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Imposto sobre a renda pessoa física em face do princípio da irretroatividade

Agenda 24/09/2015 às 10:54

Necessidade de maiores reflexões sobre ser ou não a periodicidade um elemento relevante na aplicação do princípio da irretroatividade para fins de instituição do IR no atual Estado Democrático de Direito.

A questão de direito tributário que queremos destacar pela sua incontestável relevância no atual Estado Democrático de Direito cinge-se ao campo de aplicação do princípio da irretroatividade para fins de instituição do Imposto sobre a Renda Pessoa Física (IRPF).

Nossa Constituição de 1988 (CF) proscreve a retroatividade de lei que cria ou majora tributo (art. 150, III, a). Dito de outro modo, “lei retroativa é aquela que rege fato ocorrido antes de sua vigência, proibição que a Carta Magna estabelece como princípio geral”[2].

O Imposto sobre a Renda (IR), grosso modo, tem como fato gerador o acréscimo patrimonial obtido num determinado período de tempo. Tributa-se a riqueza nova em respeito ao princípio da capacidade contributiva (art. 145 §1º CF). Note-se que, consoante entendimento tradicional, “em cada exercício em que é devido, o imposto de renda se calcula sobre os rendimentos auferidos no anto anterior, legalmente definido como ano-base” (RE 65.612-GB).

Discute-se, no entanto, se esse fato é instantâneo[3] ou complexivo. No primeiro caso, o fato gerador realiza-se apenas no ultimo átimo do último dia do exercício financeiro correspondente ao ano-base. Em sendo fato complexivo, realiza-se no dia 1º de janeiro subsequente ao ano-base (ano da declaração/ajuste). Sob essas duas diretrizes, pode-se dizer que na hipótese de edição de lei que institui ou majora o IR no exercício-correspondente ao ano-base, esta será constitucional ou inconstitucional, conforme seja considerado, respectivamente, instantâneo ou complexivo o fato gerador do referido imposto.

Vale lembrar que o regime jurídico constitucional tributário brasileiro em vigor prestigia não apenas o princípio da irretroatividade como também o da anterioridade e, implicitamente, o princípio maior da segurança jurídica. Nesse contexto, tem esteio as lições de Luciano Amaro em tese aprovada nas XI Jornadas Latino-Americanas de Direito Tributário:{C}[4]

A aquisição da disponibilidade de renda resulta de fatos (voluntários ou não) que se produzem ao longo do período, e que são fatos jurídicos relevantes para efeito da lei tributária. Por isso e em face dos princípios da anterioridade, da irretroatividade e da segurança do direito (a não surpresa, a evitação do arbítrio), bem como das demais implicações do Estado de Direito, é vedada a alteração da lei, para criar ou aumentar o imposto, após iniciado o período.

Nesse sentido, cumpre ainda salientar que a tributação em bases corrente, por período mensal, introduzida pela Lei 7.713/88 ao dispor sobre o IRPF, elimina, por si só, a garantia da não surpresa que os princípios constitucionais acima referidos buscam tutelar. A respeito, posiciona-se Misabel Derzi:[5]

A rigor, a redução do imposto de renda a bases correntes, em que a arrecadação se dá exclusivamente na fonte, não é uma incidência sobre o fato gerador do imposto,  que supõe a existência de renda (como rendimentos líquidos ou excedentes), mas, quer em relação à pessoa física, quer em relação à jurídica, incidência sobre rendimentos brutos, faturamento ou receita. A transformação da incidência-fonte em exclusiva agride os princípios da pessoalidade do imposto, da unicidade e da capacidade econômica (arts. 145, §1º, 153, §2º, I).

Nada obstante, ainda prevalece na nossa Suprema Corte o teor da Súmula 584: “Ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração.”

Não se pode negar que esse entendimento viabiliza ao fisco mais facilidade, comodidade e maior eficiência na arrecadação do IR, além de prevenir ou reduzir sonegação. Todavia, há de se buscar a observância substancial do regime jurídico constitucional tributário, de modo a afastar eventual aplicação meramente formal dos princípios constitucionais em apreço. Por oportuno, leciona Heleno Taveira Torres:[6]

A segurança jurídica, na temporalidade, instaura a estabilidade de situações constituídas no tempo e, em face do regime constitucional da tradição jurídica brasileira, não colhe oportunidade o expediente de qualquer dos poderes que tenha finalidade de agravar regimes, impor obrigações ou constituir vedações contra situações consolidadas (o que vale inclusive para o futuro, quanto aos fatos estabilizados juridicamente no passado).

De seu turno, no tocante à aplicação de princípios, ressalta Humberto Ávila[7] sua importante função como instrumento de segurança jurídica:

Quando existem muitas fontes normativas geradoras de múltiplas regras, nem sempre compatíveis entre si, os princípios devem funcionar como critérios interpretativos unificadores, porque o sentido das regras deverá ser harmonizado com o conteúdo dos princípios mais gerais, e assim até chegar aos princípios estruturantes de determinado ordenamento jurídico, de modo a que seja escolhido aquele sentido da regra que seja mais fortemente suportado pelos princípios constitucionais.

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Nesse passo, convém prestigiar o entendimento de Luciano Amaro sobre a aplicação dos princípios da irretroatividade e da anterioridade no tocante ao IR, que, segundo cremos, revela-se um excelente ponto de partida para maiores reflexões sobre ser ou não a periodicidade um elemento relevante para proteger o contribuinte da não surpresa, que é o fim maior desses princípios:[8]

a)      {C}O princípio da irretroatividade exige lei anterior ao fato gerador, ou seja, lei anterior ao período de formação do fato gerador;

b)      {C}Tratando-se de tributo sujeito à anterioridade, a lei há de preceder o ano em que ocorram os fatos (sobre que incida o tributo) e não apenas o exercício de pagamento do tributo.

Nessa linha, há de se constatar que a Emenda Constitucional n. 42/2003, ao trazer a necessidade de se observar o princípio da anterioridade nonagesimal exceto para o Imposto sobre a Renda, vulnerou os precisos contornos dos direitos e garantias constitucionais do contribuinte.

Deveras, como bem expõe Mary Elbe Queiroz,[9] com a Constituição de 1988, tanto a doutrina como a jurisprudência judicial “passaram a entender que o respeito à anterioridade significava que a lei que majorasse o Imposto sobre a Renda estivesse publicada, e em vigor, antes do início do ano-calendário em que se desejasse que ela passasse a produzir seus efeitos”, sem olvidar que “por meio da emenda Constitucional n. 42/2003, foi introduzida a noventena, no artigo 150, III, c, da Constituição federal, além da anterioridade, como forma de prestigiar, cada vez mais, a segurança jurídica na cobrança das exações. Contudo tal dispositivo não se aplica ao IR, consoante o §1º do art. 150 do texto constitucional.”

Em face dessa exceção constitucional trazida pelo Poder Constituinte Derivado, a Suprema Corte mantém seu entendimento de que se considera ocorrido o fato gerador do Imposto sobre a Renda no dia 1º de dezembro, razão pela qual não viola o princípio da irretroatividade a edição de lei antes dessa data que se aplique ao seu ano de edição. No entanto, em caráter excepcional – o uso do IR com função extrafiscal, por exemplo – reconhece a inconstitucionalidade de sua aplicação retroativa, verbis:[10]

Não é legítima a aplicação retroativa do art. 1º, I, da Lei 7.988/89 que majorou a alíquota incidente sobre o lucro proveniente de operações incentivadas ocorridas no passado, ainda que no mesmo exercício. Relativamente a elas, a legislação havia conferido tratamento fiscal destacado e mais favorável, justamente para incrementar a sua exportação. A evidente função extrafiscal da tributação das referidas operações afasta a aplicação, em relação a elas, da Súmula 584/STF.

Em face dessas singelas considerações, parece-nos que, por ora, continuam pujantes as palavras de Argos Gregório,[11] para quem não há qualquer fundamento sólido que desconstrua a tese proposta por Luciano Amaro há quase trinta anos. Nem por sua superação. Tampouco por mudança de contexto.”


[2] Paulo de Barros Carvalho, Direito Tributário, Linguagem e Método, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 292.

[3]{C} Segundo Paulo de Barros Carvalho, “falar-se em ‘fatos’ que não sejam instantâneos é, sob qualquer color, inadequado e incongruente, visto que todo o evento, seja ele físico, químico, sociológico, histórico, político, econômico, jurídico ou biológico, acontece em certas condições de espaço e de tempo (instante).” V. Curso de Direito Tributário, 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 340.

[4] V. Misabel Derzi em Direito Tributário brasileiro, de Aliomar Balleiro, 12ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 415.

[5] Em Direito Tributário brasileiro, de Aliomar Balleiro, Atualizadora Misabel Derzi, 12ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 451.

[6] Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica, São Paulo: RT, 2011, p. 410.

[7]Segurança Jurídica – entre permanência, mudança e realização do Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 603.

[8] Direito Tributário brasileiro, 20ª ed, São Paulo: Saraiva, 2014, p. 153.

[9] “Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza – Tributação das Pessoas Físicas”, 435-79. Em Curso de Especialização em Direito Tributário – Estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvaho, coord. Eurico Marcos Diniz de Santi, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 441-2.

[10] RE 183.130/PR, Plenário 29.9.2014.

[11] “A harmonia de ‘Amaro’ – breve ensaio sobre a aplicabilidade da Súmula 584 do STF, p. 88. Direito Tributário Contemporâneo – Estudos em homenagem a Luciano Amaro.  Coord. Ives Gandra da Silva Martins e João Bosco Coelho Pasin, São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 79-88.

Sobre a autora
Valéria Furlan

Professora Titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Doutora e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP, com pós-doutorado pela Universidade de Bologna/Itália.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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