6.A TEORIA SOCIAL DE JOHN RAWLS
6.1.OS PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA SOCIAL
A teoria da justiça de John Ralws, contida na obra "Uma teoria da justiça", é uma das mais importantes desenvolvidas no século XX. Pretende Rawls "elaborar uma teoria da justiça que seja uma alternativa para essas doutrinas que há muito tempo dominam a nossa tradição filosófica – a utilitária e a intuicionista".[23]
A sociedade é vista por Rawls, como uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que, em suas relações, reconhecem a existência de regras de condutas como obrigatórias, as quais, na maioria das vezes, são cumpridas e obedecidas, especificando um sistema de cooperação social para realizar o bem comum.
Nesse contexto, surgem tanto identidade de interesses como conflito de interesses entre as pessoas, pois estas podem acordar ou discordar pelos mais variados motivos, quanto às formas de repartição dos benefícios e dos ônus gerados no convívio social.
É precisamente aí que desempenham seu papel os princípios da justiça social. Nas palavras de Rawls:
"Exige-se um conjunto de princípios para escolher entre várias formas de ordenação social que determinam essa divisão de vantagens e para selar um acordo sobre as partes distributivas adequadas. Esses princípios são os princípios da justiça social: eles fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social".[24]
Para Rawls, são dois os princípios da justiça social:
"Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos."[25]
Tais princípios, segundo Rawls, aplicam-se à estrutura básica da sociedade, presidem a atribuição de direitos e deveres e regem as vantagens sociais e econômicas advindas da cooperação social.
6.2.A JUSTIÇA EM JOHN RAWLS
Rawls observa ainda que os dois princípios são um caso especial de uma concepção mais geral da justiça assim expressa:
"Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima - devem ser distribuídos igualitariamente, a não ser que uma distribuição desigual de um ou de todos esses valores traga vantagens para todos. [26]
Vê-se, pois, que os princípios de justiça social têm um nítido caráter "substancial", e não meramente "formal", na teoria de Rawls. Logo no início de sua obra, ele é bem claro quando sustenta que o que o preocupa é a justiça verificada na atribuição de direitos e liberdades fundamentais às pessoas, assim como a existência real da igualdade de oportunidades econômicas e de condições sociais nos diversos segmentos da sociedade.
Assim, o objeto primário da justiça, para Rawls, "é a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social."[27]
Segundo Rawls, os princípios de justiça social, que regulam a escolha de uma constituição política, devem ser aplicados em primeiro lugar às profundas e difusas desigualdades sociais, supostamente inevitáveis na estrutura básica de qualquer sociedade.
Em suma, para Rawls, a concepção de justiça apresentada na sua obra consiste na "justiça como eqüidade" ("justice as fairness"), significando que é uma justiça estabelecida numa posição inicial de perfeita eqüidade entre as pessoas, e cujas idéias e objetivos centrais constituem uma concepção para uma democracia constitucional.
Assevera Rawls:
"Minha esperança é a de que a justiça como eqüidade pareça razoável e útil, mesmo que não seja totalmente convincente, para uma grande gama de orientações políticas ponderadas, e portanto expresse uma parte essencial do núcleo comum da tradição democrática."[28]
7.CONCLUSÃO
Ao realizar este estudo, optamos por analisar as teorias da justiça de Hans Kelsen, Jürgen Habermas, Chaïm Perelman e John Rawls porque, além da sua inegável atualidade, constituem abordagens racionais de temas fundamentais da Filosofia do Direito.
Kelsen demonstra, no seu profundo exame das diversas concepções de justiça apresentadas pelo pensamento clássico e pelo pensamento jusnaturalista, que quase sempre os jusfilósofos definem justiça de uma forma não racional ou metafísica, apelando para uma idéia de bem inteligível pela razão e de uma natureza dotada de poder normativo, com uma espécie de legislador.
Kelsen considera a justiça como a felicidade social, a felicidade garantida por uma ordem justa – a que regula o comportamento dos homens de modo a contentar a todos. A aspiração da justiça é a eterna aspiração da felicidade, que o homem não pode encontrar sozinho e, para tanto, procura-a na sociedade. A felicidade social é denominada justiça.
Nesse contexto, Habermas deixa claro que, nas sociedades contemporâneas pós-metafísicas, torna-se inviável a fundamentação do Direito numa suposta ordem natural, numa dimensão ética ou numa moral metafísica. É através de uma concepção discursiva e procedimental que se pode construir uma presunção de legitimidade e racionalidade de conteúdo de uma norma; é pelo discurso que os cidadãos participam e promovem a mobilização de suas energias comunicativas em prol de um entendimento mútuo. O princípio do discurso, após assumir forma jurídica, transforma-se em princípio da democracia.
Habermas alerta, ainda, que, nesta crise da razão prática, sejam instauradas sua negação e sua substituição pela razão comunicativa.
Esse é o sentido da reviravolta operada pela teoria discursiva do Direito: a recusa da normatividade imediata da razão prática e a assunção da normatividade mediata da razão comunicativa.
A partir dessas considerações, torna-se assim o Direito fruto da emanação da opinião e da vontade discursiva dos cidadãos livres e iguais. A institucionalização das aspirações e das opiniões das pessoas, na modernidade, se dá através da positivação do Direito.
Habermas, na sua teoria do agir comunicativo, retoma o caminho de uma teoria crítica da sociedade, com a mudança do paradigma da razão prática para a razão comunicativa.
Perelman rejeita também a concepção de um bem supremo presidido por uma instância metafísica, bem como a crença inabalável na razão prática. Propõe-se a examinar, a partir da lógica formal, as seis concepções concretas da justiça, para daí extrair um substrato comum a todas elas. Esse substrato comum passa a ser seu conceito de justiça formal vinculada à igualdade.
A análise de Perelman leva à conclusão de que todo sistema de justiça é fundamentado nos princípios que estão na sua base e seu valor é arbitrário e logicamente indeterminado. Assim, observa-se que todo sistema de justiça dependerá de outros valores que não o valor justiça. Todavia, a justiça possui um valor próprio, que resulta da necessidade racional de coerência e regularidade das normas que compõem o sistema. No interior deste, a justiça tem um sentido bem definido: o de evitar qualquer arbitrariedade nas regras, qualquer irregularidade da ação.
Finalmente, Rawls postula uma teoria de justiça que seja uma alternativa para as doutrinas clássicas – a utilitarista e a intuicionista – e leve a um nível mais alto de abstração a teoria do contrato social tal qual se encontra m Locke, Rousseau e Kant.
Entretanto, o consenso original concebido por Rawls não é o que inaugura a sociedade civil e define uma forma particular de governo. São os princípios de justiça social, propostos por Rawls na sua doutrina e aplicáveis às desigualdades existentes na estrutura básica de qualquer sociedade, que constituem o objeto do consenso original.
O autor norte-americano recupera a noção de contrato social, que é, originariamente, uma categoria jusnaturalista, para apresentá-la não mais como um acordo entre os homens para a criação de uma sociedade política, mas como uma formulação racional capaz de renortear as normas sociais, a partir do conceito de justiça.
É precisamente o conceito de "justiça como eqüidade" ("justice as fairness") que vai caracterizar a origem, a natureza e a função dos princípios de justiça social propostos por Rawls.
A teoria da justiça de Rawls busca integrar as liberdades civis e políticas com os direitos econômicos, sociais e culturais. Transforma-se em modelo para os governos social-democratas que se instalaram no mundo ocidental. Entre o liberalismo extremado e o socialismo ortodoxo, Rawls propõe uma alternativa intermediária, a que denomina "justiça como eqüidade" ("justice as fairness").
Quanto à importância e à viabilidade dessas teorias, mormente a discursiva de Habermas e a social de Rawls, conquanto sejam passíveis de críticas, do ponto de vista metodológico e de conteúdo, constituem instrumentos sobremodo úteis para se avaliar a legitimidade da dominação política, econômica e social exercida nas sociedades concretas modernas.
Destarte, os princípios de justiça social, propostos por Rawls, constituem, sem dúvida, instrumentos robustos para uma análise da estrutura básica de qualquer sociedade concreta, quanto ao conceito do justo e ao conceito do igualitário, considerando o caráter substancial e não meramente formalista que Rawls confere a esses princípios.
BIBLIOGRAFIA
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Notas
(1) KELSEN Hans. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pág. 12.
(2) KELSEN, Hans, ob. cit., pág. 20.
(3) KELSEN, Hans, ob. cit., pág. 21.
(4) KELSEN, Hans, ob. cit., pág. 21.
(5) KELSEN, Hans, ob. cit., pág. 22.
(6) KELSEN, Hans, ob. cit., pág. 22.
(7) KELSEN, Hans, ob. cit., pág. 19.
(8) KELSEN, Hans, ob. cit., pág. 2.
(9) KELSEN, Hans, ob. cit., pág. 2.
(10) KELSEN, Hans, ob. cit., pág. 4.
(11) KELSEN, Hans, ob. cit., pág. 4.
(12) MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Jürgen Habermas. Belo Horizonte: UFMG/FAFICH, 1999, pág.150.
(13) HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, t. I, págs. 60-61.
(14) Segundo Marciano Seabra de Godoi, "a razão comunicativa proposta por Habermas difere substancialmente da razão prática sustentada anteriormente pela filosofia do direito ou pela filosofia da história. Enquanto a razão prática buscava ser uma fonte de prescrições para a atuação social do sujeito individual ou mesmo do Estado, a razão comunicativa busca somente definir as condições procedimentais do discurso sob as quais os sujeitos sociais podem chegar a um entendimento legítimo que gere integração social e expectativas compartilhadas". GODOI, Marciano Seabra de. Justiça, igualdade e direito tributário. São Paulo: Dialética, 1999, pág. 67.
(15) HABERMAS, Jürgen, ob. cit., t. I, pág. 19.
(16) HABERMAS, Jürgen, ob. cit., t. I, pág. 19.
(17) PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pág. 9
(18) PERELMAN, Chaïm, ob. cit., págs. 12-13.
(19) PERELMAN, Chaïm, ob. cit., págs. 18-19.
(20) PERELMAN, Chaim, ob. cit., pág. 19.
(21) PERELMAN, Chaïm, ob. cit., pág. 19.
(22) PERELMAN, Chaïm, ob. cit., pág. 63.
(23) RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pág. 3.
(24) RAWLS, John, ob. cit., pág. 5.
(25) RAWLS, John., ob. cit., pág. 64.
(26) RAWLS, John., ob. cit., pág. 66.
(27) RAWLS, John., ob. cit., pág. 8.
(28) RAWLS, John., ob. cit., págs XIII e XIV (Prefácio à edição brasileira).