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A moralidade administrativa e sua densificação

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Agenda 27/09/2003 às 00:00

III. A MORALIDADE ADMINISTRATIVA E SUA DENSIFICAÇÃO

4. PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA. INTRÓITO.

Moral, como se sabe, é algo mais fácil de ser sentido do que propriamente definido. Trata-se de conceito eminentemente variável, sofrendo acréscimos, ajustes e supressões em conformidade com os critérios de ordem sociológica vigentes no meio em que se desenvolverá a sua análise; critérios estes que variarão em conformidade com os costumes e os padrões de conduta delimitadores do alicerce ético do grupamento. Moral, por conseguinte, é noção de natureza universal, apresentando conteúdo compatível com o tempo, o local e os mentores de sua concepção.

Com o evolver das relações sociais e a paulatina harmonização dos interesses do grupamento, foi inevitável a formulação de conceitos abstratos, os quais condensam, de forma sintética, a experiência auferida com a convivência social, terminando por estabelecer concepções dotadas de certa estabilidade e com ampla aceitação entre todos, o que contribui para a manutenção do bem estar geral. A moral representa o elemento aglutinador de tais concepções, podendo ser concebida como o conjunto de valores comuns entre os membros da coletividade em determinada época, ou, sob uma ótica restritiva, o manancial de valores que informam o atuar do indivíduo, estabelecendo os seus deveres para consigo e sua própria consciência sobre o bem e o mal. No primeiro caso, conforme a distinção realizada pelo filósofo Bergson, tem-se o que se convencionou chamar de moral fechada, e, no segundo, a moral aberta.

As relações do Direito com a moral são tão antigas quanto polêmicas. Diogo Figueiredo Moreira Neto [20] noticia que "no estudo dessas relações, desde logo encontramos o magno problema da distinção entre os dois campos, da Moral e do Direito, e, destacadamente, duas geniais formulações: primeiro, no início do século XVIII, de Cristian Thommasius, e, depois, já no fim desse mesmo século, de Immanuel Kant. Thommasius delimitou as três disciplinas da conduta humana: a Moral (caracterizada pela idéia do honestum), a Política (caracterizada pela idéia do decorum) e o Direito (caracterizado pela idéia do iustum), para demonstrar que os deveres morais são do ''foro interno'' e insujeitáveis, portanto, à coerção, enquanto os deveres jurídicos são externos e, por isso, coercíveis. Immanuel Kant, sem, de todo, abandonar essa linha, ao dividir a metafísica dos costumes em dois campos, distinguiu o da teoria do direito e o da teoria da virtude (Moral); as regras morais visam a garantir a liberdade interna dos indivíduos, ao passo que as regras jurídicas asseguram-lhes a liberdade externa na convivência social."

A partir dos sentimentos auferidos no campo moral, é possível delinear e nortear a regra de direito. Com a moral, tornou-se possível identificar e proteger os que estão de boa-fé e, na outra vertente, castigar os que agem com malícia e perseguem a fraude. Apesar disto, observa-se que nem sempre a moral se exterioriza como mero elemento "propedêutico" da ciência jurídica. Não raras vezes, a regra moral penetra no mundo jurídico e, com o auxílio do poder de coerção estatal, torna-se uma regra obrigatória de conduta. Nas percucientes palavras de Georges Ripert [21], "o dever de não fazer mal injustamente aos outros é o fundamento do princípio da responsabilidade civil; o dever de se não enriquecer à custa dos outros, a fonte da ação do enriquecimento sem causa; o dever de prestar assistência ao próximo poderá chegar à consagração legal?" Por certo, uma resposta positiva a este questionamento, pouco a pouco, vai- se delineando. À guisa de ilustração, pode ser mencionado o preceito constitucional que impõe à sociedade o dever de assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação etc [22]. Não seria este um caminho adequado a uma larga interpenetração da moral na regra de direito e, consequentemente, uma forma de construção de "uma sociedade livre, justa e solidária" [23]?.

A presença da moral sempre se fará sentir na regra de direito, quer seja quando toma a própria forma desta, ou mesmo quando forneça o colorido da realidade social que haverá de ser regida pela norma de conduta, permitindo a sua integração e a consecução do tão sonhado ideal de justiça. Em que pese inexistir uma superposição total entre a regra de direito e a regra moral, em essência, não há uma diferença de domínio, de natureza e de fim entre elas; nem pode existir, porque o direito deve realizar a justiça, e a idéia de justo é uma idéia moral [24].

Identificada a existência de um regramento moral e outro jurídico, a observância deste será tanto mais forte quanto for sua superfície de coincidência com os padrões de moralidade do grupamento que haverá de ser por ele regido. Correspondendo ao ideal moral, a norma será respeitada de forma voluntária, tendo-se um reduzido número de irresignações. Colidindo com os padrões de moralidade, haverá grande resistência na sua observância [25], o que comprometerá os próprios fins almejados com a sua edição, culminando com uma instabilidade social - situação que persistirá até que a norma consiga subjugar os ideais preexistentes, vindo a criar outros à sua imagem e semelhança.

5. A MORAL NO DIREITO PRIVADO.

Foi no âmbito do Direito Civil que a regra moral primeiramente se fez sentir, rompendo com os dogmas da onipotência do princípio da legalidade. Paulo já dissera que nem todo ato que respeita a lei está em harmonia com a moral: "non omne quod licet honestum est".

A maior maleabilidade da regra moral permite um acompanhamento mais célere dos influxos sociais, tornando-se indispensável à efetivação do ideal de justiça, o qual, em determinados casos, não é passível de ser alcançado pelo engessamento normativo. Tal pode ser percebido com a contínua remissão legislativa à idéia de bons costumes, expressão que carrega consigo induvidosa carga moral.

Inicialmente com a teoria do exercício abusivo dos direitos e posteriormente com as doutrinas que impunham vedações ao enriquecimento ilícito e legitimavam a obrigação natural, sempre se buscou envolver a regra jurídica em uma atmosfera axiológica própria das regras de coexistência humana [26].

O impacto inicial desta nova variante, que orientaria e condicionaria a aplicação da regra jurídica, foi pouco a pouco diluído, resultando em uma ampla compreensão de sua importância, o que terminou por fazer que a regra moral migrasse para outros ramos do Direito, em especial para o Direito Público.

6. A MORAL NO DIREITO ADMINISTRATIVO E SEU ALICERCE DOGMÁTICO.

Deve-se a Maurice Hauriou o pioneirismo na idealização e no estudo da moralidade administrativa, iniciativa esta que cresce em relevância quando se constata que o seu desenvolvimento se deu no ápice do positivismo jurídico, o que representava importante óbice aos mecanismos de contenção da atividade estatal que não se reduzissem a um mero preceito normativo.

Em seu Précis de Droit Administratif et de Droit Public [27], Hauriou sustenta que "o recurso por excesso de poder é uma via de nulidade que outorga ao Conselho de Estado o poder de anular uma decisão executória, se ela contém um excesso de poder formal da autoridade que tomou a decisão (incompetência, violação das formas, desvio de poder, violação da lei), e que, por ele mesmo, tende a impedir o procedimento executório de ação direta", esclarecendo posteriormente que a irresignação por violação da lei somente tem sido anexada ao recurso por excesso de poder de uma forma artificial, pois, enquanto os limites deste devem ser fruto de uma disciplina interna, resultando do próprio equilíbrio interior do órgão, em matéria de legalidade se tem um limite exterior ao poder administrativo, imposto pelo Legislador [28].

Esse tipo de recurso criou a possibilidade de se penetrar em regiões novas, à medida que o próprio Conselho de Estado desejasse expandi-las, sendo talvez este um dos argumentos utilizados para se impor maior resistência a essa doutrina.

Hauriou captara e desenvolvera a idéia de que o Estado não é um fim em si mesmo, mas, sim, um instrumento utilizado em prol do interesse público, o que exigia a construção de mecanismos que o mantivessem adstrito a este fim, tendo concluído, a partir das decisões do Conselho de Estado, "que os poderes da administração têm um certo objetivo ou que os atos da Administração têm uma certa causa final que é o interesse público ou a boa administração, e que se o administrador, no lugar de agir dentro do interesse geral, tomou sua decisão, seja sob influência de um interesse particular a satisfazer, seja mesmo sob a influência de um interesse fiscal, há um desvio de poder e o ato deve ser anulado."

Em seguida, distingue os recursos por détournement de pouvoir e por violation de la loi, esclarecendo que eles "visam a conformidade da ação administrativa, seja com o objetivo da boa administração (desvio de poder), seja com as prescrições da legalidade (violação da lei)". Buscando estabelecer parâmetros adequados para a individualização do desvio de poder, conclui que este "não se reduz à legalidade, como se tem dito, pois o objetivo da função administrativa é determinado muito menos pela lei que pela moralidade administrativa" [29].

Não obstante a semeadura do princípio, somente na 10ª edição de seu Précis, conforme notícia Antônio José Brandão [30], Hauriou indicou o que entendia por moralidade administrativa, tendo cunhado o conceito hoje plenamente difundido entre os juristas pátrios, em que sobreleva a distinção com a moral comum, tratando-se de uma moral jurídica que é caracterizada como "o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração".

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Não é suficiente que o agente permaneça adstrito ao princípio da legalidade, sendo necessário que obedeça à ética administrativa, estabelecendo uma relação de adequação entre seu obrar e a consecução do interesse público. A norma, instituída pelo órgão que detenha tal prerrogativa, delimita as atribuições dos agentes públicos e estatui os meios a serem por eles utilizados para o alcance de determinados fins, denotando seu caráter funcional, como idéia de obra a realizar.

A moral administrativa, por sua vez, é extraída do próprio ambiente institucional, condicionando a utilização dos meios (rectius: poderes jurídicos) previstos em lei para o cumprimento da função própria do Poder Público, a criação do bem comum, o que denota um tipo específico de moral fechada, sendo fruto dos valores de um círculo restrito ocupado pelos agentes públicos. Enquanto a moral comum direciona o homem em sua conduta externa, permitindo-lhe distinguir o bem do mal, a moral administrativa o faz em sua conduta interna, a partir das idéias de boa administração e de função administrativa, conforme os princípios que regem a atividade administrativa.

Marcel Waline [31] critica a posição de Hauriou, concluindo que a violação à moralidade administrativa permite sancionar as violações ao espírito da lei que respeitem a letra desta; mas, em verdade, a violação ao espírito da lei ainda é uma violação à lei; logo, o desvio de poder advindo de um ato imoral também é uma forma de ilegalidade. Em verdade, a imoralidade conduziria à ilegalidade, sendo absorvida por esta.

Para Georges Vedel [32], a exatidão da doutrina de Hauriou não é absoluta, pois o desvio de poder deve ser analisado como uma variação da ilegalidade, situando-se na violação da lei que imponha ao agente a obrigação de perseguir um objetivo determinado com a exclusão de todos os outros. Ressalta, no entanto, que a idéia de Hauriou não deve ser completamente rejeitada, já que o juiz (administrativo), sob o amparo "do espírito" da lei ou sob o amparo dos princípios gerais de direito, pode integrar as diretivas da moralidade à legalidade. Ao final, conclui que, do ponto de vista do direito feito (droit fait), o desvio de poder nada mais é que uma variação da ilegalidade; enquanto, do ponto de vista do direito que se faz (droit qui si fait), o desvio de poder incorpora à legalidade certos princípios de moralidade aos quais o juiz confere o respeito necessário.

6.1. DELIMITAÇÃO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA.

Expostas, em síntese, as concepções de Hauriou, Waline e Vedel, cumpre estabelecer nosso entendimento a respeito do princípio da moralidade.

Em um primeiro plano, não vislumbramos uma dicotomia absoluta entre a moral jurídica e a moral comum, sendo plenamente factível a presença de áreas de tangenciamento entre elas, o que não raro possibilitará a simultânea violação de ambas.

Sob outra perspectiva, constata-se que os atos dissonantes do princípio da legalidade sempre importarão em violação à moralidade administrativa, concebida como o regramento extraído da disciplina interna da administração; a recíproca, no entanto, não é verdadeira. Justifica-se, já que um ato poderá encontrar-se intrinsecamente em conformidade com a lei, mas apresentar-se informado por caracteres externos em dissonância da moralidade administrativa, vale dizer, dos ditames de justiça, dignidade, honestidade, lealdade e boa-fé que devem reger a atividade estatal.

Convém ressaltar, ainda, que, apesar de não guardar sinonímia com o princípio da legalidade, a moralidade administrativa apresenta uma relação de continência com o princípio da juridicidade, o qual abrange todas as regras e princípios norteadores da atividade estatal. Violado o princípio da moralidade administrativa, maculado estará o princípio da juridicidade, o que reforça a utilização deste como parâmetro para a identificação dos atos de improbidade.

Assim, somente seria possível negar autonomia ao princípio da moralidade se à legalidade for dispensado um conceito amplo, abrangendo todos os valores jurisdicizados veiculados pelas regras e pelos princípios, usurpando o próprio conteúdo do princípio da juridicidade, o que importaria na adoção de sistemática de estudo distinta daquela encampada neste ensaio.

A valoração dos elementos delineadores da moralidade administrativa não pode ser direcionada por critérios de ordem ideológica ou de estrita subjetividade. Ao interpretar e aplicar a norma, deve o agente considerar os valores norteadores do sistema jurídico, ainda que se apresentem dissonantes de sua visão pessoal. Assumindo espontaneamente o ônus de gestor da coisa pública, tem o agente o dever de agir em harmonia com as finalidades institucionais próprias do órgão que ocupa, o que demonstra que o conceito de moralidade administrativa tem índole eminentemente teleológica.

Ainda que o alicerce da moralidade se situe na própria norma, compreendendo as regras e os princípios, a influência de fatores externos em sua conformação - entendidos como tais as circunstâncias que envolvem a ação, verdadeiros elementos de densificação dos valores que compõem a moralidade - impede que sua delimitação e seu alcance sejam superpostos aos da lei, o que faz que cada situação concreta assuma peculiaridades que não são identificadas a partir do maior grau de concretude que emana da lei. Ademais, no direito positivo pátrio, legalidade e moralidade coexistem lado a lado por força de expressa disposição constitucional.

6.2. ESSÊNCIA DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA.

De forma correlata à moral comum, o princípio da moralidade administrativa também exige que o administrador observe determinados valores, os quais assumem certa especificidade em razão da própria natureza de sua atividade.

Enquanto a moral comum consubstancia o conjunto de valores ordinários entre os membros de determinada coletividade, possuindo maior generalidade e abstração, a moral administrativa toma como parâmetro os valores subjacentes à atividade estatal.

Como foi visto, no Estado de Direito os atos dos agentes públicos auferem seu fundamento de validade na norma. O fim destes atos, em razão da própria natureza do Estado, haverá de ser sempre a consecução do bem comum. Em razão disto, é possível dizer que legalidade e moralidade se integram e se complementam, sendo cogente sua observância pelos agentes públicos.

O princípio da legalidade exige a adequação do ato à lei, enquanto o da moralidade torna obrigatório que o móvel do agente e o objetivo pretendido estejam em harmonia com o dever de bem administrar. Ainda que os contornos do ato estejam superpostos à lei, será ele inválido se resultar de caprichos pessoais do administrador, afastando-se do dever de bem administrar e da consecução do bem comum.

A moralidade limita e direciona a atividade administrativa, tornando imperativo que os atos dos agentes públicos não subjuguem os valores que defluam dos direitos fundamentais dos administrados, o que permitirá a valorização e o respeito à dignidade da pessoa humana. Além de restringir o arbítrio, preservando a manutenção dos valores essenciais a uma sociedade justa e solidária, a moralidade confere aos administrados o direito subjetivo de exigir do Estado uma eficiência máxima dos atos administrativos, fazendo que a atividade estatal seja impreterivelmente direcionada ao bem comum, buscando sempre a melhor solução para o caso.

A correção dessas conclusões, no entanto, pressupõe que um caminho mais árduo e tortuoso seja percorrido: a necessária conscientização de todos os setores da sociedade de que devem zelar pela observância do princípio da moralidade. O controle sobre os atos dos agentes públicos deve ser rígido e intenso, o que permitirá um paulatino aperfeiçoamento da atividade estatal e, o que é mais importante, a necessária adequação dos agentes públicos aos valores próprios de um Estado Democrático de Direito, no qual o bem comum representa o pilar fundamental.

Aqui, busca-se transmudar para o administrador público o ideal de que deve agir como um "bom pai de família", o que permite dizer que o sentido jurídico da norma restará prejudicado sempre que estiver ausente o componente moral que caracteriza o "bom administrador".

Dizer que o princípio da moralidade tem como alicerce os valores próprios da atividade estatal é conferir ares de banalidade a uma operação extremamente complexa e delicada, qual seja, extrair a essência destes valores e compatibilizá-la com a realidade fenomênica sem impregná-la do intenso subjetivismo que, certamente, se desprenderá do agente responsável por esta operação.

Diversamente do que ocorre com o princípio da legalidade, que é resultado direto da produção normativa estatal, o princípio da moralidade tem maior generalidade e abstração, o que exige uma atividade responsável e coerente para a correta identificação dos padrões de conduta que individualizam o bom administrador, vinculando-o à finalidade pública que é peculiar à atividade estatal, sempre com a necessária impessoalidade que deve estar presente em atos desta natureza.

De acordo com Antônio José Brandão [33], para que se possa falar em boa administração, é preciso que esteja presente "o exercício do senso moral com que cada homem é provido, a fim de usar retamente, - para o bem, entenda-se, - nas situações concretas trazidas pelo quotidiano, os poderes jurídicos e os meios técnicos; e, por outro lado, exige ainda que o referido bom uso seja feito em condições de não violar a própria ordem institucional, dentro da qual eles terão de atuar, o que implica, sem dúvida, uma sã noção do que a Administração e a função administrativa são".

Partindo-se da premissa de que o alicerce ético do bom administrador é extraído do próprio ordenamento jurídico, é possível dizer que o princípio da moralidade administrativa atua como um verdadeiro mecanismo aglutinador, extraindo o sumo de todos os princípios regentes da atividade estatal e condensando-os em standards que podem ser mais facilmente percebidos do que definidos.

Talvez seja por esse motivo que a jurisprudência pátria, ao fundamentar suas decisões com base no princípio da moralidade administrativa, normalmente o faz em conjunto com outro princípio dotado de maior especificidade para o caso concreto (v.g.: moralidade e impessoalidade, moralidade e publicidade etc.). Tal, longe de arranhar a autonomia do princípio da moralidade, demonstra apenas que os valores extraídos do outro princípio utilizado concorreram de maneira mais incisiva na conformação do standard adotado como padrão de bom administrador naquela situação [34].

Quando dizemos que referido standard representa o padrão de bom administrador à luz de determinada situação - fática ou jurídica -, queremos dizer que tal parâmetro não subsiste por si só, sendo imprescindível associá-lo à finalidade própria do ato a ser praticado. O dever de bem administrar somente será atingido quando for identificada e perseguida a mens legis criadora da regra de competência, pois o administrador de interesses alheios se encontra sempre vinculado à consecução da finalidade que melhor aprouver ao verdadeiro titular do direito, in casu, o interesse público.

Progressivamente, tem-se a identificação da situação que ensejou a prática do ato, a finalidade a ser atingida com ele, os princípios administrativos que possuem maior especificidade para o caso e, derradeiramente, a operação de aglutinação dos valores que consubstanciam a moralidade administrativa, com a conseqüente densificação do standard do bom administrador, o que haverá de ser feito tomando-se como referencial as três primeiras etapas anteriormente referidas.

6.3. PREVISÃO NORMATIVA.

O princípio da moralidade administrativa, em que pese não ter tido previsão expressa na Carta de 1967, há muito encontra-se arraigado no ordenamento jurídico pátrio, sendo considerado princípio implícito regente da atuação administrativa [35].

Hodiernamente, o princípio está expressamente previsto no art. 37, caput, da Constituição da República, o qual dispõe que "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência..."; acrescendo-se, ainda, que o âmbito de abrangência da ação popular, a teor do art. 5º, LXXIII, da Constituição da República, foi ampliado para alcançar a possibilidade de anulação dos atos lesivos à moralidade administrativa.

São igualmente formas de expressão do princípio da moralidade os preceitos constitucionais que prevêem como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária [36] e que resguardam o decoro parlamentar [37] e o dever de probidade do Presidente da República [38].

Como se vê, os princípios da legalidade e da moralidade mantêm uma relação harmônica, ocupando o mesmo grau hierárquico na estrutura principiológica que rege os atos estatais, o que afasta qualquer concepção que considere o princípio da moralidade elemento secundário ou meramente complementar.

Tal qual o princípio da legalidade, é requisito de legitimidade da atuação do agente e de validade do ato administrativo; logo, sua inobservância pode acarretar a anulação do ato por meio de ação popular ou de ação civil pública [39].

6.4. A MORALIDADE E OS ELEMENTOS DO ATO ADMINISTRATIVO.

Afigura-se induvidoso que os atos administrativos devem apresentar plena adequação ao sistema normativo que os disciplina e ter sua finalidade sempre voltada à consecução do interesse público. A partir da presença de determinada situação fática, deve o agente público, nos limites de sua competência, praticar o ato administrativo que se ajuste à hipótese. Este ajustamento, por sua vez, deve ser por ele demonstrado com a exteriorização dos motivos que o levaram a praticar o ato, o qual deve necessariamente visar a uma finalidade pública.

Não obstante presentes os elementos do ato (competência, finalidade, forma, motivo e objeto) e a plena compatibilidade entre eles e a lei, em muitos casos será vislumbrada a inadequação dos motivos declinados e da finalidade almejada com a realidade fática e o verdadeiro elemento volitivo do agente.

Para que o ato praticado em consonância com a lei esteja em conformidade com a moralidade administrativa, é imprescindível que haja uma relação harmônica entre a situação fática, a intenção do agente e o ato praticado, sendo analisadas no contexto deste a motivação declinada e a finalidade almejada.

A intenção do agente deve surgir estritamente vinculada ao propósito de atingir o bem comum, escolhendo um fim que se harmonize com a previsão abstrata da norma e permitindo que o ato, em sua gênese, se apresente, a um só tempo, em conformidade com a lei e a moralidade administrativa.

A conduta do agente deve ser juridicamente possível e estar em harmonia com os efeitos jurídicos previstos na norma, o que, aliado à real intenção de atingi-los, conferirá licitude ao ato. No entanto, ainda que haja completa adequação da conduta à norma e esta possa produzir determinados efeitos, o ato será ilícito se for viciada a intenção do agente em relação aos reais efeitos que pretende alcançar, pois somente na aparência haverá adequação à lei.

Para que seja identificada a real intenção do agente, a qual poderá revelar a verdadeira motivação do ato e o objetivo colimado com a sua prática, afigura-se impossível a penetração no psiquismo do mesmo, o que conduzirá à análise de tal elemento volitivo a partir da situação fática embasadora do ato e dos caracteres externos - ainda que não declinados - que venham a influir na sua prática. A intenção, assim, é indício aferidor da moralidade do ato, sendo também verificada a partir da compatibilidade entre a competência prevista na norma e a finalidade pretendida com a prática do ato [40].

O ato formalmente adequado à lei, mas que vise, em essência, a prejudicar ou beneficiar a outrem, será moralmente ilegítimo [41], isto em virtude da dissonância existente entre a intenção do agente, a regra de competência e a finalidade que deveria ser legitimamente alcançada com esta.

Como desdobramento do que já foi dito, constata-se que, para a identificação da moralidade do ato, será sempre necessário analisar o motivo e o objeto em cotejo com o interesse público consubstanciado na finalidade, o que permitirá a identificação de possíveis vícios dos atos discricionários ou mesmo a presença de abuso de poder.

Estará ausente a moralidade administrativa quando o agente praticar o ato fundando-se em motivo inexistente (ausência da situação de fato ou de direito que determine ou autorize a prática de um ato), insuficiente (o valor dos motivos não denota a necessidade do ato), inadequado (falta de correspondência entre o que deveria motivar o ato -causa- e a natureza categorial de seu objeto - efeito), incompatível (ausência de adequação com o objeto do ato) e desproporcional (valoração irrazoável dos motivos, levando a um resultado incompatível com o interesse público específico a que deveria visar o ato); identificando-se igual vício quando o objeto for impossível (o resultado jurídico almejado não se compatibiliza com o ordenamento jurídico ou com a realidade física), desconforme (incompatibilidade lógica entre a escolha e o interesse público contido na regra da finalidade) ou ineficiente (grave comprometimento do interesse público pela desproporcionalidade entre custos e benefícios) [42].

6.5. A MORALIDADE ADMINISTRATIVA NA JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA.

Em inúmeras oportunidades, os tribunais têm sido instados a analisar a compatibilidade dos atos do Poder Público com o princípio da moralidade administrativa. À luz da jurisprudência pátria, infringem tal princípio:

a) realização de gastos excessivos, a pretexto de outorga de títulos e honrarias, com bebidas, comestíveis, peças de vestuário etc. [43];

b) alienação de lotes de terrenos pertencentes à municipalidade, contíguos a outros de propriedade do Prefeito, e posteriormente por ele adquiridos pelo valor da avaliação, acarretando a valorização da área contínua quando agregada à primitiva [44];

c) concessão de aposentadoria especial a vereadores, após o curto lapso de 8 (oito) anos de contribuição, com desvio de verba pública para cobrir déficit técnico [45];

d) resolução de Câmara de Vereadores que fixou os subsídios destes, em época de congelamento de preços e salários instituído no plano federal, em quantia exorbitante [46];

e) o custeio, pela municipalidade, das despesas de viagem ao exterior da esposa do Prefeito, em companhia dele, o que não representa nenhum benefício para o Município, ainda que ela dirigisse algum órgão público; sendo idêntica a conclusão em relação às despesas com viagens do Prefeito não autorizadas pela Câmara Municipal [47];

f) ato de Câmara Municipal que, sob o argumento de "oferecer exemplo à coletividade", reduz a remuneração dos edis para a legislatura seguinte, após a realização da eleição em que a grande maioria não foi reeleita [48];

g) omissão deliberada da Administração Pública, sob a alegação de discricionariedade, deixando de convocar o estágio probatório que consubstancia condição indispensável ao acesso dos terceiros sargentos do quadro complementar da Aeronáutica ao quadro regular, tendo feito com que exercessem tarefas próprias dos postos mais elevados sem a contrapartida salarial devida [49];

h) a participação de Juiz integrante de Tribunal Regional do Trabalho em eleição destinada a compor lista tríplice para preenchimento de vaga de juiz togado quando um dos candidatos é filho do mesmo [50];

i) fixação da remuneração do Prefeito, Vice-Prefeito e dos Vereadores para viger na própria legislatura em que fora estabelecida, o que também importa em violação ao art. 29, VI, da Constituição da República [51];

j) abertura de conta-corrente em nome de particular para movimentar recursos públicos, independentemente da demonstração de prejuízo material aos cofres públicos [52].

7. CÓDIGOS DE ÉTICA.

A atividade administrativa, de forma correlata à observância das prescrições legais, deve render obediência aos valores que defluem do sistema, os quais são normalmente condensados sob a epígrafe do princípio da moralidade. A densificação deste princípio, cujo conteúdo deflui de preceitos explícitos e implícitos no sistema, representa, como já fora visto, tarefa extremamente delicada e complexa, o que é conseqüência inevitável de seu alto teor de abstração. Por tal motivo, são extremamente relevantes as iniciativas que buscam elaborar diretrizes básicas que devem nortear a atuação dos agentes públicos.

Com isso, são densificados os valores afeitos à moralidade administrativa e, conseqüentemente, tem-se um aumento de efetividade do princípio, pois seu alto grau de abstração passa a coexistir com comandos específicos que delineiam as vedações e os deveres a serem cumpridos pelo agente e disciplinam a forma de exercício de seus direitos. Para alcançar tais objetivos, são editados os denominados "Códigos de Ética" ou "Códigos de Conduta", os quais, como deflui da própria etimologia da expressão, estatuem os padrões éticos a serem observados por seus destinatários.

Tais "Códigos" são extremamente difundidos entre diversas categorias profissionais (Códigos de Ética dos advogados, dos médicos etc.) e coexistem, em diversas unidades da Federação, com o regime jurídico dos servidores públicos.

Estatuída a deontologia a ser seguida pelos agentes públicos e sendo certo que a mesma aufere seu fundamento de validade nos princípios regentes da atividade estatal, conferindo-lhes maior determinabilidade com a previsão de condutas específicas a serem seguidas, torna-se possível dizer que a violação dos deveres éticos normatizados pelo Poder Público consubstanciará relevante indício da inabilitação moral do agente para o exercício da função pública, já que violado o princípio da moralidade.

Além das sanções de ordem disciplinar a que estará sujeito o agente, também incidirá a tipologia específica dos atos de improbidade constante da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade), as quais assumem uma feição nitidamente repressiva. Ocorre que, como antecedente lógico desta, os "Códigos de Ética" desempenham um papel eminentemente preventivo, pois individualizam, de forma explícita ou implícita, os preceitos proibitivos que consubstanciam a improbidade administrativa, o que certamente contribuirá para que os agentes adquiram consciência dos valores de ordem ética que devem seguir, direcionando, pari passo, sua atuação e evitando a prática dos atos de improbidade.

Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. A moralidade administrativa e sua densificação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 86, 27 set. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4283. Acesso em: 16 mai. 2024.

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