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O homem e a dignidade da pessoa humana na Grécia clássica

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Agenda 12/10/2016 às 10:10

Este artigo aborda a dignidade da pessoa humana, fazendo a análise com um olhar do homem e da humanidade na sociedade da Grécia clássica entre os séculos VI e III a.C.

INTRODUÇÃO

Os sistemas políticos atuais ocidentais são fundamentados na Dignidade da Pessoa Humana. A Dignidade da Pessoa Humana é fundamento da Constituição da República brasileira, tendo em Kant, filósofo do século XVIII, um sustentáculo filosófico.

O confronto da filosofia, sistema político e do reconhecimento do valor do homem na Grécia Clássica e da Dignidade da Pessoa Humana enquanto conceito cunhado na filosofia da Idade Moderna permitirá avaliar a compatibilidade da filosofia e sistema político grego com a Dignidade da Pessoa Humana consoante o entendimento hodierno de Dignidade da Pessoa Humana, nada obstante serem temas filosóficos tratados em tempos históricos díspares.

Far-se-á, portanto, uma leitura da pólis grega sob o conceito jurídico e filosófico de Dignidade da Pessoa Humana, desenvolvido na Idade Média, cunhado na filosofia de Kant na idade moderna, aperfeiçoado e difundido nos ordenamentos jurídicos e filósofos dos séculos seguintes.


DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA GRÉCIA CLÁSSICA.

Há registros escritos da história humana que datam de 20 mil anos atrás. Mas especificamente há aproximadamente 2.400 anos, no sul da Grécia, houve circunstâncias que culminaram no desenvolvimento de um tipo de pensamento próprio – a Filosofia, que é estudada hodiernamente a partir de pensadores que investigaram a natureza e buscaram uma arkhé (ἀρχή; origem) que explicasse ou justificasse o cosmo.

Tais pensadores, que prescrutaram tal fundamento que perpassasse a natureza e explicasse sua origem e fim, foram chamados pré-socráticos. Tal organização histórico-científica já denota tamanha a importância de Sócrates, filósofo que os sucedeu e viveu no século V a.C. Platão, o seu principal discípulo, deixou-nos obras que são estudadas pelas gerações que perpassaram desde o nascedouro da filosofia.

A filosofia já mudava o foco de estudo. Em Platão temos a investigação sobre a ontologia, o ser, a essência dos objetos estudados. O estudo filosófico voltava-se para o homem e seu meio – a cidade - pólis grega.

Sócrates, registrado por Platão como personagem em diálogos, vislumbra que os publicamente conhecidos como sábios à época na verdade não sabiam a essência dos objetos de estudo tidos por simples e sem questionamentos na pólis grega. Busca a filosofia no século V a.C. na Grécia investigar a essência do homem, que naquela época tinha como traço indissociável o Logos.

O filósofo investigou e o homem ainda analisa a Natureza e a toma como objeto de estudo para desvendar as suas leis. De outro lado, quando o homem cria, inova no mundo, ele implementa a cultura. Platão foi um criador, um inovador. Suas obras carreiam criações ímpares na história humana e inovaram na criação da filosofia como ela existe até hoje.

A obra A República é tida como a mais importante da bibliografia platônica, onde foi desenvolvida a Teoria das Idéias ou Teoria das Formas. Werner Jaeger diz que “O problema para o qual desde o primeiro instante se orienta o pensamento de Platão é o problema do Estado.” (JAEGER, 2001, P. 749).

Para analisar a ontologia e a gnosiologia do bem e da justiça, na obra A República, “a mais arquitetada de suas obras” (JAEGER, 2001), Platão perpassa pela construção de um sistema político estatal. O sistema político platônico, primeiro elaborado na filosofia, tem a chefia de governo e de Estado sob responsabilidade dos filósofos, uma aristocracia especialmente caracterizada pelos filósofos no poder.

Platão afirma que a solução para os males humanos e o meio para se atingir a justiça perpassa por um sistema político sob poder dos puros e autênticos filósofos, traçando dialeticamente seus elementos na obra A República.

Na Grécia antiga, entre os séculos VI e III a.C., nada obstante a busca pelas essências de objetos de conhecimento, sob ótica idealista, a filosofia grega também teve como marca o humanismo. A busca pelas essências de justiça, do bem, do belo, do homem, demonstra estar o ser humano no cerne e indissociável desses objetos de estudo.

É na busca pelas essências, na ontologia, que podemos questionar acerca da essência de ser humano. E tal questionamento, que permeava a filosofia grega, ainda é objeto das ciência sociais no século XXI.

Quais características no homem são essenciais, ínsitas e não contingentes? Há homens altos, magros, corajosos, carecas, perspicazes ou lentos, mas há também uma essência humana. Na Grécia, na busca pelas essências, não restou resolvida a questão de qual é a nota essencial humana. E quais são os direitos atinentes a esse ser humano.

Aristóteles, em “A Política” aponta a virtude do meio termo entre dois extremos que denota o homem, em essência um animal político que tem como fim a felicidade. “Aristóteles designa o Homem como ser político e, assim, distingue-o do animal pela sua qualidade de cidadão”. (JAEGER, 2013, p. 146).

Em investigação histórica, podemos aferir a existência e de que maneira se via o Homem na Grécia antiga, para daí extrair quais direitos permeavam a essência humana – os direitos humanos. No berço da filosofia e do conhecimento ocidental como conhecemos não havia menção expressa à “Dignidade da Pessoa Humana” ou a “Direitos Humanos”, mas podemos extrair dos textos políticos da época alguns conceitos e reconhecimento de certa forma de direitos humanos na Grécia.

Antes mesmo do florescimento da filosofia e da forma de conhecimento que temos até a contemporaneidade, através dos poemas em Homero e Hesíodo pode-se extrair de que forma os direitos humanos permeavam a sociedade grega dos séculos VI e Va.C. Homero, autor de Ilíada e Odisséia, pode ser considerado “como o primeiro e maior criador e modelador da humanidade grega” (JAEGER, 2013, p. 61).

Através dos poemas que o conhecimento, cultura, a educação, os modos de vida,  a Paideia era transmitida entre gerações na sociedade grega. Na poesia vislumbrava-se “uma imagem do humano capaz de se tornar uma obrigação e um dever.”. (JAEGER, 2013, p. 62). A poesia grega foi única. Jaeger conclui que

Nenhuma épica de povo nenhum exprimiu de modo tão completo e tão sublime como a dos gregos aquilo que, apesar de todos os “progressos” burgueses, há de imperecível na fase heróica da existência humana: o seu sentido universal do destino e verdade permanente da vida  (JAEGER, 2013, p. 64)

Os poemas da Grécia antiga não são tão somente arte, mas o registro histórico da sociedade da época, o legado em documento escrito para compreensão aquele povo, “não é um simples divulgador impessoal da glória do passado {...] é um poeta no sentido pleno da palavra: intérprete e criador da tradição” (JAEGER, 2013, p. 72).

A realidade era retratada e exposta pelos homens através dos mitos, dos poemas, que expunham a realidade interpretada à época. O mito não reflete debate racional, mas intuição, explicação imagética do cosmo, de toda a realidade vivida pelo homem. A poesia explicava por imagens o que a poesia posteriormente explicou por conceitos.

A poesia, antes do nascimento da filosofia, registrava a explicação do cosmos; do universo; do todo. Nessa explicação primeira está o registro do homem e seus direitos, da sociedade e da cultura nos séculos VII a V a.C.

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Em tal compreensão está inscrita a questão dos direitos humanos ou da relação entre o poder do Estado e tais direitos ínsitos ao ser humano. “A tragédia grega, muitos séculos antes da psicanálise, representou a primeira grande introspecção nos subterrâneos da alma humana”. (COMPARATO, 2013, p. 22).

No poeta grego Homero, havia uma poesia dos nobres. No poeta Hesíodo, percebemos uma filosofia mais ligada ao homem do campo, permitindo extrair, no mesmo período histórico, dados divergentes dos direitos humanos na Grécia pré-filosófica.

Em Homero, poeta do século VIII a.C., homem e natureza estavam unidos, “forças morais são para ele tão reais como as forças físicas” (JAEGER, 2013, p. 77), sendo ainda prematura uma análise sobre supremacia do valor do ser humano. Na obra poética de Homero, “as últimas fronteiras da ética não são convenções do mero dever, mas leis do ser” (JAEGER, 2013, p. 77), demonstrando ainda um liame entre natureza e homem sem que este tenha m valor ou consideração diferenciados.

Ademais, inseparável a poética homérica com as forças dos deuses, “que verdadeiramente agem nas ações e padecimentos humanos (...) qualquer ação deve ser encarada ao mesmo tempo sob o ponto de vista humano e sob o ponto de vista divino” (idem, p. 79).

Nada obstante a pujança cultural da civilização grega, observamos pela poética homérica que não havia ali um homem independente de forças religiosas, que veio a surgir somente após o século XVI, na era moderna, na tentativa de desvinculação da religião oficial da idade média.

Cabe destacar que Homero “não é autor moderno que considera tudo simplesmente no seu desenvolvimento interno, como experiência ou fenômeno de uma consciência humana” (JAEGER, 2013, p. 78). Mas, sobre o valor do homem na Grécia, há “o contraste entre a concepção do mundo puramente teomórfica dos povos orientais, para a qual só Deus age e o Homem é apenas o objeto de sua ação, e o caráter antropocêntrico do pensamento grego” (JAEGER, 2013, p. 80).

Hesíodo, autor de “O trabalho e os Dias”, viveu no século VIII a.C. e escreveu sobre a vida do campo na Grécia, revelando a vida do homem simples e do campesinato. Nos revelou uma Grécia diferente da apresentada por Homero, dos “camponeses rudes e toscos” (JAEGER, 2013, p. 85).

Da narrativa em Hesíodo, pode-se concluir:

Não existe a escravatura e nada indica, mesmo remotamente, que aqueles camponeses e pastores que viviam do trabalho das suas mãos descendessem de uma raça subjugada na época das grandes migrações, como acontecia na Lacônia. Todos os dias reuniam-se no mercado (...) para discutirem os seus assuntos públicos e privados. Criticavam livremente a conduta dos seus concidadãos e até dos altos senhores, e ´o que o povo diz´ tinha importância decisiva para o prestígio e a prosperidade do homem comum. (JAEGER, 2013, p. 86).

O Homem é descrito em Hesíodo como em unidade com o divino e com a phisys. Suas ações, e desígnios decorrem do curso imutável da natureza e dos laços com os Deuses, não havendo um homem livre dessas amarras.

A tragédia grega, no século IV a.C., traz ainda na obra de Sófocles a personagem Antígona, filha do rei Creonte. O rei Creonde determinara que seu filho Polinices, irmão de Antígona, não tivesse um enterro, sendo deixado a esmo, para que aves e cães o dilacerassem após sua morte.

Antígona entende que a ordem é desumana e, mesmo com risco a sua própria vida, promove o enterro do irmão. Estariam as leis de Creonte dissociadas da lei divina ou dos direitos humanos independentemente do Estado.

Na tragédia grega de Sófocles

se revela uma alta valoração do Homem (...) essa tendência antropocêntrica do espírito ático que dá lugar ao nascimento de ´humanidade´, não no sentido do amor humano pelos outros membros da comunidade, que os gregos chamaram filantropia, mas sim no sentido do conhecimento da verdadeira e essencial forma humana. (JAEGER, 2013, p. 328)

Ainda na tragédia de Sófocles é “especialmente significativo que seja a primeira vez que a mulher aparece como representante do humano, ao lado do homem, com idêntica dignidade.” (JAEGER, 2013, p. 328)

Quando passamos ao nascedouro da filosofia, observamos que os filósofos pré-socráticos tiveram uma preocupação em explicar a natureza e a origem do cosmos. “Devido a essa visão totalizadora da realizada, nos temos mais antigos da Grécia não se distinguia o mundo antropológico o mundo cosmológico, razão pela qual as relações sociais eram consideradas no contexto das relações naturais” (BARREIRA FILHO, 2002, p. 162).

Em Platão ou Aristóteles vemos claramente uma mudança de viés para o homem com a sobreposição do político sobre o individual, sendo o homem meio para o atingimento dos objetivos da coletividade no seio estatal.

Não havia uma só visão de sociedade em toda a Grécia. Enquanto em Platão e Aristóteles, registraram em suas filosofias o Estado em supremacia ante o individualismo, na região Jônia, há um objetivo de “libertar as forças individuais, inclusive no campo político” (JAEGER, 2013, p. 131).

Ademais, “nenhuma filosofia vive da pura razão. É apenas a forma conceitual e sublimada da cultura e da civilização, tais como se desenrolam na história” (JAEGER, 2013, p. 140). O estudo da filosofia de grandes filósofos reflete seu momento histórico, perpassando a cultura na qual vivia, refletindo o tratamento dos direitos humanos como reflexo da Dignidade da Pessoa Humana.

Destaca-se na Jônia, que o Estado não era “o fim último, como em Esparta e Atenas” (JAEGER, 2013, p. 131). Na Grécia já se observava um conjunto de seres humanos que buscava por justiça, inclusive com luta de classes, abuso político, censura e luta por dikê, pelo direito, por justiça (JAEGER, 2013).

Ainda sobre a justiça na Jônia, é demonstrado que

[...] a série de testemunhos que exaltam a justiça como fundamento da sociedade humana estende-se, na literatura jônica, desde os tempos primitivos da epopéia até Heráclito, através de Arquíloco e Anaximandro, Essa elevada estima pelo direito por parte dos poetas e dos filósofos não precede a realidade, como se poderia pensar. Pelo contrário, é apenas o reflexo da importância fundamental que aqueles progressos deviam ter na vida pública daqueles tempos, isto é, desde o século VIII até o início do século VI. (JAEGER, 2013, p. 133)

O termo dikê na Grécia pode ser traduzido como “dar a cada um o que lhe é devido [...] o processo, a decisão e a pena.” (JAEGER, 2013, p. 135), ratificando um conflito, desde os primórdios da civilização, entre o poder estatal e a liberdade e justiça com o ser humano.

Havia dois termos para expor a justiça entre os homens: dikê e thêmis.  Aquele tendo liame com a justiça substancial, material, efetiva entre os homens e este com a justiça formal, a elaboração de leis e sua aplicação pelo poder dominante, podendo ser autoritária e não realizar efetivamente a justiça igualitária. O exercício da thêmis poderia não resultar efetivamente na dikê.

Thêmis “refere-se principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade e à sua validade” (JAEGER, 2013, p. 135). O povo grego buscava mais por uma justiça material dikê que a autoridade e aplicação de leis.  A justiça material vai ao encontro do tratamento isonômico entre todos os seres humanos, respeitando-se o valor único que está ínsito em cada homem.

Esse matiz de igualdade na palavra dikê mantém-se no pensamento grego através de todos os tempos. Depende dele a própria doutrina filosófica do Estado dos séculos seguintes, a qual trata apenas de conseguir uma nova elaboração do conceito de igualdade, que, na versão mecanizada em que subsistia no Estado jurídico democrático, opunha-s abruptamente à doutrina aristocrática de Platão e Aristóteles sobre a desigualdade dos homens. (JAEGER, 2013, p. 135)

Em categorização pós Revolução Francesa, a igualdade é a mais básica unidade que os compõem os direitos humanos. Muitos séculos antes, na Grécia antiga, “a exigência de um direito igualitário constitui a mais alta meta” (JAEGER, 2013, p. 136).

A democracia na Grécia foi fruto da luta do povo pela dikê, pela isonomia efetiva dos homens. Trata-se de uma revolução, onde o poder na mão de um só é transferido ao poder do povo, que dita os rumos políticos. O povo governado pelo próprio povo, que ditava seus desígnios. A condição humana se confunde com o homem na polis. Ser Homem e ter dignidade é estar na polis grega. Sabe-se sobre a imperfeição daquela democracia, da qual participavam apenas uma minoria da população das cidades-estado. Tratava-se de uma democracia extremamente segregadora e aristocrática. A supremacia do Estado ante o cidadão também era marco daquela sociedade. Mas cabe observar que

A antiga cidade-Estado era para os cidadãos a garantia de todos os princípios ideais da vida (...). Tem também o simples significado de ´viver´. É que ambas as coisas eram uma só. Em tempo algum o Estado se identificou tanto com a dignidade e o valor do Homem. (JAEGER, 2013, p. 146)

A lei escrita representa uma evolução na sociedade grega. “Direito escrito era direito igual para todos, grandes e pequenos. Hoje, como outrora, podem continuar a ser os nobres, e não os homens do povo, os juízes. Mas estão submetidos no futuro, nas suas decisões, às normas estabelecidas na dikê” (JAEGER, 2013, p. 134).

O homem justo, na Grécia, era “aquele que obedece à lei e se regula pelas disposições dela” (JAEGER, 2013, p. 138). Em Platão e Aristóteles temos uma configuração estatal na qual os homens não são iguais. Os seres humanos eram classificados em estratos extremamente díspares e o relacionamento com outros homens e com o Estado dependia de tais estratos sociais.

Em felicidade humanística ímpar, há frase atribuída a Sócrates que diz: “Não sou nem ateniense, nem grego, mas sim um cidadão do mundo”. Teríamos na frase uma acepção de homem desvinculada da polis, o que seria contraditório à essência humana em Arístóteles, na qual o traço essencial ao humano é seu vínculo à polis grega.

Mesmo havendo dúvida sobre a autenticidade do excerto acima, a análise de seu teor nos remete ao valor daquele que afirma não somente como elemento de um coletivo, mas como ser único como todos os outros no mundo. Tal entendimento é o extremo oposto do entendimento do homem na Grécia antiga, como essencialmente ínsito da polis e cidadão da cidade-estado.

A filosofia estóica do século II a.C também tratou do ser humano e de sua dignidade como marco de sua essência. O chamado estoicismo:

organizou-se em torno de algumas ideias centrais, como a unidade moral do ser humano e a dignidade do homem, considerado filho de Zeus e possuidor, em conseqüência, de direitos inatos e iguais em todas as partes do mundo, não obstante as inúmeras diferenças individuais e grupais (COMPARATO, 2013, p. 28)

Os sofistas, sobejamente conhecidos educadores gregos, nada obstante serem muito criticados pelos filósofos, especificamente por Platão, em razão de não ensinarem verdades, mas apenas por serem retóricos, possuem excertos que registram o valor supremo do ser humano.

Mesmo nos tão criticados sofistas da Grécia clássica, em uma democracia em que os “cidadãos” representavam apenas uma mínima percentagem da população grega, JAEGER cita “o sofista ateniense Antifone no seu livro A verdade, de que recentemente se acharam numerosos fragmentos” através do trecho “Bárbaros e gregos, temos todos a mesma natureza, em todos os aspectos” (JAEGER, 2013, p. 380).

Entre os sofistas:

Antifon proclamou a igualdade natural entre os homens, protestando contra as distinções legais baseadas no nascimento (nobre e inferior) e na raça (bárbaros e gregos). De forma semelhante, Alcimadas protestou contra a escravidão afirmando que Deus fez todos os homens livres, e a natureza não fez nenhum escravo.  (BARREIRA FILHO, 2002, p. 163)

Sócrates também mudou o eixo do pensar filosófico, da physis para o logos, da natureza e cosmo ao homem e a dialética, mudança que revolucionou o saber e permanece no conhecimento científico até o século XXI, sendo repensado por filósofos como Descartes e Kant na modernidade.

Platão tem em A República sua obra central e seu pensamento é orientado ao Estado (JAEGER, 2013, p. 755). Mas o “Estado de Platão versa, em última análise, sobre a alma do Homem” (JAEGER, 2013, p. 757).

No Estado ideal platônico há “necessidade indeclinável da divisão do trabalho profissional (...) relacionado com a própria essência da Arete, a qual consiste na perfeição do conjunto e de cada uma das partes da obra realizada por cada ser.” (JAEGER, 2013, p. 769).

O conceito e o problema da justiça perpassam “A República”, de Platão. O papel do ser humano, visto anteriormente com elo inquebrantável com a natureza e vontades divinas, aparece em Platão “na premissa da autodeterminação moral do próprio eu sobre a base do conhecimento do bem” (JAEGER, 2013, p. 784). Há uma libertação do homem das forças naturais e divinas.

Para plenitude do Estado, Platão limitava direitos hoje considerados inafastáveis da Dignidade Humana. A prole na República proposta seria comum. Além da prole, as esposas também seriam divididas entre os homens da cidade ideal platônica. Os vínculos familiares paternos e maternos seriam afastados para que os filhos fossem educados na Polis como iguais. Os guardiões da Polis seriam educados para tal fim desde a mais tenra idade.

A “tentativa de pôr o indivíduo permanentemente a serviço do Estado tem necessariamente de originar uma série de conflitos com a vida familiar” (JAEGER, 2013, p. 821). A mulher não detém a mesma dignidade do homem na República platônica, “destinada pela natureza exclusivamente a conceber e a criar filhos e a governar a casa” (JAEGER, 2013, p. 822).

Platão estava convencido que em seu modelo o homem alcançaria “a forma suprema da virtude e da felicidade humanas” (JAEGER, 2013, p. 833). A felicidade na Grécia tinha um sentido diverso da felicidade após a idade moderna. Em Platão e Aristóteles a felicidade humana é finalidade e indissociável do Estado. E para o atingimento deste fim “tudo depende da organização da pólis” (COMPARATO, 2013, p. 119).

Quanto ao cotejo do Homem e do Estado, o direcionamento da preocupação de  Platão ao Estado é mais um caracter da cultura da época que um desprezo pela Dignidade do Homem.

Para os gregos do período clássico ou mesmo para os de todo o período da cultura da polis era, ao contrário, quase uma tautologia a convicção de que o Estado era a única fonte das normas morais; e era impossível conceber a existência de outra ética que não a ética do Estado, isto é, as leis da comunidade em que o Homem vive. (JAEGER, 2013, p. 379)

Werner Jaeger diz que “O problema para o qual desde o primeiro instante se orienta o pensamento de Platão é o problema do Estado.” (JAEGER, 2013. P. 755). Para analisar a ontologia e a gnosiologia do bem e da justiça, na obra A República, “a mais arquitetada de suas obras” (JAEGER, 2013, p. 756), Platão perpassa pela construção de um sistema político estatal nominado de Sofocracia, termo que une “sophrosine”: virtude da moderação e “cracia” – sufixo de origem grega que significa poder.

 O sistema político platônico, primeiro elaborado na filosofia, tem a chefia de governo e de Estado sob responsabilidade dos filósofos, uma aristocracia especialmente caracterizada pelos filósofos no poder. Platão afirma que a solução para os males humanos e o meio para se atingir a justiça perpassa por um sistema político sob poder dos puros e autênticos filósofos – a sofocracia – traçando dialeticamente seus elementos na obra A República.

 Por outro lado, para a formação desse Estado proposto, há uma seleção racial e educação segregadora para estes seres humanos melhores e mais aptos a governar o Estado, enquanto “os incapazes e os indignos devem ser degredados” (JAEGER, 2013, p. 827).  Mas os selecionados para a gestão da Polis sofreriam severas restrições no estado Platônico. Um exemplo é o veto ao “direito de possuir qualquer coisa e ter vida privada (...) também abolir para eles a instituição do matrimônio” (JAEGER, 2013, p. 828). Há também restrição total a propriedade de bens. O governante tinha afetada sobremaneira sua dignidade em prol da coletividade.

 Não seria outro o objetivo de Platão em seu Estado ideal, senão a felicidade humana. No estado de Platão, o filósofo “estava convencido de que o Homem alcançaria nele a forma suprema da virtude e da felicidade humanas” (JAEGER, 2013, p. 833). Jaeger muito bem sintetiza “A República” quando afirma que “Platão pediu-nos que o acompanhássemos na descoberta do Estado, e em vez dele descobrimos o Homem” (JAEGER, 2013, p. 983).

 A maior das virtudes e a essência da felicidade são encontradas no homem justo. A justiça é objeto de toda “A República”. E é no Estado que o Homem se realiza. “Quem preza a injustiça dá o comando à besta selvagem e multicéfala que existe em nós” (JAEGER, 2013, p. 981). O Estado é reflexo do Homem e este daquele.

 Aristóteles pensou, em “A Política” a condição humana e a Dignidade da Pessoa Humana quando comparou, pensando a quem conceder a governança da pólis, o homem livre ao escravo no século IIa.C.

Em primeiro lugar, deve-se procurar saber se um escravo pode ter, além de suas qualidades puramente corporais, apropriadas para o serviço, alguma virtude superior, como, por exemplo, a moderação, a coragem, a justiça ou qualquer outro hábito ou disposição semelhantes. Tanto a resposta negativa quanto a afirmativa trazem dificuldades. Com efeito, se os escravos são capazes de alguma virtude superior, que diferença haveria entre eles e os homens livres? Por outro lado, sendo eles homens que compartilham do princípio racional, seria absurdo dizer que não podem ter virtudes.

A mesma dificuldade se apresenta na questão relativa às mulheres e às crianças: são suscetíveis de virtudes? (ARISTÓTELES, 2007, p. 75)

O excerto demonstra reflexão que apenas ecoou em textos legais e na práxis contemporânea após o século XIX, sendo exemplo da riqueza dos pensadores da Grécia clássica sobre a Dignidade da Pessoa Humana. Mas não se pode olvidar que na mesma obra, Aristóteles conclui que “alguns homens são por natureza feitos para ser livres e outros para ser escravos” (ARISTÓTELES, 2001, P. 62), demonstrando que muito havia por amadurecer a teoria da Dignidade da Pessoa Humana. A igualdade entre todos os homens teve na Idade Média um impulso inigualável.

A Dignidade da Pessoa Humana continua como conceito historicamente construído e um olhar sobre o homem e o reconhecimento de seu valor a sociedade grega, nascedouro da filosofia, permitiu refletir e reforçar o conceito jurídico atual e sua constante (re)construção em um  mundo pós-moderno em constante (trans)formação.

Sobre o autor
Alan Robson Alexandrino Ramos

Doutor em Ciências Ambientais. Mestre em Sociedade e Fronteiras. Especialista em Segurança Pública e Cidadania, todos pela Universidade Federal de Roraima. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará e Bacharel em Filosofia pela Unisul. Delegado de Polícia Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Alan Robson Alexandrino. O homem e a dignidade da pessoa humana na Grécia clássica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4851, 12 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44042. Acesso em: 27 dez. 2024.

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