Resumo: A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, a chamada nova Lei de Drogas, trouxe significativas contribuições e modificações à legislação sobre drogas, estabelecendo um tratamento mais brando ao usuário, no intuito de prevenir o uso de tais substâncias, ressaltando a necessidade de intervenção estatal a fim de proporcionar o bem-estar e a reintegração social do usuário. Embora, a nova lei estabeleça uma série de inovações, implementando um novo sistema de políticas públicas sobre drogas, de forma a tratar distintamente o usuário, o dependente e o traficante, ainda existem questões controversas ao assunto, alvos de discussões tanto da doutrina quanto da jurisprudência. O presente trabalho pretende conhecer a atual discussão doutrinária e jurisprudencial a respeito do consumo pessoal de drogas, a partir das modificações elencadas pelo artigo 28 da referida lei.
Palavras-chave: drogas, consumo pessoal, usuário.
1. INTRODUÇÃO
É uma verdade inquestionável que o consumo de drogas se consolidou como uma das principais problemáticas do país, figurando não apenas questão de saúde, como de segurança pública. Constitui, portanto, uma enorme preocupação tanto do poder público quanto das autoridades competentes destinadas ao tratamento médico e reinserção dos usuários destas substâncias capazes de alterar o funcionamento do indivíduo, causando dependência física e psíquica.
Dessa maneira, o legislador brasileiro editou a Lei n. 11.343/2006, conhecida como Lei de Tóxicos, no intuito de prevenir o uso de tais substâncias, se preocupando, no seu art. 28, com a reintegração social e o tratamento do usuário, ao instituir penas alternativas que ressaltem a necessidade de intervenção estatal a fim de proporcionar o bem-estar do cidadão.
O presente artigo tem por finalidade observar a aplicação deste dispositivo legal, assim como a visão doutrinária e jurisprudencial acerca deste, ressaltando as importantes alterações trazidas pela Lei n. 11.343/2006 e a sua importância ao determinar o usuário não mais como alvo de cárcere, mas sim como indivíduo e cidadão que deve ser amparado, tendo as instituições públicas a obrigação de fornecer tais serviços, nas condições necessárias para que seja corretamente administrado.
O estudo apresentado foi construído a partir de quatro diretrizes, a primeira abordará a definição do termo drogas e a contextualização das políticas criminais de combate às drogas, assim como estabelecer os fundamentos da Convenção de Viena sobre substâncias psicotrópicas, de 1971. Na segunda diretriz, o foco de discussão recairá sobre o usuário de drogas, conceituando-o de acordo com os padrões da Lei de Tóxicos, e distinguindo-o das figuras do dependente e do traficante. Em seguida, é traçado um breve histórico das leis que versam sobre drogas, apresentando as suas peculiaridades e demonstrando como o ordenamento jurídico brasileiro regulava tal matéria. E por fim, o artigo 28 da Lei de Tóxicos será analisado, abarcando as principais questões divergentes na doutrina e jurisprudência, além do exame das penas alternativas nele elencadas.
Para tanto, foi realizado nesta elaboração um estudo de caráter qualitativo, levando em consideração posicionamentos doutrinários, análises jurisprudenciais, artigos e periódicos já publicados.
Portanto, o tema abordado é alvo não somente de discussão jurídica, elencada pelo Direito, mas social, sendo de papel intrínseco à ampla atuação dos direitos humanos, especialmente no que cabe dar assistência jurídica administrada pelo poder público e por instituições especializadas, que funcionarão como alicerces de institutos próprios à dignidade humana e à cidadania brasileira.
2. DROGAS
2.1. Definição
Uma das alterações adotadas pela Lei n° 11.343 encontra-se na aplicação da terminologia droga no lugar da expressão substância entorpecente, utilizada pelas Leis 6.386/76 e 10.409/2002.
De acordo com o conceito legal, disposto no parágrafo único do art. 1° da Lei de Tóxicos, drogas são substâncias ou produtos capazes de causar dependência, e que se encontram especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas, de forma periódica, pelo Poder Executivo da União.
A doutrina classifica tal dispositivo como lei penal em branco ou norma penal em branco, devido a sua necessidade de complemento normativo para preencher a figura típica, dando-lhe sentindo e condições para aplicações.
Nucci (2012) afirma que o termo drogas não constitui elemento normativo do tipo, sujeito a uma interpretação valorativa do juiz, mas representa um branco a ser complementado por norma específica, originária de órgão governamental próprio, vinculado ao Ministério da Saúde, no caso a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Logo, mesmo que uma dada substância seja capaz de causar dependência, enquanto não tiver sido catalogada por lei ou por lista atualizada pela ANVISA, não haverá tipicidade na conduta daquele que pratique as condutas referentes ao usuário de drogas (art. 28), e à produção não autorizada e ao tráfico de drogas (arts. 33. a 39).
2.2. Política criminal de drogas
Segundo Gomes (2013), na atualidade, são quatro as tendências político- criminais em relação às drogas, aplicadas mundialmente: a) o modelo norte-americano, defensor da abstinência e tolerância zero, pelo qual as drogas constituem um problema policial e particularmente militar, é uma política essencialmente repressiva e extremamente onerosa, no entanto sem maiores resultados; b) o modelo liberal radical ou de liberalização total, proposta principalmente pela revista inglesa The Economist, para a qual é necessário liberar totalmente a droga, sobretudo quanto ao usuário; c) o modelo de redução de danos, sistema adotado por diversos países europeus, preza pela descriminalização gradual das drogas, instituindo uma política de controle, regulamentação e educação, a droga passa a ser um problema de saúde privada e pública; e d) o sistema de Justiça terapêutica, que centra sua atenção no tratamento do usuário e do dependente, reconhecendo suas necessidades e peculiaridades.
Gomes e Bianchini (2013) defendem a descriminalização do uso de drogas, primando pelo sistema europeu de prevenção e reparação de danos, aliado à Justiça restaurativa, pela qual a preocupação se volta ao acolhimento, à prevenção da reincidência, a atenção e a reinserção social do agente do fato.
No Brasil, a partir da década de 90, ficou acentuada a prevalência de dois discursos quanto a questão das drogas. Um deles primava pela total abstinência e repressão ao consumo e tráfico de tais substâncias, tratando-se de assunto de intervenção penal. Enquanto, o outro tratava de uma política prevencionista, voltada para as atividades de prevenção, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas.
A Lei n° 11.343/2006 abarca as duas tendências. Adota a proibicionista contra a produção não autorizada e o tráfico ilícito de drogas, enquanto a prevencionista destina-se ao tratamento do usuário e do dependente. Cabe, ainda, ressaltar que permanecem proibidas as drogas e todas as condutas referentes a elas, independentemente de terem sido praticadas para consumo pessoal ou não. A política repressiva continua como regra, porém no que tange ao usuário foi abandonada em prol das penas alternativas, concentrando-se em programas médicos e sociais de prevenção e reintegração social.
Isto é, apesar da impossibilidade de punição do usuário por pena privativa de liberdade, a droga em si continua sendo uma substância ilícita, proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro, assim como as condutas a ela referentes. O usuário passa a ser sujeito de tratamento mais brando, porém o consumo pessoal de drogas continua como conduta criminosa.
2.3. Convenção de Viena sobre substâncias psicotrópicas (1971)
No que tange a regulamentação internacional, o controle sobre drogas é feito através de tratados, acordos e convenções assinados entre os países membros das Nações Unidas. Dentre tantas conferências e convenções sobre substâncias psicoativas, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, assinada em Viena, se destaca por controlar a preparação, o uso e comércio de psicotrópicos.
O Congresso Nacional aprovou, através do Decreto Legislativo n° 90, de 5 de dezembro de 1972, a Convenção em questão. No entanto, a ratificação brasileira foi apresentada com reservas quanto a certos dispositivos, aos parágrafos primeiro e segundo do artigo 19 e ao artigo 31.
É importante observar que dentre os objetivos almejados pela referida convenção, encontram-se a prevenção e o combate ao consumo das substâncias em questão, assim como ao tráfico ilícito a que dão origem.
3. USUÁRIO DE DROGAS
3.1. Definição
Como visto anteriormente, a nova Lei de Drogas institui um tratamento diferenciado entre as figuras do usuário, do dependente e do traficante de drogas. O usuário, abarcado pelas condutas comissivas do artigo 28 da Lei, recebeu tratamento mais brando, no sentido de prevenir o uso indevido de tais substâncias e reinserir o indivíduo socialmente.
Esse sistema de prevenção, atenção e prevenção integra a política de redução de danos associada ao uso de drogas. Isso indica que, no Brasil, assim como mundialmente, o usuário e o dependente deixam de ser criminosos alvos de cárcere, para serem tratados como vítimas do comércio ilegal de drogas. Assim, os esforços da polícia e do Judiciário se concentram no combate à produção e tráfico ilícito de drogas, fornecendo ao usuário a aplicação de medidas mais benéficas e específicas à sua recuperação.
O usuário de drogas distingue-se, portanto, tanto do dependente quanto do traficante a partir de determinados critérios. Segundo o doutrinador Luiz Flávio Gomes:
Para fins penais, entende-se por usuário de drogas (desde o advento da Lei 11.343/2066) quem adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, qualquer tipo de droga proibida [...]. O usuário não se confunde, de modo algum com o traficante, financiador do tráfico etc. Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal (ou não), o juiz analisará a natureza e a quantidade da substância apreendida, o local e as condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente (art. 28, §2°). (GOMES. 2013, p. 105).
3.2. Usuário x Dependente
Ser usuário de droga não, necessariamente, significa ser tóxico-dependente, assim como nem sempre o usuário de drogas torna-se dependente. Cabe diferenciar as duas figuras a partir de que o seu enquadramento como uma delas provocará efeitos distintos, como a aplicação de qual medida alternativa mais adequada ao caso concreto.
Inicialmente, tratamos que vício não se confunde com dependência. Para Gomes (2013), o primeiro consiste no hábito ou costume persistente da pessoa consumir droga (consumo irresistível), sem repercussão na sua capacidade de entendimento (imputabilidade). Enquanto que a dependência poderá atingir nível de doença mental ou retirar do agente a sua autodeterminação, tornando-o inimputável.
Quando da inimputalidade do agente por dependência de droga ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, se inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do dato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, estará isento de pena, tal como dispõe o artigo 45 da Lei de Drogas.
3.2.1. Tratamento voluntário ou tratamento compulsório?
O tratamento do usuário previsto na Lei n° 11.343/2006 pode se dá de três maneiras: a) espontâneo, disposto no artigo 22, mas com natureza de medida administrativa; b) obrigatório para os casos de inimputabilidade, previsto no parágrafo único do artigo 45; e c) substitutivo para o caso do semi-imputável, tal como no artigo 47. Ressalvado o caso do inimputável por dependência de drogas, o tratamento compulsório não foi imposto ao usuário, principalmente por sua baixa taxa de efetividade e por configurar, tão quanto a pena privativa de liberdade, uma verdadeira prisão.
3.3. Usuário x Traficante
De acordo com a doutrina sobre drogas de Gomes (2013):
Há dois sistemas legais para decidir sobre se o agente (que está envolvido com a posse ou porte de drogas) é usuário ou traficante: (a) sistema de quantidade legal (fixa-se, nesse caso, um quantum diário para o consumo pessoal; até esse limite legal não há que se falar em tráfico); (b) sistema do reconhecimento judicial ou policial (cabe ao juiz ou à autoridade policial analisar cada caso concreto e decidir sobre o correto enquadramento típico). A última palavra é a judicial, de qualquer modo, é certo que a autoridade policial (quando chega ao seu conhecimento) deve fazer a distinção entre o usuário e o traficante. (GOMES. 2013, p. 146)
Seguindo a perspectiva dos dois sistemas analisados acima, temos que, no Brasil, adota-se o segundo critério. Cabe ao magistrado, ou à autoridade policial, reconhecer se a droga encontrada era para destinação pessoal ou para tráfico, utilizando dos critérios elencados pela Lei de Drogas.
Assim, Gomes prossegue:
A Lei nova estabeleceu uma série (enorme) de critérios para se descobrir se a droga destina-se (ou não) a consumo pessoal. São eles: natureza e quantidade da substância apreendida, local e condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias sociais e pessoais, bem como a conduta e os antecedentes do agente.
Isto quer dizer que são relevantes: a) o objeto material do delito, indicado pela natureza e quantidade da droga; b) o desvalor da ação, presumida a partir do local e condições nos quais a ação se desenrolou; e c) o próprio agente do fato, observadas suas circunstâncias sociais e pessoais, conduta e antecedentes.
4. BREVE HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO DE DROGAS
A Legislação brasileira sobre drogas consistia num sistema misto, adotando as Leis n° 6.369, de 21 de outubro de 1976, e n° 10.409, de 11 de janeiro de 2002. Essa peculiaridade deve-se ao fato de que a Lei de 2002 pretendia substituir a legislação anterior de 1976, porém seu projeto abriga uma série de vícios de inconstitucionalidade e deficiências técnicas, assim, a sua parte penal foi vetada, no entanto tendo sido aprovada a sua parte processual.
Desse modo, no que tangia o aspecto penal da legislação, a Lei n° 6.369 continuava vigente, mantendo-se as condutas tipificadas pelos artigos 12 a 17, bem como a causa de aumento prevista no artigo 18 e a dirimente estabelecida pelo artigo 19. Enquanto, a parte processual era regulada pela Lei n° 10.409.
Era sistema essencialmente paradoxal não apenas pela união de dois diplomas legais de tempos distintos, mas pelo fato de que esse conjunto legislativo se encontrava repleto de antinomias.
Posteriormente, foi editada a Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006, a qual, em seu artigo 75 revogou expressamente ambos os diplomas legais.
5. ANÁLISE DO ARTIGO 28 DA LEI N° 11.343/2006
Com fulcro no art. 28, da Lei n° 11.343/2006, depreende-se:
Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1° Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2° Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3° As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4° Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5° A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6° Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7° O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.
A Nova Lei de Drogas, em seu artigo 28, estabelece o crime de porte de drogas para consumo pessoal, inserindo o usuário e o dependente em um tratamento mais brando e favorável, em comparação ao antigo texto do artigo 16 da Lei n° 6.368/76. A pena privativa de liberdade deixa de ser aplicada e em seu lugar são instituídas penas alternativas.
Sendo assim, o Superior Tribunal de Justiça julgou:
Por força do princípio constitucional da retroatividade da norma penal mais benéfica, deve-se afastar a aplicação de pena privativa de liberdade aos condenados por posse de entorpecente para consumo próprio – art. 16. da Lei 6.368/76.
(STJ, HC 55.940 – MG, 6ª T. Rel. Og Fernandes, j. 07.05.2009).
A partir dessas considerações iniciais, caberá ressaltar a posição da doutrina e da jurisprudência acerca de tal artigo, abordando as principais questões controversas sobre o tema e construindo um estudo relativo às penas alternativas previstas no dispositivo.
5.1. Descriminalização, descarcerização ou despenalização do uso de drogas?
Como explicitado anteriormente, a nova legislação sobre drogas inovou o tratamento dos usuários de drogas, punindo-os de forma mais branda ao instituir as penas alternativas no lugar da anterior pena de prisão. Com isto, surge a discussão doutrinária quanto à natureza do art. 28. da Lei nº 11.343/2006, questionando se houve a descarcerização da conduta, a despenalização ou a descriminalização (abolitio criminis) do uso de drogas.
Bitencourt (2013) leciona em favor da descarcerização da conduta, com o afastamento de qualquer possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade, mesmo na hipótese de reincidência. Entretanto, há doutrinadores, dentre eles Gomes, citado por Bitencourt (2013), que defendem a descriminalização, total ou parcialmente, do uso de drogas, pela nova legislação.
Por descarcerização entendemos a impossibilidade de impor a pena privativa de liberdade, aplicando em seu lugar medidas sancionadoras distintas, tais como as medidas alternativas, as penas restritivas de direito e a multa. Alguns doutrinadores costumam utilizar como sinônimo a este conceito, o instituto da despenalização. Porém, julgamos a abordagem pouco adequada, na medida em que o vocábulo “despenalização” remete a ideia de “desprover”, “anular”, “remover” as penas cominadas ao tipo penal. No caso do art. 28. da nova Lei de Drogas, percebemos que, no máximo, é possível classificá-la como despenalização parcial, devido ao afastamento das penas de prisão e detenção. No entanto, não se encontra tal dispositivo legal desprovido de qualquer instrumento sancionador, já que a ele temos cominadas as medidas educativas de: a) advertência sobre os efeitos das drogas; b) prestação de serviços à comunidade; e c) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Cabe ainda ressaltar que tanto pela descarcerização quanto pela despenalização incidirão os efeitos da novatio legis in mellius, isto é, a hipótese de retroatividade da norma penal (disposta no art. 2° do Código Penal), pela qual lei posterior benéfica ao réu, como o caso de cominar pena menos severa, desde que mantenha a tipificação da conduta, poderá ser aplicada a fatos anteriores, ainda que do trânsito em julgado da sentença.
Já por descriminalização entendemos o instituto jurídico pelo qual a conduta será abolida como criminosa, deixando de ser típico, e por isso, não serão mais a ela produzidos efeitos penais.
A descriminalização pode ser formal e material (ou substancial). Quanto a primeira não se caracterizará mais a conduta nem como “crime” nem como “contravenção penal”, tampouco como “ilícito administrativo”, porém não deixa de ser infração nem de estar inserida no âmbito penal, logo será infração penal sui generis, como leciona Gomes (apud BITENCOURT, 2013, p. 740). Já em relação à segunda, no entanto, incidirá o fenômeno jurídico do abolitio criminis, pelo qual uma conduta antes criminosa torna-se fato atípico, deixando de existir para o universo jurídico penal, e por isso, não serão mais a ela produzidos efeitos penais.
A parcela doutrinária que defende a descriminalização elenca em seus argumentos as seguintes considerações: a) a Lei de Introdução ao Código Penal, em seu art. 1°, define como crime somente a infração penal cominada à pena privativa de liberdade, alternativa ou cumulativamente, o que não ocorre no art. 28. da nova Lei de Drogas; b) como dito anteriormente, para Gomes, citado por Bitencourt (2013), a conduta será agora infração penal sui generis; c) e pra outros doutrinadores, houve simples abolitio criminis.
A doutrinária majoritária, no entanto, assim como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RE 430.105-9-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 13.02.07), se pronuncia no sentindo de que não houve abolitio criminis, sendo o usuário de drogas ainda considerado como infrator.
Quanto ao argumento referente à disposição da Lei de Introdução ao Código Penal, temos que observar que tal afirmação foi constituída no intuito de distinguir “crime” de “contravenção penal”, ressaltando que o Código Penal obteve uma nova interpretação hermenêutica quanto às modernas penas alternativas ou restritivas de direitos, que só foram introduzidas a ele com a Reforma Penal de 1984, pela Lei nº 7.209.
Além de que o mencionado artigo se encontra alocado, na Lei de Drogas, no Capítulo III do Título III, nomeado de Dos Crimes e Das Penas, explicitando a manutenção do caráter criminoso das condutas ali tipificadas. Sendo que, no mesmo capítulo, é prevista a prescrição penal de tais infrações penais no prazo de dois anos, tal como dispõe o artigo 30 da referida lei.
E por fim, quanto à interpretação do professor Gomes, de que o uso de drogas passara a ser infração penal sui generis, fazemos o seguinte apontamento: não seria mais crime, nem contravenção penal, nem mesmo ilícito administrativo, no entanto, o que seria a infração penal sui generis? Quais as suas características? E quais efeitos por ela são produzidos? São dúvidas pertinentes e cujas lacunas acabam por enfraquecer o posicionamento minoritário discutido.
5.2. Constitucionalidade do art. 28. e a transcedentalidade da ofensa
A 6ª câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu em favor da atipicidade do porte de drogas para consumo pessoal, fundamentado nos princípios constitucionais da ofensividade, igualdade e da intimidade.
Quanto ao princípio da ofensividade, é alegada a inexistência do crime sem ofensa ao bem jurídico. Tal conduta nada mais é do que autolesiva, não ultrapassando a esfera do próprio usuário, portanto, não violando o bem jurídico em foco, a saúde pública. Ao princípio da igualdade aplicado neste caso concreto, leva-se em consideração a não incriminação do consumo de substâncias de efeitos similares, como as bebidas alcoólicas. Já o princípio da intimidade veda ao Estado o direito de invadir a esfera privada da pessoa para proibi-la de usar ou fazer o que quer que seja, contanto que para isto não prejudique terceiros.
Gomes (2013) defende tal posicionamento, enquanto no plano constitucional, pois a imposição de sanção penal ao possuidor da droga para uso próprio, enquanto o fato não transcende a privacidade do cidadão, conflita com o Estado constitucional e democrático de Direito.
Dessa maneira, por força do princípio da ofensividade, a conduta para ser criminosa deverá representar lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico, e para tanto necessita ser uma ofensa concreta ou real, transcendental (afetar terceiros), grave ou significativa e intolerável de forma a exigir a intervenção do Direito Penal.
A transcendentalidade da ofensa é, portanto, um dos requisitos para a tipicidade material da conduta, isto é, para a configuração da conduta como criminosa, esta deverá afetar a terceiros. Isso ocorre devido ao fato de que o Direito Penal brasileiro, regido pelo sistema de intervenção mínima, não abarca em sua competência condutas de perigo abstrato e de autolesão.
Dito isso, no Direito Penal será relevante apenas as condutas cujo resultado afete terceiros ou interesses de terceiros. Se o agente ofende unicamente bens jurídicos pessoais, não há crime, caracterizando fato atípico.
Sendo assim, não há como permitir, no âmbito constitucional, a incriminação da posse de drogas para consumo pessoa, enquanto o fato não transcender a esfera privada do agente. A conduta tipificada no artigo 28 da Lei n° 11.343/2006 ficaria, pois, enquadrada como questão de saúde pública e privada, deixando a seara da Justiça Federal assim como da polícia.
5.3. O consumo de drogas e o princípio da insignificância
Outra questão controversa no entendimento da doutrina e da jurisprudência quanto ao consumo de drogas remete-se à aplicação do princípio da insignificância, também chamado de princípio da bagatela, ao portador de drogas tipificado no artigo 28 da Lei de Tóxicos.
Através do princípio da bagatela, as condutas que representam ínfimo nível lesivo ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal não são relevantes ao Direito Penal, resguardando o princípio da intervenção mínima.
Para Nucci (2012), o crime de porte de drogas para consumo pessoal deve ser considerado infração de ínfimo potencial ofensivo, pois além da possibilidade de transação, não será imposta prisão em flagrante, muito menos será cominada a pena privativa de liberdade.
Dessa maneira, o doutrinador admite a possibilidade do princípio da insignificância para o portador de quantidade extremamente reduzida de droga, fundamentado pelo direito fundamental à dignidade humana, que não permite a aplicação de qualquer punição penal, por mais mínima que seja, se o bem jurídico não for realmente lesado. A quantidade ínfima de droga não proporciona, portanto, nem a tipificação material da conduta criminosa do artigo 28.
Gomes (2013), ainda que primando pela mesma vertente, classifica a posse de drogas para uso próprio como infração sui generis, destituída de qualquer natureza criminosa, devido à impossibilidade de impor a pena de prisão a tal conduta. Logo, à posse ínfima de droga não incidiriam as penas alternativas do artigo supracitado, mas sim o princípio da insignificância, causando a atipicidade material do fato.
No plano jurisprudencial, a aplicação do princípio em questão produz efeitos em prol da descriminalização da posse privada de drogas para uso pessoal, ao lado da fundamentação constitucional do princípio da ofensividade e da transcedentalidade da ofensa.
Dos efeitos da aplicação do princípio da insignificância, o principal recai sobre a exclusão da responsabilidade penal dos fatos ofensivos de pouca relevância ou de ínfima lesividade, criando fatos materialmente atípicos, isto é, condutas que se enquadram formalmente na tipificação legal, mas que não são consideradas criminosas pela ausência de desaprovação da conduta e de efetiva lesão do bem jurídico.
A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no julgado do HC 90.125 – RS, inovou a jurisprudência ao acolher a admissibilidade do princípio da insignificância à infração do art. 28. quanto ao usuário militar, decidindo que:
“No caso se impõe a aplicação do princípio da insignificância, seja porque presentes seus requisitos, de natureza objetiva, seja por imposição da dignidade humana”.
(STF, HC 90.125 – RS. Rel. Min. Eros Grau, 2ª Turma, j. 24.06.2008).
No entanto, a posição majoritária defende a impossibilidade de aplicação do princípio da bagatela a qualquer dos delitos da Lei de Tóxicos, até mesmo nos casos de porte de drogas para consumo próprio.
Nessa diretriz, temos o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
A pequena quantidade de substância entorpecente, por ser característica própria do tipo de posse de drogas para uso próprio (art. 28. da Lei 11.343/06), não afasta a tipicidade da conduta. Precedentes.
(STJ, HC 158.955 - RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma, j. 17.05.2011).
No mesmo sentido, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal julgou o HC 102.940 - ES:
A Lei 11.343/2006, no que se refere ao usuário, optou por abrandar as penas e impor medidas de caráter educativo, tendo em vista os objetivos visados, quais sejam: a prevenção do uso indevido de drogas, a atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas.
VI – Nesse contexto, mesmo que se trate de porte de quantidade ínfima de droga, convém que se reconheça a tipicidade material do delito para o fim de reeducar o usuário e evitar o incremento do uso indevido de substância entorpecente.
(STF, HC 102.940 – ES, Rel. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, j. 15.02.2011).
5.4. Atipicidade do "uso" de drogas
Tendo em vista as elementares de tipificação do artigo 28 referentes à aquisição, à guarda, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, a doutrina entende que o “uso” da substância em si é atípico. Nesse sentido, Nucci (2012) leciona a favor da não incriminação do uso propriamente dito da seguinte maneira, “se alguém for surpreendido usando a droga (ex.: cocaína injetada na veia), sem possibilidade de se encontrar a substância em seu poder, não poderá ser punido”.
Isso ocorre tão porque o crime elencado no artigo supracitado é de porte de drogas de consumo pessoal. Assim, se o agente for flagrado consumindo drogas, com possibilidade de atestar a materialidade delitiva (isto é, se possível encontrar resquícios da substância em posse do usuário), será configurado crime, não quanto ao “uso”, que é fato atípico, mas quanto ao porte da droga.
Em sede de jurisprudência, o Habeas Corpus n° 79.189 julgado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, aponta os seguintes argumentos referentes ao debate:
Entorpecentes: posse para uso próprio: inexistência do crime ou, de qualquer sorte, de prova indispensável à condenação: habeas corpus deferido por falta de justa causa.
1. É mais que razoável o entendimento dos que entendem não realizado o tipo do art. 16. da Lei de entorpecentes (L. 6.368/76) na conduta de quem, recebendo de terceiro a droga, para uso próprio, incontinenti, a consome: a incriminação do porte de tóxico para uso próprio só se pode explicar - segundo a doutrina subjacente à lei - como delito contra a saúde pública, que se insere entre os crimes contra a incolumidade pública, que só se configuram em fatos que "acarretam situação de perigo a indeterminado ou não individuado grupo de pessoas" (Hungria).
2. De qualquer sorte, conforme jurisprudência sedimentada, o exame toxicológico positivo da substância de porte vedado é elemento essencial à validade da condenação pelo crime cogitado, o que pressupõe sua apreensão na posse do agente e não de terceiro: impossível, assim, imputar a alguém a posse anterior do único cigarro de maconha que teria fumado em ocasião anterior, se só se pode apreender e submeter à perícia resíduos daquela encontrados com o outro acusado, em contexto diverso.
(STF, 1ª T. HC 79.189 – SP. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. j. 12.12.2000)
5.5. Penas alternativas ao consumo de drogas
5.5.1. Advertência
Caberá ao juiz designar audiência específica para que o réu seja advertido sobre os efeitos negativos da droga em relação à sua saúde e à de terceiros. Tal audiência deve ser reduzida a termo e assinada pelo magistrado, pelo réu, seu defensor e pelo membro do parquet.
5.5.2. Prestação de serviços à comunidade
As regras gerais do Código Penal, em seu artigo 46, prevalecem, porém observadas as peculiaridades trazidas pela Lei de Drogas. A prestação de serviços à comunidade, na Lei n° 11.343, constitui pena independente, com prazo próprio, variando de um dia a cinco meses, tal como dispõe o artigo 28, §3°, devendo ser cumprida em locais específicos, sem fins lucrativos, que se destinem, em sua essência, à prevenção ao consumo e à recuperação do usuário e dependente de drogas.
5.5.3. Comparecimento a programa ou curso educativo
Trata-se de pena inédita, nunca prevista no Código Penal, porém configura norma penal em branco, havendo necessidade de complemento. No entanto, para evitar lesão ao princípio da legalidade, aplica-se um tratamento análogo à prestação de serviços à comunidade. O juiz fixará, portanto, a obrigação de comparecimento a programa ou curso educativo, pelo prazo de um a cinco meses.
5.5.4. Reincidência
Quanto ao assunto, leciona o professor Nucci:
Se novamente for condenado, respeitado o período de cinco anos a contar da extinção da punibilidade (art. 64,I, CP), as penas previstas nos incisos II e III (prestação de serviços à comunidade e frequência a curso ou programa educativo) serão fixadas até dez meses. (2012, p. 240).
5.5.5. Recusa injustificada ou descumprimento
O condenado poderá rejeitar a aplicação das penas alternativas anteriormente explicitadas, desde que apresente justificativa válida. Caso haja recusa injustificada ou descumprimento dessas medidas, o juiz dará, em primeiro lugar, ensejo a uma audiência para admoestar o condenado verbalmente a cumprir a pena que lhe foi fixada, insistindo no descumprimento da sanção, será estabelecida multa nos moldes do artigo 29 da Lei de Drogas.
5.5.5.1. Admoestação Verbal
Segundo Nucci (2012), é a censura branda feita oralmente, sem necessidade de se reduzir o que foi falado a termo. A diferença essencial entre a pena de advertência e a admoestação verbal reside na sua finalidade, enquanto a primeira visa alertar o acusado a respeito dos efeitos da droga, a segunda busca avisar o agente de que ele não vem cumprindo, corretamente, a pena aplicada.
5.5.5.2. Multa
Como dito anteriormente, ao recusar injustificadamente e ao descumprir as medidas impostas ao agente, caberá admoestação verbal e multa, sucessivamente. A pena pecuniária tem, portanto, finalidade coercitiva ao usuário, para que cumpra a pena fixada pelo juiz.