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O CDC e os crimes contra as relações de consumo

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Agenda 30/09/2003 às 00:00

4. A omissão do Poder Público em dar efetividade às normas do CDC.

Grave questão que milita em desfavor do consumidor, e mesmo do fornecedor de bens e serviços consiste na gritante falta de informação decorrente da omissão do Poder Público quanto às regras dispostas no CDC. Ora, se é certo - por mera ficção legal - que a ninguém é dado o direito de eximir-se ao cumprimento da lei, sob argumento de desconhece-la, também não se pode negar que a desinformação é algo extremamente nocivo à efetividade das normas consumeristas, e, por decorrência, ao equilíbrio, transparência e harmonia que devem permear as relações de consumo (art. 4º, caput e inc. III).

Por conseqüência, ao observar que na prática a simples presunção de conhecimento da lei voltar-se-ia em detrimento da efetiva implementação da Política Nacional das Relações de Consumo, a Comissão elaboradora do anteprojeto do CDC houve por bem adicionar o inciso IV ao citado artigo, através do qual é manifestada a necessidade de levar-se a efeito a educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos com vista à melhoria do mercado de consumo. Esse preceito, de grande valia no cenário das regras destinadas à preservação da Política de Consumo a que se refere a Lei 8.078/90, ganhou importante reforço com o advento do Decreto 2.181, de 20.03.97, que dispõe, dentre outras matérias, sobre o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, pois reservou ao Departamento Nacional de Defesa do Consumidor a tarefa de ...prestar aos consumidores orientação permanente sobre seus direitos e garantias ; Informar, conscientizar e motivar o consumidor, por intermédio dos diferentes meios de comunicação (art. 3º, incs. III e IV).

Na prática, entretanto, o Poder Público tem dado as costas à importância da lei consumerista no palco da economia nacional, tendo em vista que pouco, ou quase nada, tem sido feito ao longo de todos esses anos ao propósito de por em efetiva execução o Código de Defesa do Consumidor.

Tal conduta nos parece irresponsável, senão atentatória aos direitos de significativa parcela da população, sobretudo aquela composta por pessoas de menor poder aquisitivo. Essa questão toma corpo tanto quanto se observe o imenso número de iletrados que o Brasil contabiliza.

Tenha-se claro, por conseqüência, que o incremento de uma forte política de preservação das relações de consumo transcende a defesa unitária - ou mesmo coletiva - do consumidor, para alcançar condição de destaque, sobremaneira em razão dos elevados interesses públicos que resguarda. E assim acontece, pois a efetivação das normas jurídicas ligadas à defesa do consumidor busca – como já afirmado por tantas vezes – a harmonização das relações de consumo; tecendo, por assim dizer, forte liame aos princípios em que se funda a ordem econômica nacional (CF, art. 170). Isto é, tende a conciliar os interesses dos consumidores e fornecedores, compatibilizando-os com o desenvolvimento econômico e tecnológico, fundados na boa-fé e equilíbrio nas relações travadas entre uns e outros.

Por conta da omissão referida linhas acima, não é incomum que o consumidor busque, em alguma delegacia ou mesmo em determinados órgãos de defesa e proteção do consumidor, a solução para o problema que o aflige.

Uma vez alcançada a satisfação do conflito, o consumidor desinformado em regra dá-se por satisfeito, não procurando dar ensejo à aplicação da sanção penal correspondente, pois deixa de provocar a autoridade policial, ou outro agente público competente, de modo a conduzir ao representante do MP os elementos que servirão de suporte à respectiva denúncia – em sendo o caso, evidentemente.

De igual modo não é raro que a polícia judiciária dedique somenos importância ao fato posto à sua apreciação, limitando-se, no mais das vezes, a intimar o fornecedor em busca de uma rápida solução da reclamação manejada pelo consumidor. Deixa, assim, indevidamente, de instaurar o procedimento adequado, frustrando, por conseqüência, o efetivo esclarecimento do ilícito em tese cometido, e, por via reflexa, a ação do Ministério Público – responsável que é pela promoção da ação penal pública (CF, art. 129, I, CP, art. 100, § 1º e CPP, art. 40).

Quando assim procede a autoridade policial, o faz, via de regra, por inaceitável descaso, pois elege como prioritárias as investigações de outros delitos que em sua concepção lhes parecem mais graves. Pode ainda ocorrer que essa mesma autoridade deixe de dar ensanchas ao procedimento adequado por absoluta ignorância dos delitos tipificados no CDC. Nessa hipótese, embora adote de pronto determinadas providências ao escopo de por termo à insatisfação do consumidor, na verdade enxerga na reclamação que lhe foi dirigida mera infração de caráter administrativo.

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De um modo ou de outro, o fato é que a inexistência de divulgação dos direitos e deveres inseridos no Código, tal como o exige a Lei 8.078/90 (art. 4º, inc. IV) termina por alimentar a perniciosa flama da impunidade. E a impunidade, por sua vez, se desdobra como nefasto incremento de condutas ilícitas.

O Poder Público, em casos que tais, involuntariamente contribui para que a impunidade se faça altaneira, perversa e contrária aos interesses coletivos. Essa é uma contradição inaceitável, mormente porque o Estado Democrático de Direito tem por intento o bem comum como finalidade fundamental (CF, art. 1º). Tratando-se da tutela de direitos do hipossuficiente, estar-se-á resguardando princípio fundamental, qual seja, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inc. III). Ao referir-se ao postulado fundamental em referência, o Professor GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO o fez nos seguintes termos: (...) cumpre lembrar que dentre os valores fundamentais que vão conferir unidade à Constituição destaca-se a dignidade da pessoa humana. Esse valor é permanente, sendo o mais básico de todos e para todos, pois não resulta de uma simples decisão, mas é uma exigência da natureza humana (in Hermenêutica e Unidade Axiológica da Constituição, editora Mandamentos, 1ª edição, pg. 99).

Para cessar essa licenciosidade consentida, que afronta não apenas o ordenamento jurídico que não se vê recomposto, mas, sobretudo porque ataca a dignidade do indivíduo – ou de uma coletividade de pessoas – é necessário que muitas Unidades da Federação que ainda hoje permanecem omissas, atentem para a necessidade de criar delegacias especializadas em defesa do consumidor. A propósito, o Ministério Público, que está diretamente engajado na proteção e defesa do hipossuficiente, pode e deve provocar os Poderes Executivo e/ou legislativo com a finalidade de serem criadas unidades policiais especializadas – tanto na capital como nos grandes centros interioranos - de sorte a atender a exigência do art. 5º, inc. III do CDC, c/c a parte final do artigo 9º do Decreto 2.181/97.

Portanto, a conjugação dos argumentos postos neste item permite-nos sustentar que só um consumidor completamente informado pode contratar, em pleno conhecimento de causa com os fornecedores e desempenhar o papel que deve ser seu, o de parceiro econômico (LUC BIHL, in Le Droit Pénal de la Consommation, Paris, Nathan, 1989, pg. 19). Sobre o excerto ora transcrito, vide os artigos 8º, 9º, 10º, § 1º, 30, 31, 43, caput, e 44, § 1º.


5. Presunção de extinção da punibilidade face ao adimplemento da obrigação derivada da relação de consumo.

Quer nos parecer que a extinção da punibilidade, tal como ocorre nos chamados delitos fiscais, como conseqüência do adimplemento da obrigação tributária antes do recebimento da denúncia (art. 34 da Lei 9.249) induz ao equivocado entendimento de que, uma vez satisfeito o dever decorrente de uma determinada relação de consumo, este fato, de igual modo, resultaria na extinção da punibilidade relativa ao tipo correspondente. Não é bem assim.

É preciso que estejamos atentos para o fato de que embora a Lei 8.137/90 especifique tipos penais alusivos a crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo, somente os crimes decorrentes das chamadas fraudes fiscais, previstos nos artigos 1º e 2º da citada lei, têm extinta a punibilidade nos moldes acima referidos.

Portanto, malgrado a Lei 8.137/90 resguarde estreito liame com as normas preconizadas no CDC, não ocorre no âmbito deste – ou mesmo quanto aos demais dispositivos da Lei 8.137/90 -, causas específicas de extinção da punibilidade. De sorte que, nos crimes capitulados na lei consumerista a extinção do fato espécie opera-se apenas naquelas hipóteses previstas no artigo 107 do Código Penal, por força do que disposto no artigo 61 do CDC, e ainda em combinação com a regra insculpida no artigo 12 do CPB, esta última por reverberar o princípio da especialidade.


6.

Conclusão – alguns argumentos que justificam a inclusão de normas penais no CDC.

Face ao exposto, as críticas dirigidas aos preceitos repressivos contidos no CDC certamente não merecem acolhida, mormente porque, conforme já foi dito linhas acima, existem inúmeras razões de modo a ensejar a plausibilidade dos tipos descritos nos artigos 63 usque 74. Dentre elas têm destaque as seguintes: a) os tipos penais encravados no CDC buscam defender os consumidores diante das obrigações contidas no corpo do Código; b) antes mesmo da elaboração do CDC já existiam normas repressivas inseridas no CPB, bem como em leis esparsas as mais diversas, resultado da preocupação do legislador com a incolumidade física e a vida do consumidor, além de outras normas alusivas ao resguardo de práticas comerciais. Tais regras conformaram-se perfeitamente aos comandos de caráter penal adotados no CDC, pois com elas se harmonizam pleno modo; c) há de ser levando em consideração, conforme dito ao início deste artigo, que a ausência de tipos penais específicos, congruentes com as normas do CDC, estimulariam a impunidade, posto que as sanções de natureza administrativa ou mesmo as indenizações civis seriam ineficazes à efetiva proteção do hipossuficiente. A norma penal vista sob esse prisma busca dar efetividade aos preceitos do CDC, em defesa da implementação da Política Nacional das Relações de Consumo, que, induvidosamente, vem a constituir o espírito da Lei 8.078/90; d) o receio decorrente da sujeição à sanção de natureza penal faz com que o fornecedor que procede de má-fé deixe, em muitos casos, de reincidir, ou mesmo relute em cometer o fato espécie descrito em lei. A norma penal, portanto, reserva em determinadas situações um forte caráter preventivo, ou didático-pedagógico, que, por esse motivo, se antepõe à consecução do delito.

Não bastassem os argumentos postos no parágrafo antecedente, há espaço para lembrar que a responsabilidade civil independe daquela de natureza penal, conforme assim prevê o Código Civil. Eis a razão que enseja o artigo 63 do Código de Processo Penal prever que, Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. A regra em menção tem sentido prático quando, ajuizada a ação civil destinada à reparação do dano, tenha sido ela sobrestada em decorrência da interposição da ação penal correspondente. Note-se, ademais, que o preceito do art. 63 do CPP ajusta-se perfeitamente ao comando anotado no artigo 91, inciso I, do Código Penal Brasileiro: São efeitos da condenação:...tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime.

Diante destes breves argumentos, parece claro que o CDC jamais poderia prescindir das normas penais nele incorporadas, isto porque, como referido por tantas vezes, a essência do Código consiste em dar efetividade às regras destinadas à proteção do indivíduo, enquanto inserido no âmbito das relações de consumo, sobretudo porque, como demonstrou o Kantismo, o homem é fim, e não meio.

Sobre o autor
Antonio Ricardo Brígido Nunes Memória

promotor de Justiça em Fortaleza (CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEMÓRIA, Antonio Ricardo Brígido Nunes. O CDC e os crimes contra as relações de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 89, 30 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4249. Acesso em: 22 nov. 2024.

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