhões de toneladas de hectares com 2,5 centímetros de profundidade, área equivalente à metade de toda a terra agricultável da China (1997, p. 22). Essa degradação do solo, decorrente, entre outras razões, dos desmatamentos e das atividades agrícolas concentradas em monocultura e no uso excessivo de agrotóxicos e fertilizantes, tende a diminuir a produção e a produtividade agrícolas, gerando ainda mais insegurança alimentar, visto que, com suas amplas e produtivas terras, as populações dos países pobres ainda têm a possibilidade de sobreviver adquirindo os alimentos de que necessitavam com a renda obtida através da agricultura monocultora de exportação, enquanto que, com a degradação dessas terras, não terão mais essa renda e o solo não terá mais condições de produzir os alimentos de que precisam.
O fato é que a insegurança alimentar não é uma simples ameaça, mas a realidade diária vivenciada por grande parte dos países do globo, inclusive o Brasil, que, enquanto preferir exportar soja para alimentar as populações e os rebanhos europeus e americanos e abastecer os tanques dos automóveis e as indústrias primárias com os biocombustíveis a alimentar sua própria população, poderá até vir a ser a quinta economia do mundo, como têm previsto os especialistas, mas disso seu povo não terá como se orgulhar, já que continuará convivendo com milhões de miseráveis subnutridos.
5 Sustentabilidade: caminho para a segurança alimentar
Além de segurança alimentar, são objetivos atuais da humanidade a busca de soberania e de sustentabilidade alimentar.
Soberania é a autonomia alimentar dos países e está associada à geração interna de emprego e à menor dependência das importações e flutuações de preços do mercado internacional, atribuindo uma grande importância à preservação da cultura e aos hábitos alimentares de um país (BELIK, 2003, p. 13). Segundo Porto-Gonçalves, o alimento é, rigorosamente, a energia que move todo ser vivo, inclusive a espécie humana. Assim, deixar de prover o próprio alimento é colocar a autonomia do agrupamento humano em risco ou dependente de terceiros, daí falar-se, também, de soberania alimentar (2006, p. 214-215).
Já a sustentabilidade alimentar incorpora conceitos ligados à preservação ambiental, que implicam em não utilização de agrotóxicos e nem produção extensiva em monoculturas (BELIK, 2003, p. 13). A sustentabilidade em geral, destaca Leff, “aparece como uma necessidade de restabelecer o lugar da natureza na teoria econômica e nas práticas do desenvolvimento, internalizando condições ecológicas da produção que assegurem a sobrevivência e um futuro para a humanidade” (2001, p. 48).
Assim, atingir a segurança alimentar depende de se alcançar também a soberania e a sustentabilidade alimentares, sendo, portanto, conceitos inter-relacionados.
A busca de alternativas para a insegurança alimentar passa, segundo Sachs, em primeiro lugar, por uma tentativa de resgatar o que ainda sabemos e conhecemos da riqueza potencial da flora e da fauna de cada ecossistema e dos produtos alimentares que podem ser delas extraídos (1986, p. 137), não havendo ninguém melhor para orientar essa tarefa do que as comunidades tradicionais. Nesse sentido, afirma Leff:
O conceito de produtividade ecotecnológica conjuga a produtividade ecológica dos ecossistemas com a inovação de sistemas tecnológicos adequados à sua transformação, mantendo e melhorando a produtividade global através de projetos de uso integrado dos recursos, sujeitos à estrutura e funções de cada ecossistema e à capacidade de autogestão das comunidades e de seus conhecimentos sobre o meio e seus recursos; das condições de apropriação de seu ambiente como meio de produção e do produto de seus processos de trabalho; da assimilação da ciência e da tecnologia moderna a suas práticas tradicionais para constituir meios de produção mais eficientes, respeitando suas identidades culturais (2001, p. 60) [grifo do autor].
A monocultura já deu mostras suficientes de que não é um sistema sustentável, pois não permite se reproduzir regularmente ao longo do tempo, característica fundamental que a economia tradicional não leva em consideração. Mas, além de sistemas sustentáveis, para garantir preservação ambiental e segurança alimentar, defende Sachs que são necessários sistemas de produção por ciclos fechados, como maneira de aproveitar melhor os recursos, de transformar resíduos em insumos e minimizar impactos ambientais negativos (1986, p. 138). Assim, a solução para a insegurança alimentar, sob a perspectiva do ecodesenvolvimento, passa pela análise conjunta de três variáveis: tecnologia, localização da produção em relação ao consumo e organização dos circuitos de abastecimento (Idem, p. 140).
Capra explica que administrar um sistema social significa encontrar os valores ideais para as variáveis do sistema, ou seja, se tentarmos maximizar qualquer variável isolada em vez de otimizá-la, isso levará, invariavelmente, à destruição do sistema como um todo (1996, p. 235). Essa concepção evidencia o erro que comete a humanidade ao maximizar apenas a ótica econômica, com o implemento de técnicas como a monocultura e a transgenia, já que isso implicará no aniquilamento de todo o sistema.
Guerra e Nodari (2001) afirmam que as principais demandas dos mais de seis milhões de pequenos agricultores familiares no Brasil, e que são os principais responsáveis pela produção da maior parte dos alimentos para a subsistência, não estão associadas à necessidade das plantas transgênicas, mas, sim, à implementação de políticas agrícolas e agrárias consistentes e adequadas às suas necessidades. Assim, segundo esses autores, a introdução das plantas transgênicas na agricultura brasileira é uma falsa questão, principalmente porque as desenvolvidas até o presente momento não atendem às necessidades dessa pequena propriedade familiar, pelo contrário, apenas aumentam o grau de dependência dos agricultores.
A segurança alimentar ainda depende de uma avaliação simultânea de alternativas sustentáveis do ponto de vista agrícola e ambiental. Uma delas, segundo Guerra e Nodari (2001), seria o uso sustentável da agrodiversidade, termo empregado para definir a diversidade genética e a de espécies em cultivo. Recentemente, referem os autores, teria sido possível observar que o cultivo, em uma mesma área, de diferentes variedades de arroz suscetíveis e resistentes à determinada moléstia, resultou em 89% de acréscimo na produtividade e em uma redução de 94% de severidade dessa moléstia comparativamente à monocultura. O sucesso dessa técnica, que é a simples mistura de diferentes variedades, foi tão significativo que, no segundo ano, não foi necessária a aplicação de fungicidas.
Para Conway, a segurança alimentar depende de uma interferência estatal que garanta o uso de tecnologias apropriadas (e não a simples transferência de tecnologia), voltadas para as condições locais e para as necessidades das famílias e dos indivíduos; a participação dos agricultores nas pesquisas; o desenvolvimento de instituições locais e ações de apoio por parte de agências governamentais locais e organizações não-governamentais (2003, p. 334 e 351).
Leff sustenta que a solução passa pelo aproveitamento do potencial ambiental de cada região, pela autogestão comunitária dos recursos, pelo desenvolvimento de tecnologias apropriadas, por respeito pelos valores culturais e pela diversidade étnica, assim como pela recuperação e enriquecimento científico das práticas tradicionais de uso dos recursos. Essas ações, conclui, abrirão canais para uma gestão participativa dos recursos e para um desenvolvimento sustentável (2001, p. 98).
O consumidor também poderá ser determinante na busca de uma agricultura sustentável e de segurança alimentar, preconiza Romeiro, apesar de alguns percalços que ainda estão sendo encontrados no caminho:
A pressão dos grupos de consumidores com maior sensibilidade ecológica tem se traduzido num crescente mercado alternativo, mas ainda de alcance limitado, principalmente em virtude da controvérsia científica a propósito dos efeitos sobre a saúde humana do atual modo de produzir e também pelos custos ainda relativamente elevados dessa produção alternativa (1998, p. 122).
O futuro da agricultura familiar, para Tortelli, está na compreensão da qualidade dos produtos que são levados ao consumidor, sendo que o caminho sustentável sólido é o da agroecologia, pois permite a produção com tranquilidade e segurança (2008, p. 337).
Diante das alternativas, é inadmissível que em um país como o Brasil, com uma riqueza natural inigualável, se conviva com a insegurança alimentar. Para mudar a situação, são necessárias políticas públicas que incentivem a produção de alimentos para a população nacional, orientadas pelos riscos envolvidos no aumento da produção agrícola apenas com foco comercial-exportador, que dá preferência à monocultura, à expansão do uso de agrotóxicos e ao uso desenfreado de novas tecnologias de altos e, muitas vezes, desconhecidos riscos, como a dos transgênicos. Somente com uma agricultura mais sustentável ambientalmente e menos dependente de capital é que se alcançará a tão sonhada segurança alimentar.
6 Considerações finais
O enfrentamento da questão alimentar é decisivo para o sucesso e a continuidade da espécie humana. Diante disso, é imprescindível que as práticas agrícolas mantidas, desenvolvidas e incentivadas pelo capitalismo sejam repensadas.
Se a agricultura em sua origem serviu para garantir a segurança alimentar aos povos, a sua prática monoculturista e, mais recentemente, voltada para o uso da transgenia estão ameaçando o seu posto de instrumento de combate à fome.
A agricultura que está na base da segurança alimentar é a agricultura de subsistência, que preserva hábitos milenares de ressemeadura e garante a diversidade das sementes e não o modelo capitalista e colonizador, centrado na monocultura de grandes extensões de terras para exportação e na transgenia.
Os mais diversos impactos ambientais negativos da monocultura e a da transgenia demonstram que sua manutenção e desenvolvimento, respectivamente, não podem continuar. E não basta utilizar o discurso da inclusão das externalidades ambientais negativas. Afinal, de que adiantaria cobrar pelos nutrientes do solo se com esse dinheiro não será possível renová-los e nem obter novas terras que disponham da mesma capacidade produtiva? O caminho para a sustentabilidade e a segurança alimentar é (re)encontrar modos de produção viáveis, que respeitem o tempo da natureza (que é bem diferente do tempo da economia), como a rotação de culturas, e a implementação de modelos que prezam pela diversidade, como aquela praticada pela agricultura familiar.
Enquanto os objetivos do mercado estiverem gerenciando a agricultura, a produção sempre estará focada na quantidade, não importando a que custo, restando impossível a obtenção de uma produção com maior qualidade, que pressupõe diversidade e distribuição equânime, baseadas nas necessidades alimentares das maiorias e não nas ambições econômicas das minorias.
Expor as coisas dessa maneira se parece com pregar um retrocesso, mas não é isso que se pretende. A biotecnologia não precisa ser afastada para o ambiente ser preservado e a humanidade alimentada em segurança, apenas ela não pode ser acolhida como substituta da natureza, mas sim como complemento. A ciência e a tecnologia, para mostrarem seu poder, não precisam exterminar todas as manifestações da natureza. Não é para isso que se precisa dela. Se a natureza sempre soube se autorregular, deve-se aprender mais com ela e desenvolver novas tecnologias de forma harmônica. E isso depende de uma nova ética, como bem demonstra Hans Jonas. Já quanto à monocultura, ambicionar o seu abandono não significa retrocesso, visto que sua adoção em nenhum momento significou evolução.
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[1] Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS, Procuradora Federal – AGU, Professora Universitária e Coordenadora da Revista Juris Plenum Previdenciária.