Este pequeno artigo tem por objetivo a análise jurídica de um “pleito” muito cogitado ultimamente nas redes sociais, a saber: uma possível instituição de penas cruéis, a exemplo da prisão perpétua e da pena de morte.
Importante observar que as ponderações doravante delineadas levam em consideração a ordem jurídica posta, sem se vincular a discursos impregnados de paixão.
Pois bem, revolucionando o mundo da informação, a comunicação por meio da internet tem ganhado relevo na atualidade. Isto porque, em questão de segundos, o mundo inteiro toma nota de acontecimentos ocorridos nos mais remotos rincões de qualquer país, por mais desconhecido que seja.
Diuturnamente, é verdade, basta abrir a página do Facebook, por exemplo, para que se verifiquem cenas de “pancadarias”, assaltos, latrocínios, brigas, abuso de autoridade, enfim, o “cardápio” de delitos é recheado sobremodo.
Diante desses inúmeros delitos rotineiramente perpetrados[1], a população, sem rumo e sem prumo, iludida por discursos falaciosos e falidos, tem sido levada a acreditar que a instituição, por exemplo, da prisão perpétua ou mesmo, em ultima hipótese, da pena de morte, poderia conduzir a uma grande diminuição na criminalidade. O aspecto teleológico da medida, se boa ou ruim, entretanto, não será objeto de cotejo do presente texto, vez que o principal objetivo é saber se são juridicamente possíveis tais soluções.
Com efeito, quando da elaboração da Carta Política de 1988, o constituinte decidiu consignar, logo no art. 5º, XLVII, que não haveria no Brasil penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis. Seriam, deste modo, tais punições peremptoriamente vedadas.
Observe-se, contudo, que não é só. Ao vedar a imposições de tais reprimendas, o constituinte sabiamente as restringiu em lugar estratégico, vale dizer, consagrou a proibição no chamando núcleo duro intangível da Carta Maior. Destarte, por força do art. 60, §4º, IV, da Constituição Federal, não pode sequer ser objeto de emenda a proposta que se incline a abolir os direitos e garantias fundamentais.
Nesse contexto, não seria equivocado afirmar que, hoje, de acordo a sistemática adotada pela Bíblia Política de 88, seria impossível, mesmo que por emenda à Constituição, a instituição de penas cruéis, isso tudo tendo em vista o espirito humanitário da Carta Cidadã.
Vedam-se, portanto, em absoluto, até mesmo as propostas de emendas que versem sobre o tema. Isso decorre em virtude de ser o poder constituinte reformador limitado, condicionado e subordinado aos limites materiais, que, segundo Uadi Lammêgo Bulos, “são as vedações expressas que visam impedir reformas constitucionais contrárias à substância da constituição”[2].
Ainda com o auxílio de Bulos, impende mencionar o que vem a ser, de fato, essa “substância” da Carta Magna. Ora, em verdade, “Trata-se do cerne intangível da constituição, ou seja, do núcleo normativo que engloba matérias imprescindíveis à configuração de suas linhas-mestras, e, por isso, não pode ser modificado”.[3]
Nesse sentido, há quem argumente que não seria possível, a menos que se estabelecesse uma nova ordem constitucional, a modificação, para pior, das cláusulas pétreas[4].
Entrementes, não obstante o caráter irredutível das cláusulas pétreas, parece ser mais correto o posicionamento de que, nem mesmo uma nova ordem constitucional, vale dizer, sequer um poder constituinte originário seria capaz de reduzir tais garantias. Isto porque, partindo-se de uma postura constitucional mais avançada, haveria uma vedação ao retrocesso. Ora, o que não possui limites é arbitrário, portanto, inconcebível, inaceitável.
Admite-se, é certo, ser o poder constituinte originário ilimitado juridicamente, insubordinado, incondicionado, etc. Todavia, como bem salienta Pedro Lenza, ao citar J. H. Meirelles Teixeira:
Esta ausência de vinculação, note-se bem, é apenas de caráter jurídico-positivo, significando apenas que o poder constituinte não está ligado, em seu exercício, por normas jurídicas anteriores. Não significa, porém, e nem poderia significar, que o Poder Constituinte seja um poder arbitrário, absoluto, que não conheça quaisquer limitações. Ao contrário, tanto quanto a soberania nacional, da qual é apenas expressão máxima e primeira, está o Poder Constituinte limitado pelos grandes princípios do Bem Comum, do Direito Natural, da Moral, da Razão. Todos estes grandes princípios, estas grandes exigências ideais, que não são jurídico-positivas, devem ser respeitadas pelo Poder Constituinte, para que este se exerça legitimamente. O poder constituinte deve acatar, aqui, ‘a voz do reino dos ideais promulgados pela consciência jurídica.[5]
Destarte, ser ilimitado juridicamente nada tem a ver com ser ilimitado em absoluto. Uma coisa é não dever obediência a uma norma jurídica anterior; outra, bem diferente, é não ter de se subordinar a nada. De fato, nem mesmo o Leviatã de Hobbes é poderoso desta maneira.
Em arremate, consigna-se, através dos argumentos trabalhados, que é verdadeiramente impossível a instituição de penas cruéis. Assim, seja por emenda, seja, ainda, por uma nova constituição, não parece haver mais lugar para o despotismo. Todo poder só é legitimo se acompanhado de limites, do contrário, o destino é a barbárie.
Ressalte-se, por derradeiro, que, conforme ensinava Beccaria, a diminuição da criminalidade não está atrelada à exasperação das penas, mas, sim, à certeza da punição.
[1] Durkheim, em “As Regras do Método Sociológico”, explica que a criminalidade é algo normal, se não em escalas exacerbadas. Para ele, “classificar o crime entre os fenômenos de sociologia normal, não é só dizer que é um fenômeno inevitável, ainda que lastimável, devido à incorrigível maldade dos homens; é afirmar que é um fator de saúde pública, uma parte integrante de qualquer sociedade sã. As regras do método sociológico, Martin Claret, 2008. p.83.
[2] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 411.
[3] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 412.
[4] Diz-se modificação para pior, visto que se houver propostas de emendas no sentido de aumentar os direitos e garantias fundamentais, serão, conforme doutrina e jurisprudência pacificas, tranquilamente aceitas.
[5] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, 17 ed, rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. P. 201.