01. Introdução: a era da criatividade.
Vivemos em tempos de crise paradigmática. Tempos que exigem de nós o questionamento de princípios, crenças e fundamentos até então tidos como verdadeiros, "naturais". Tempos que nos conclamam, dentre outras coisas, a unir esforços para a difícil, mas necessária tarefa de reavaliação dos alicerces do saber ocidental.
Em meio a esta crise, o pensamento jurídico moderno, e sua respectiva cultura, são chamados a despertar do longo "sono dogmático" no qual ainda estão imersos. Vozes, outrora silentes, levantam-se numa tarefa comum de desmascarar as dimensões político-ideológicas que mantiveram por muito tempo o status de racionalidade do dogmatismo acrítico, inaugurando um novo tempo para o pensamento jurídico: a era da criatividade.
Ocorre que, nesse ínterim, o ensino jurídico foi elevado à condição de bode expiatório da crise e, por isso mesmo, alvo privilegiado da convergência dos esforços na tentativa de revisão do grande edifício de babel chamado direito. Em que pese a relevância e os avanços obtidos a partir da crítica ao ensino jurídico, chama-nos atenção a escassez de reflexões acerca do papel desempenhado pelos estágios jurídicos na formação/conformação do profissional do direito.
Daí que este texto, para além de discutir o senso comum teórico dos juristas [1], convida a leitora ou o leitor a pensar o estágio enquanto instância fundamental de formação dos juristas, seja no que tange à reprodução do saber "oficial", um tanto distanciado da realidade, seja – e este é o nosso principal intuito – como espaço estratégico para o resgate da criatividade, da problematização do direito, da reaproximação deste com a política e com a ética. Trata-se de trazer o estágio para o locus por onde devem passar as energias utópicas e necessárias de transformação cultural dos atores jurídicos e do próprio direito.
Cumpre informar que utilizaremos como ponto de referência para nossa reflexão, a experiência do Programa de Estágio da AATR – Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia. Este programa, construído e reconstruído no decurso do tempo com a participação dos próprios estagiários, tornou-se um espaço de formação indubitavelmente diferenciada.
Em síntese, o presente trabalho adquire, de um lado, contornos de crítica do modelo tradicional de ensino e prática jurídica e, por outro lado, exsurge como avaliação e sistematização do Programa de Estágio da AATR, visando, em última instância, contribuir para o fortalecimento de uma práxis voltada para emancipação dos atores jurídicos através da criatividade, exigida pelo contato e compromisso com as causas populares.
02. Uma preliminar: o ensino jurídico.
Antes de adentrar no estágio jurídico, faz-se necessário tecer algumas considerações acerca do ensino jurídico e sua condição central no âmbito da crítica ao Direito. O ensino jurídico pauta-se por uma formação essencialmente mecanicista, na medida em que restringe espaços de reflexão ético-política (aliás, qualquer tipo de reflexão...), e prioriza o saber essencialmente técnico-formal.
A redução do currículo às disciplinas e às abordagens "técnicas" evidencia a ausência da interdisciplinaridade, gerando um esvaziamento do senso crítico-reflexivo sobre o direito e, principalmente, sobre seus efeitos na sociedade. Obstrui-se a criatividade e qualquer perspectiva de inserção do direito num espectro de problematização, formando-se profissionais eticamente despreparados para atuarem no quadro de uma sociedade dinâmica.
Além disso, o ensino jurídico tradicional mantém na centralidade do processo de aprendizagem a aula expositiva. Ao estudante, é destinado o mero papel de receptor do conhecimento. Nos termos do saudoso professor Paulo Freire, "depósitos de conteúdos". Os "mestres" professam seus velhos esquemas nas aulas, cabendo ao aluno assimilar as informações expostas, conservá-las e repeti-las nas avaliações, para, então, obter sua aprovação.
A perda da criatividade, necessariamente ligada à frigidez ética-política, prepara-nos apenas para a manutenção e conservação de uma sociedade que reclama por mudanças. Diante da crise, o profissional do direito encerra-se enquanto autêntico operador, impotente para propor e lidar com este momento histórico de alta complexidade a que estamos inseridos.
Verifica-se que este tipo de formação proporciona ao estudante uma postura essencialmente passiva, acomodada, acrítica, pautada pelo desestímulo à extensão e à pesquisa, conseqüentemente, à problematização. Enfim, e em poucas palavras, este modelo de ensino compreende uma dinâmica discreta de adestramento e condicionamento do profissional do direito, tornando-os estranhos e até mesmo avessos às exigências desses novos tempos.
03. Tópicos para se repensar o estágio e a prática jurídicos.
Não obstante as inúmeras críticas ao ensino jurídico, a dimensão prática da formação/conformação não tem recebido a devida atenção dos teóricos imbuídos na reconstrução da cultura jurídica. Infelizmente, não se tem percebido que o momento do estágio também integra todo um modelo de formação do jurista tradicional. É preciso, portanto, para além de conceber uma crítica ao ensino jurídico, repensar e reconstruir o estágio, enquanto práxis de uma concepção crítica do direito.
No nosso entender, são fundamentais para se repensar o estágio no âmbito do direito e, mais ainda, construir uma nova visão acerca da "prática jurídica", a articulação entre alguns tópicos a seguir delineados. Para cada um deles, relataremos uma das atividades do estágio da AATR, aqui utilizado como modelo para essa proposta. Cumpre ressaltar que esse modelo, assentado na experiência dos autores no estágio da AATR, não se pretende correto, único ou verdadeiro, mas apenas instaura-se como um norte e como diretriz para a reformulação das práticas de estágio tradicionais.
a) Assunção da dimensão política do jurídico.
Desde que o juspositivismo tomou conta do imaginário dos juristas, vige a concepção de que as esferas jurídica e política são estanques. Lidar com o direito, nessa perspectiva, seria lidar com uma técnica, assim como, por exemplo, um eletricista conserta postes e fios. Pouco importava as conseqüências sociais e políticas do labor jurídico. Assim, como já assinalamos, os profissionais do direito foram sendo reduzidos a meros operadores supostamente neutros e imparciais do maquinário legal, que deveriam, a qualquer custo, distanciar-se das questões políticas.
Na arena teórica, amplas discussões têm sido travadas no sentido de repensar e resgatar as relações entre direito, ética e política. Como exemplo, podemos citar o "pós-positivismo" e as novas concepções acerca da hermenêutica jurídica. Expoente dos novos tempos, Eros Roberto Grau (2002:45) pontua com propriedade que "a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas".
Ocorre que, não obstante toda essa revisão teórica, a formação jurídica ainda se mantém presa aos vetustos (e obsoletos) dogmas, como se, por exemplo, o processo judicial e as questões que por ele perpassa pouco ou nada tivessem que ver com política. Assim é que, nas faculdades, as disciplinas atinentes aos estudos processuais estão longe ainda da discussão acerca do acesso à justiça, sendo ministradas e compreendidas como pura técnica.
Nos estágios, a concepção é a mesma. Às vezes, pior. Isso porque, em alguns casos, o estagiário somente exerce funções mecânicas, braçais que pouco ou nada contribuem, seja para sua formação técnica, seja para sua formação teórica e política. Dificilmente, nos escritórios de advocacia e na burocracia estatal – locais onde tradicionalmente desenvolvem-se os estágios jurídicos – existem espaços para reflexão e para contestação dos discursos e verdades instituídas. Em poucas palavras, o estagiário é levado, pouco a pouco, pelos cantos e encantos hipnóticos do discurso dogmático-dominante.
Talvez a principal conseqüência desse contexto esteja na falta e ausência de operadores do direito comprometidos com as causas populares. E não mencionamos aqui apenas os advogados, mas também juízes, membros do Ministério Público e professores. É muito comum, por exemplo, (presenciamos isso em quase todas as etapas dos Programas de Formação da AATR) o promotor de uma comarca no interior do Estado ser inacessível ou não demonstrar o devido interesse pelas reclamações de grande vulto feitas pelos movimentos sociais. Ou, então, uma juíza se recusar a atender uma liderança sindical. Ou, ainda, um professor de direito silenciar a respeito de questões importantes, quando não recusa e evita qualquer tipo de debate em sala de aula. Embora outros fatores contribuam para tanto, acreditamos que a formação ainda prevalecente nas faculdades é determinante para esse tipo de atitude.
O Direito, no Estado Democrático, possui uma função social e pode (e deve) funcionar como importante instrumento de transformação. Mas, sem pessoas vinculadas a essa causa, esse ideal perece e se torna algo distante. É por isso que o estágio – esta é a nossa preocupação central – deve ter como principal finalidade contribuir para a formação do "novo ator jurídico", comprometido com o resgate da responsabilidade ética na militância profissional. É aqui o ambiente propício para a formação dos quadros sensíveis aos interesses e causas populares.
Até mesmo porque, não é "o direito", em si mesmo, enquanto instituição, que transforma ou que mantém o status quo, mas sim, as pessoas e os sujeitos sociais que com ele lidam no dia-a-dia. São elas, em última instância, que optam e determinam a que finalidade político-social sua práxis – e, por conseguinte, o direito (aqui entendido como meio de interação comunicativa) – serve: afirmar-ou-ultrapassar-o-existente-instituído.
Em termos concretos, o contato com as causas e com os membros dos movimentos populares propicia uma mudança radical no modo de pensar e de compreender o jurídico. Descobre-se e aprende-se, não apenas a dimensão política e a função social do direito, mas também o quão é importante o contato com o senso comum. Vemos que, muitas vezes, um trabalhador tem um entendimento, vivenciado no seu cotidiano, que não se adequa ou que contradiz certos conceitos jurídicos.
Com tudo isso, percebe-se quanto pode ser feito e realizado a partir do direito. E este deixa de ser uma mera e insuportável aula de direito civil, por exemplo, para ganhar sentido e vida.
Este primeiro tópico, na verdade, constitui no alicerce básico e fundamental de toda a reflexão que se seguirá. Trata-se, mais do que qualquer outra, de um pressuposto preliminar e necessário para qualquer tipo de mudança.
b) A dimensão ético-pedagógica da atuação dos juristas: para além da prática jurídico-forense
Talvez uma das grandes questões que perpassam o direito, numa sociedade democrática, seja a seguinte: como ampliar a democracia sem a difusão do conhecimento sobre os direitos? Ou melhor: como é possível formar cidadãos aptos a questionar, criticar e, mormente, participar dos debates públicos, se somente uma classe, a de juristas, tem acesso e compreende a linguagem jurídica?
Assumir a dimensão política do jurídico, tal como defendemos no item anterior, tem como principal conseqüência desmistificar a concepção do direito enquanto técnica, somente tratada e tratável por técnicos. Não. O direito enquanto instrumento político de emancipação, pode e deve ser manejado por qualquer um. Das crianças, aos analfabetos. Das mulheres trabalhadoras rurais, aos índios Pataxós. No Estado Democrático, como defendeu Peter Häberle (1997), todos os sujeitos sociais são intérpretes da Constituição.
Nessa perspectiva, parece-nos essencial quebrar de uma vez por todas o monopólio de interpretação do direito. E aqui os caminhos são muitos, passando desde a ampliação da legitimidade de propositura de ações sem o auxílio de advogados até o ensino do direito em escolas primárias e a simplificação dos procedimentos judiciais. Dada a exigüidade e os objetivos do texto, limitamo-nos a um desses aspectos, qual seja, a função ético-pedagógica do profissional do direito.
Na busca pela quebra dos monopólios de interpretação, o jurista tem papel e responsabilidade fundamentais. Conhecedor dos meandros jurídicos, cabe a ele, neste primeiro momento, criticamente, difundir e socializar as noções que circulam no âmbito do direito. Partimos do pressuposto de que saber é poder. Municiar, de conhecimento jurídico, um cidadão, notadamente aquele ligado aos movimentos populares, implica em fazer circular na sociedade um arsenal político e comunicativo sem precedentes. Eis aquilo que se tem chamado de "empoderamento".
Daí que a resposta à pergunta com que iniciamos esse tópico seja, justamente, desencastelar o saber jurídico [2], para, assim, formar cidadãos, militantes e sujeitos comprometidos com a transformação e mudanças sociais. São essas pessoas que, então, poderão utilizar o direito de forma emancipatória, atribuindo-lhe, na práxis, sentido utópico-transformador-realizador-revolucionário.
Durante a execução dos programas da AATR, especialmente os de formação (Juristas Leigos e Políticas Públicas), a função ético-pedagógica transborda da sede teórica para materializar-se na arena das experiências concretas.
Nos cursos do programa Juristas Leigos, voltado para lideranças do movimento popular, são discutidos temas acerca de todo o direito, incluindo desde direito civil e penal até mesmo direito do trabalho, previdenciário e eleitoral. Já nas etapas do Programa Políticas Públicas, são discutidos temas como organização do município, orçamento público, fiscalização das contas, controle social e conselhos setoriais de políticas públicas. Como exemplos concretos de transformação, temos habeas corpus impetrados por cursistas e algumas ações bem sucedidas no campo do controle social do Estado, como uma participação mais incisiva de conselheiros e na democratização das informações públicas.
A execução das etapas propiciou parcela importante da formação no que toca à experiência com educação popular. Não coube aos estagiários a passiva função de observador-relator [3]. Ao revés, a participação dos mesmos deu-se de forma ativa, na função de facilitador, na construção da programação e das dinâmicas de grupo, preparação de exercícios e, inclusive, na própria exposição dos conteúdos.
Para além da integração com a cultura e realidade local, foram vivenciadas experiências e lutas dos movimentos populares do interior do Estado, garantindo uma aprendizagem inigualável ou até, como dizem alguns, impossível para uma Faculdade de Direito, isolada do mundo real e da própria Universidade, e para um estágio tradicional, preso aos paradigmas que sustentam a cultura jurídica predominante.
Cabe ressaltar que essas questões conduzem a uma (necessária) mudança na própria concepção de prática jurídica. Isso porque, a visão tradicional reduz a noção de prática jurídica à prática estritamente forense, limitando a noção de prática jurídica os procedimentos operacionais do processo judicial. Maior exemplo disso são as aulas das disciplinas ligadas às Práticas Jurídicas, comumente adstritas ao aprendizado dos procedimentos "oficiais" do processo forense, como petições iniciais, sentenças, recursos etc.
Esta redução choca-se frontalmente com as exigências das sociedades democráticas, nas quais o direito reaproxima-se da política, da hermenêutica e, ainda, amplia sua intervenção nas diversas esferas sociais. Deste modo, o jurista contemporâneo é chamado a atuar, em especial pedagogicamente, em diversos espaços não contemplados pelas práticas e formação tradicionais.
Significa, assim, que o profissional do direito, nos dias atuais, não é mais, nem pode ser entendido e nem deve ser formado como se fosse um operador a lidar unicamente com a "técnica" do processo judicial. Precisamos, nessa medida, alargar a nossa visão, a começar pela inserção de práticas pedagógicas, bem como de outras experiências que erigem deste verdadeiro tempo de reinvenção do direito, de criatividade, tanto nos cursos jurídicos como nos estágios. [4]
c) Uma guinada na forma e no conteúdo dos recursos jurídicos tradicionais
A tese central deste tópico pode ser assim delineada: todo o exposto acima não implica na negação do "jurídico" e nos espaços que lhe são mais característicos. Ao contrário, enseja e resulta na urgência de revisão ou, mais propriamente, de implosão da dogmática e dos recursos tradicionais do direito.
Por outras palavras, assumir a dimensão política do direito e conceber como fundamental a função pedagógica do jurista traz consigo uma série de questões e problemas que precisarão ser inseridos e lidados no âmbito específico-reduzido do direito. Estes espaços, em verdade, acabam sendo redimensionados e entendidos e utilizados a partir de um viés emancipatório (lembre-se: o que é transformador ou conservador não é o direito em si mesmo, mas o uso que dele fazemos).
Nessa perspectiva é que se torna necessário ultrapassar e acordar do sono dogmático que ainda paira generalizadamente para, em seguida, partirmos para a implosão, por dentro, do direito. Em outras palavras, Warat (1997:140) pontua: "Por que não aceitar que também a dogmática jurídica pode indagar, descobrir, criar?". Insistimos, então: implodir o direito. Eis a nossa tarefa. E um princípio básico pelo qual devem se pautar os estágios jurídicos.
Umas das críticas ao estágio da AATR consistia na primazia absoluta da formação política, em detrimento de atividades concernentes à prática processual forense. Verificando esta carência, estabeleceu-se para a equipe do estágio, sob orientação técnica, a assistência jurídica aos Terreiros de Candomblé assessorados pela Koinonia, parceira da AATR. Novas rotinas somaram-se no estágio: idas ao Fórum, visitas aos cartórios, conversas com Juízes para despachos e elaboração de petições.
A prática judiciária forense engloba ações individuais e coletivas como inventário, pedido de alvará, uma interessantíssima ação indenizatória contra a Igreja Universal por discriminação contra uma Mãe-de-Santo, usucapião para regularização fundiária do terreiro Oxumarê, bem como o estudo sobre uma possível Ação Civil Pública contra o Estado, que mantém objetos do candomblé no Museu do IML-BA, junto com artefatos policiais, ofendendo a cultura afro-descente.
E a mudança está, não apenas na utilização do direito para a defesa de interesses da população menos favorecida, mas também no modo de fazer o direito. E isso inclui, dentre outras coisas, a forma como são feitas as petições. Buscamos, sempre que possível, inserir argumentações sociais, políticas e antropológicas (como, por exemplo, em um pedido de reconhecimento da imunidade tributária de terreiros), bem como trabalhar ludicamente, associando poesias e outras manifestações artísticas com o jurídico.
Uma outra atividade do estágio relacionada a este tópico, está na elaboração, atualização e reformas dos módulos dos programas Juristas Leigos e Políticas Públicas, ensejando o estudo crítico e problematizador da dogmática jurídica e a busca de uma linguagem jurídica popular. Nessa atividade, foi preciso buscar outros caminhos que não aqueles, insossos e distantes da realidade, fornecidos pelos manuais jurídicos. No âmbito do direito civil, por exemplo, foram inseridos os debates atuais acerca da constitucionalização, ainda pouco estudados em sala de aula. Na esfera penal, da mesma forma, acrescentou-se discussões sobre a legitimidade do sistema penal, como, por exemplo, abolicionismo penal e direito penal mínimo, tudo sob uma perspectiva garantista e vinculada aos direitos fundamentais.
Dessarte, o que se percebe é a necessidade de reformular as bases e os pressupostos nos quais está assentada a teoria do direito tradicional. Com o trabalho junto aos movimentos sociais, percebemos que muitas questões são vistas – melhor talvez fosse dizer "não-vistas" – pela dogmática jurídica como questões sem-importância, irrelevantes. Notamos, então, que a Universidade e a teoria do direito, em todos as suas ramificações, têm muito que aprender com o conhecimento popular. Enfim, o movimento social tem muito a ensinar ao saber científico, pretensamente exclusivista e universal.
d) Interdisciplinaridade teórica e prática.
Não há como, em tempos de assunção da dimensão política do jurídico, da inserção do agir pedagógico como uma das funções precípuas do jurista e, enfim, de implosão do direito, pensar em uma formação unidisciplinar, desvinculada das discussões sociais, culturais, políticas, antropológicas, psicológicas, dentre outras. Aliás, esta é uma das principais causas da mitigação da criatividade, que aqui estamos tentando formular bases para o resgate.
Assim, e compreendendo o estágio como um momento essencialmente de formação estudantil, a equipe do estágio da AATR optou por realizar estudos de textos sobre os movimentos críticos ao Direito e sobre os paradigmas da modernidade e da pós-modernidade. Iniciamos a busca teórica de um outro direito, a partir de textos de André-Jean Arnaud (O Direito traído pela Filosofia), Luis Alberto Warat (Introdução Geral ao Direito: o direito não estudado pela teoria jurídica moderna), e, ao final, Boaventura de Souza Santos (Pela Mão de Alice e Crítica da Razão Indolente). Tentamos, assim, seguir o intento de uma prática refletida e uma ação pensada.
O novo Boletim da AATR, o Notícias da AATR [5], relançado em dezembro de 2001, a cargo dos estagiários, é um marco importante desta experiência. As entidades dos movimentos sociais sempre tiveram dificuldades em divulgar as ações realizadas, principalmente as bem sucedidas. Tentando implementar uma solução para a questão, foi construído um boletim eletrônico de caráter político (editorial da entidade sobre alguma questão relevante), informativo (divulgando as ações, trabalhos e eventos), lúdico (trazendo algumas brincadeiras sobre a entidade e suas atividades) e cultural (sempre, ao final, contendo poesias ou trechos literários).
Assim, a formação do estágio pôde aliar discussões de outras disciplinas, como sociologia, filosofia e antropologia, a atividades práticas que não se resumem à feitura de petições, ampliando o espectro de visão e compreensão do futuro jurista.
e) Diálogo, interação, flexibilidade e prazer
Faz-se mister rompermos com a formação disso que podemos chamar andróides – o ensino jurídico, por exemplo, parece destinado a eles... – mas formarmos seres humanos. Humanos. Com todas as suas vicissitudes, subjetividades, manias, vícios, imperfeições e, enfim, desejos. Nesse sentido, são salutares as seguintes palavras de Luis Alberto Warat:
"O prolongamento da corporeidade do homem na racionalidade da técnica é um abismo agudo na cultura pós-moderna, que tem um papel decisivo no fortalecimento de uma sociedade de guardiões totalitários, homens sem desejos nem capacidade para fazer fluir a linguagem por seus corpos. Em suma, uma cultura que caminha para a formação de um conglomerado de andróides".
(...)
"Temos de inventar uma nova forma de cultura, em que a presença do prazer, que a vida exige, seja mantido na ciência, na técnica e nas artes, não deixando de exaltar também as possibilidades do ser humano na criação transformadora da realidade, de sua estrutura psíquica e de sua relação com os outros". (1997:35-36).
Nessa perspectiva, não acreditamos em uma proposta de ensino jurídico ou de estágio que não considere e não tenha em mente ultrapassar os mal-estares do fim do milênio. O formalismo, a linguagem rebuscada, a pompa, o terno, a gravata, constituem a antítese imediata e frontal do que estamos aqui defendendo. Em poucas palavras, diríamos que o estágio precisa ser carnavalizado (para usar mais uma expressão de Warat), entendido como um local onde amor, prazer e desejo se associam ao trabalho.
Em suma, os tópicos formulados acima somente funcionarão se tiverem como articuladores centrais, ou seja, como fio condutor e conector, o diálogo, a interação, a flexibilidade e o prazer. O estágio não pode ser um ofício sofrível, puramente mecânico, nem o estagiário deve ser entendido como um subalterno, menos capaz. As hierarquias devem ser mitigadas ao máximo.
E aqui sobressai a questão das relações de poder no ambiente de trabalho. Impende, nessa perspectiva, que os sujeitos envolvidos numa relação de estágio se imbuam no propósito de lutar contra a tendência de concentração de poder hierarquizado nas mãos do chefe, no sentido de viabilizar a partilha do poder, transformando-o em potência emancipatória de e para todos.
Na AATR, a relação, sempre fundada na dialogicidade e no convencimento, entre estagiários, coordenador e diretoria contribuiu decisivamente para a consecução de um programa de estágio efetivamente diferenciado. O programa de estágio – assim como o presente texto – sempre foi construído conjuntamente entre estagiários e coordenação.
04. Considerações finais.
O programa de estágio da AATR proporciona uma formação estudantil bastante plural, através da junção entre formação política, diversidade cultural e assessoria a demandas jurídicas não tradicionais. A idéia da pluralidade consubstancia-se em experiências que vão desde a prestação de assistência jurídica aos Terreiros de Candomblé em busca de seus direitos, passando por viagens a quase todas as regiões da Bahia executando os programas de formação aos movimentos populares e até atividades bem incomuns, a exemplo do encontro com o Representante da ONU, em visita ao Brasil, entregando-lhe as denúncias relativas às questões da fome e da moradia.
No período de novembro de 2001 até fevereiro de 2003, os estagiários participaram de forma cotidiana da execução dos Programas Juristas Leigos e Políticas Públicas, de uma série de discussões de texto visando uma reflexão crítica sobre o Direito, da assistência jurídica aos processos do Koinonia e da elaboração, quase que mensal, do novo Boletim da AATR.
Além dessas atividades, o estágio prestou assessoria e consultoria jurídica para movimentos, ONG´s, sindicatos urbanos e rurais, que vislumbram na AATR uma referência em assessoria jurídica aos movimentos populares no Estado da Bahia. Destacam-se, também, outras atividades realizadas, que pela sua especificidade e raridade, merecem ser narradas: a participação na produção de vídeo documentário sobre direito à moradia e segurança alimentar na comunidade de Novos Alagados; parecer sobre a reforma do Estatuto do Movimento Nacional de Direitos Humanos, Regional Nordeste; a árdua busca de um alvará de soltura perdido, há mais de seis meses, entre a burocracia judiciária de São Paulo e da Bahia; acompanhamento da inscrição da cooperativa de mulheres trabalhadoras rurais Mãos Unidas, de Santa Maria da Vitória etc.
Cumpre ressaltar que, no período citado, os estagiários encontraram a entidade em plena atividade e reunindo todas as condições para tornar factível a potencialidade de projeto diferenciado de estágio, ou seja, existiam as condições estruturais para implantação deste programa, inclusive a imprescindível ampliação do número de estagiários para três estudantes. Além disso, é preciso também lembrar que existiram diversas e naturais falhas e dificuldades.
Todas essas tarefas, pautadas pelos tópicos expostos ao longo do texto, caminham no sentido de abrir horizontes para o jurista tradicional. Vislumbramos, nessa medida, que essa experiência longe ser utópica, pode e deve ser aproveitada. Eis a nossa modesta contribuição para a mudança. Talvez, mesmo, fosse melhor dizer: para a implosão do direito.
Notas
01. Esta expressão, largamente utilizada pelo pensamento jurídico-crítico, designa o conjunto de pressupostos conceituais (princípios, dogmas, verdades, crenças, valores) sobre o qual, de modo acrítico, se assentam a cultura e a epistemologia jurídica predominantes.
02. Sobre a experiência da AATR neste campo, vale a pena conferir o artigo de Nunesmaia Jr. e Rocha (1998).
03. Em 2002, durante a execução dos Programas de formação da AATR, passamos pelos seguintes municípios da Bahia: Teixeira de Freitas, Valente, Paulo Afonso, Brotas de Macaúbas, Santa Maria da Vitória, Barreiras, Inhambupe, dentre outros.
04. Parece-nos altamente viável que, por exemplo, estagiários do Ministério Público participem de projetos mais voltados para a comunidade, tais como, por exemplo, o "MP vai às ruas", em nosso Estado, e o "Promotoras Populares", em São Paulo.
05. Todas as edições do Notícias da AATR podem ser encontradas no nosso site: http://www.aatr.org.br.
Referências bibliográficas
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2002.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1997.
NUNESMAIA JR. Gil e ROCHA, José Cláudio. "Juristas Leigos: desencastelado o saber jurídico". In: Revista da CESE, 1998.
SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2000, 348p.
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito: o direito não estudado pela teoria jurídica moderna. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997.