Sumário: 1. Introdução. 2. A Emenda Constitucional nº 29/2000.3. Imposto real e pessoal. 4. Repensando as jurisprudências.
1. Introdução.
No página da tributário.net, recentemente, foi veiculada interessante decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, onde o tribunal assentara que sendo o IPTU (Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana) um imposto de natureza real, como já proclamado iterativamente pelo Supremo Tribunal Federal, não poderia variar de acordo com a capacidade contributiva do sujeito passivo do dever tributário.
Veja-se o decisum sob comento, oriundo da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado Rio de Janeiro, verbis:
"APELACAO CIVEL - NÚMERO DO PROCESSO: 2002.001.10600 - DATA DE REGISTRO : 05/08/2003 - DES. DES. HELENA BEKHOR - JULGADO EM 10/06/2003 - ÓRGÃO JULGADOR: OITAVA CAMARA CIVEL - (TJRJ). Ementa TRIBUTÁRIO - Ação de repetição de indébito - Cobrança do IPTU pelo Município apelante - Progressividade fiscal Ilegalidade. DJ - 05/08/2003. Sendo o imposto de natureza real, como proclamado pelo E. STF, em v. arestos versando o tema, inclusive em Plenário, não pode esse imposto variar de acordo com a capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária Ilegalidade também da cobrança da TIP e TCLLP, pela ausência das características de especificidade e divisibilidade nos serviços públicos geradores das aludidas taxas. Provimento parcial do apelo, na forma do parecer ministerial." (grifos apostos)
Referida decisão, é o motivo determinante e fundador das breves reflexões que seguirão abaixo.
2. A Emenda Constitucional nº 29/2000.
A EC nº 29 de 13 de setembro de 2000, introduziu modificação no Texto Constitucional, mais exatamente, na competência tributária dos municípios atinente ao IPTU, fazendo inserir que: "§ 1º. Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º, II, o imposto previsto no inciso I poderá: I- ser progressivo em razão do valor do imóvel, e II- ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel."
É a chamada progressividade fiscal na linguagem de Roque Antonio Carrazza. [1] Dita progressividade tem gerado controvérsias imensas, tanto na doutrina [2] quanto na jurisprudência, conforme decisão que prefacia este estudo.
3. Imposto real e pessoal.
A decisão sob análise, sustenta ser o IPTU um imposto de natureza real, e que tal assertiva encontra supedâneo em reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal. É sabido que a linguagem do direito tributário positivo é chamada de linguagem-objeto, quando cotejada com a linguagem da ciência do direito tributário, que é de sobrenível, ou metalinguagem. A Ciência do Direito Tributário é um corpo lingüístico, que se desenvolve a partir da análise do direito tributário positivo (que é uma integração normativa de fatos segundo valores voltados para instituição, arrecadação e fiscalização de tributos), objetivando ordená-lo (objeto ou base empírica), declarando sua hierarquia, transmitido conhecimento sobre a realidade jurídico-tributária, clarificando a forma deôntica e valorativa que permeia todo sistema do direito tributário positivo, bem como, suas significações, articulando questões de ordem lógico-jurídicas (normas tributárias), éticas (valores tributários) e histórico-culturais (fatos tributários). A linguagem da ciência do direito tributário é tida como uma metalinguagem, cujo vetor é descritivo da linguagem-objeto. [3]
Ora, a jurisprudência do STF que iterativamente vem dizendo que o IPTU é um imposto de natureza real, é neste sentido uma metalinguagem, portanto, uma interpretação do direito tributário posto, logo, uma linguagem descritiva e não prescritiva. Por maior força argumentativa que possa ter a jurisprudência, ela é apenas uma metalinguagem interpretativa do direito posto, insista-se, que não prescreve condutas. Pois bem. Não há no direito tributário posto, base empírica para uma afirmação atual de que o IPTU é um imposto exclusivamente de natureza real, pelo contrário.
Hão que ser revistas a jurisprudência do STF e dos demais tribunais.
Ouçamos os clássicos. Rubens Gomes de Souza [4] ensinou que a classificação jurídica (metalinguagem) dos impostos em reais e pessoais, leva em consideração o critério do lançamento do imposto. Neste sentido os impostos reais são lançados em função do valor da matéria tributável, contudo, sem atender às condições pessoais do contribuinte; já os impostos pessoais, além de serem lançados com base no valor da matéria tributável, possuem um plus, que é justamente, atenderem às condições pessoais do contribuinte. Caso típico de um imposto pessoal é o do imposto de renda, que considera a situação do contribuinte que tem filhos e outras despesas pessoais, permitindo assim um abatimento. Desta maneira, é imperioso concluir, ainda segundo as lições de Rubens Gomes de Souza, que todos os impostos são reais, por que incidem sobre o patrimônio em sentido lato (bens e valores), conquanto nem todos sejam pessoais.
Não são diferentes as ponderações de Fábio Fanucchi [5], quando assevera que o imposto real é aquele que não leva em consideração as condições inerentes aos contribuintes, incidindo assim, por igual face a qualquer pessoa. O exemplo é de Fanucchi, "o imposto municipal sobre serviços de qualquer natureza, estabelecido em importância fixa para os profissionais liberais, não cogita do tipo de profissão ou dos rendimentos obtidos no exercício. Ele é idêntico para todos os sujeitos". Já os impostos pessoais para Fanucchi, estabelecem justamente, diferenças tributárias em função das condições inerentes ao contribuinte.
Veja caro leitor, que dizer se um imposto é real ou pessoal, depende da análise do direito tributário posto, da análise da linguagem-objeto, portanto, é uma construção interpretativa (metalinguagem) cuja base empírica é o direito positivado. Já afirmamos que neste sentido todos os impostos têm natureza real, porém, nem todos possuem a natureza pessoal. O que ocorre atualmente com o IPTU? O IPTU a partir da EC nº 29/2000 passou explicitamente (implicitamente já o tinha) ter também a natureza de imposto pessoal, portanto, é atualmente, imposto de natureza real e pessoal. Aliás, é de boa lembrança, que mesmo antes do advento da EC nº 29/2000, Roque Antonio Carrazza já afirmava a natureza pessoal do IPTU, ao dizer que a EC nº 29 não redefiniu o alcance do IPTU, "mas apenas explicitou o que já se continha na Constituição – ou seja – que este tributo deve ser graduado segundo a capacidade econômica do contribuinte (...) Noutros termos, a emenda constitucional em questão, dado seu caráter meramente declaratório, limitou-se a reforçar a idéia, consagrada em nosso sistema tributário, de que, para fins de IPTU, quanto maior o valor do imóvel urbano, tanto maior haverá de ser sua alíquota" [6]
4. Repensando as jurisprudências.
As jurisprudências iterativas do Supremo Tribunal Federal, e decisões como estas do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que afirmam ser o IPTU um imposto de natureza real, não podendo assim, variar de acordo com a capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária, precisam ser repensadas à luz do direito tributário atual. Bem lembra Carlos Maximiliano [7], que "É certo que o julgado se torna fator de jurisprudência somente quanto aos pontos questionados e decididos, não quanto ao raciocínio, exemplificações e referências". E mais ainda segundo o eminente jurista, "A jurisprudência auxilia o trabalho do intérprete; mas não o substitui, nem dispensa. Tem valor; porém relativo." [8]
Notas
01. Curso de Direito Constitucional Tributário. 18ª ed. São Paulo: Malheiros. 2002. P. 93.
02. Cf. dentre tantos outros, Ives Gandra da Silva Martins e Aires F. Barreto, IPTU:por ofensa a cláusulas pétreas, a progressividade prevista na Emenda nº 29/2000 é inconstitucional. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo. nº 80. Maio-2002. p. 105-126. Em sentido contrário, na mesma RDDT nº 80. Ayrton de Mendonça Teixeira. IPTU e progressividade. p. 20-23.
03. Cf. nosso. Premissas para o estudo do Direito Tributário Atual. Tributário.net. Boletim 153/2003. 12.08.2003.
04. Compêndio de Legislação Tributária. São Paulo. Resenha Tributária. 1981. p. 172.
05. Curso de Direito tributário brasileiro. 4ª ed. São Paulo. Resenha Tributária. v. 1. 1986. P. 76
06. Op. cit. p. 98-99
07. Hermenêutica e aplicação do Direito. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 1990. p. 183.
08. Op. cit. p. 183.