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Tribunais de Contas e o poder de julgar sob a ótica do Direito Financeiro e Tributário

Agenda 14/11/2003 às 00:00

1. Os Tribunais de Contas.

Com supedâneo nos ensinamentos de Ricardo Lobo Torres [1] podemos dizer que os Tribunais de Contas são órgãos auxiliares dos Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como da sociedade organizada mediante seus órgãos de participação política. Nesta condição, eles auxiliam o Legislativo no controle externo, fornecendo-lhe informações, pareceres e relatórios sobre as contas dos agentes políticos; auxiliam a Administração e o Judiciário na autotutela da legalidade e no controle interno, orientando a atuação destes poderes e controlando os responsáveis por bens e valores públicos, ex vi dos arts. 70 a 75 da Constituição Federal.

Com efeito, o Tribunal de Contas é órgão auxiliar dos Poderes do Estado, não sendo ele próprio, portanto, um quarto Poder como quer certa doutrina. Suas funções são hauridas diretamente do Texto Constitucional, neste sentido já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, "O Tribunal não é preposto do Legislativo. A função, que exerce, recebe-a diretamente da Constituição, que lhe define as atribuições" (STF - Pleno - j.29.6.84, in RDA158/196). [2]

A Constituição Federal em seus artigos 71, 72, 73, 74, e 75, dispõem sobre funções, forma de composição e nomeação dos Ministros do Tribunal, bem como outras atividades vinculadas ao Tribunal de Contas da União. A Constituições estaduais disciplinam as normas pertinentes aos Tribunais de Contas respectivos, sendo vedada à criação de Tribunais, Conselhos ou órgãos de Contas Municipais, após a Constituição de 1988, por força do artigo 31, § 4º da CF.


2. Natureza jurídica dos Tribunais de Contas.

Ao nosso ver o Tribunal de Contas é um Tribunal Administrativo, auxiliar dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Suas decisões fazem "coisa julgada administrativa", não podendo ser mais objeto de discussão na esfera da Administração Pública, salvo no aspecto atinente à legalidade da decisão, quando então o Poder Judiciário poderá apreciá-la, e em especial, para cotejá-la com princípio constitucional do devido processo legal (art. 5º, LV da CF).

Alguns autores de tomo, entendem que o Tribunal de Contas exerce função jurisdicional, não pelo emprego da palavra "julgamento" no Texto Constitucional, mas sim pelo sentido definitivo da manifestação da Corte. Bem pondera Ricardo Lobo Torres [3] que o Tribunal de Contas exerce alguns atos típicos da função jurisdicional em sentido material, uma vez que julga as conta dos administradores e responsáveis com todos os requisitos materiais da jurisdição, quais sejam, independência, imparcialidade, igualdade processual, ampla defesa, produção plena das provas e direito a recurso.

Entretanto, do ponto de vista formal, os Tribunais de Contas, com o que é concorde Ricardo Lobo Torres, não detém qualquer parcela da função jurisdicional, podendo a matéria decidida pelo Tribunal de Contas ser reapreciada pelo Poder Judiciário, de acordo com o art. 5º. Inciso XXXV da Constituição Federal. Só a função jurisdicional, que não detém os Tribunais de Contas, pode produzir a definitividade da decisão e a denominada "coisa julgada". Os Tribunais de Contas têm função apenas administrativa, ainda que "julguem" e possam "apreciar constitucionalidade de leis" e atos no exercício de suas atribuições (Súmula 347 do STF), nem por isso deixa de ser jurisdição administrativa, uma vez que seus atos são revisáveis pelo Poder Judiciário. [4]


3. Competência, julgamento e aplicação do direito pelos Tribunais de Contas.

A competência funcional do Tribunal de Contas da União, está prevista no art. 71, seus incisos e parágrafos. Dentre tantas atribuições, destaca-se o "julgamento das contas dos administradores" ex vi do inciso II do art. 71.

Discute-se doutrinariamente ainda segundo as ricas lições de Ricardo Lobo Torres, se este julgamento envolveria em seu decisum, a possibilidade de afastamento da norma legal objeto de análise pelo Tribunal de Contas, com base em um exame de inconstitucionalidade da mesma. Os que a defendem se baseiam, ora na premissa de que os tribunais exercem função jurisdicional (Pontes de Miranda in Comentários a Constituição de 1969) ou apenas entendem que ele não as declara inconstitucionais, mas apenas deixa de aplicá-las via técnica de interpretação que conduz à valorização da lei maior. (José Luiz Ahaia de Mello).

Ricardo Lobo Torres [5] entende que não cabe o Tribunal de Contas in abstracto declarar a inconstitucionalidade de leis, pois além de não exercerem função jurisdicional, limitam-se a apreciar casos concretos. Já o os atos administrativos, segundo ele, podem ter sua inconstitucionalidade reconhecida pelos tribunais de contas no caso concreto, negando os tribunais a aprová-los e dar quitação aos responsáveis, alinhando-se assim com a lei e a Constituição.

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Há duas súmulas sobre o assunto, uma do Supremo Tribunal Federal (STF), nº 347 "O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público". E outra de São Paulo, Súmula 6 do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP), "Compete ao Tribunal de Contas negar cumprimento a leis inconstitucionais".

O ato (orçamento) que dispõe dos recursos e bens públicos é formalmente legislativo, já o controle de sua execução, importa, preliminarmente, um juízo de legalidade, e depois de economicidade, regularidade contábil e compatibilidade com os padrões de gestão financeira geralmente aceitos, ex vi do art. 70 da Constituição Federal. Conseqüência desta afirmação, é que sendo a lei financeira do domínio do Congresso, o Tribunal de Contas somente conhece de atos administrativos, sendo-lhe defeso à declaração de inconstitucionalidade, conquanto nada impeça, que as Cortes de Contas, ao fiscalizarem os atos da Administração, vinculados à lei, e as próprias leis, sejam elas do âmbito federal, estadual ou municipal, digam o direito (jurisdictio), para autorizar-lhes os efeitos financeiros, ainda que esta atividade de controle não seja de natureza jurisdicional, mas, nem por serem administrativas, as resoluções e decisões dos Tribunais de Contas, são menos efetivas, embora sujeitas à revisão pelos órgãos judiciários. [6]

Ao assim agirem, isto é, dizerem o direito, as Cortes de Contas não estão retirando normas gerias e abstratas (lei) do sistema, mas apenas atribuindo a elas os efeitos financeiros cabíveis de acordo com o Texto Constitucional. Noutro dizer, não há declaração de inconstitucionalidade, mas pré-exclusão da incidência da norma refratada pela Corte de Contas, redução do campo eficacial da norma refratada por aplicação da sobrenorma constitucional. E por que as Cortes de Contas não podem retirar em definitivo a norma geral e abstrata do sistema jurídico? É que a norma geral e abstrata (lei), produzida de acordo com o procedimento constitucional pugnado, isto é, com obediência do processo legislativo previsto no Constituição Federal, ex vi dos artigos 59 usque 69, e observando-se ainda a competência em razão da matéria pelo ente legislativo, é norma válida ou existente como quer Adriano Soares da Costa [7], no sistema jurídico, mantém pertinência com o sistema na linguagem de Paulo de Barros Carvalho [8], e pelo princípio do paralelismo de forma, só pode ser retirada do sistema por outra norma.

Explicando mais. Se nos ativermos às ponderações de Adriano Soares da Costa, podemos dizer que, "os atos jurídicos existem, valem e são eficazes; ou existem, são inválidos e ainda assim são eficazes; ou existem, são inválidos e são ineficazes; ou simplesmente não são, é dizer, não existem". Pois bem. No caso em tela, a norma federal, estadual ou municipal refratada pela Corte de Contas, existe, é válida, porém, tem seu campo eficacial reduzido pela Corte de Contas, em virtude da aplicação da sobrenorma constitucional do art. 70, caput, que confere aos tribunais de contas o poder de fiscalizar as contas dos administradores sob o aspecto da legalidade, legitimidade e economicidade dos gastos no que pertine ao aspecto financeiro.

Um exemplo a ser mencionado, seria o de uma norma (veículo introdutor lei) que autorize um município a firmar convênio com a iniciativa privada, para prestação de serviços especializados de orientação à administração pública, cujos valores viriam ofender o princípio da economicidade previsto no caput do art. 70 da Constituição Federal. Neste caso, o Tribunal de Contas, ao apreciar as contas do administrador e por conseqüência a lei em questão, negar-lhe-á eficácia naquele particular excesso em que ofensiva à economicidade do gasto público, prestigiando assim o Texto Constitucional.

Nesta linha sinaliza também o Professor Luiz Fernando Mussolini Jr [9], ao falar sobre a aplicação da lei no âmbito federal e asseverar que: "Há que se distinguir a atitude de um funcionário público em geral da atitude de um funcionário encarregado de julgar os atos administrativos. No primeiro caso, um funcionário não pode deixar de cumprir uma portaria, uma instrução normativa ou até um parecer normativo, pois está subordinado hierarquicamente ao DRF (leia-se CAT) e ao Ministério da Economia (leia-se, Secretário de Fazenda) e sua missão é executar o que é determinado pelas autoridades. O julgador, ao contrário, tem por função apreciar a legalidade dos atos administrativos. O princípio da legalidade exige que se cumpra a lei, sobretudo a lei máxima que é a Constituição."

É sabido que as Cortes de Contas em toda a federação não exercem, de ordinário, função de natureza legislativa ou de criação do direito. Logo, como bem anota o Professor de Direito Constitucional da UERJ, Carlos Roberto Siqueira Castro, "não é dado aos Tribunais de Contas editar validamente, a qualquer título, regras de direito, sejam elas independentes ou regulamentares, mas que sejam abstratas e contenham imposição de obrigações dirigidas a terceiros, sejam eles administradores públicos ou particulares administrados". [10] Citada doutrina, vem roborar nosso raciocínio, ou seja, se à Corte de Contas não é dado o poder de inovar (editar normas abstratas) na ordem jurídica, não a pode suprimir (retirar) do sistema norma validamente inserida.

Todavia, ainda segundo as lições do Professor Dr. Carlos Roberto Siqueira Castro, "os Tribunais de Contas, na aferição do embasamento legal dos atos de gestão financeira e patrimonial dos entes estatais, o que constitui preliminar insuperável para a verificação da legalidade dos procedimentos resultantes em despesa pública, podem apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público, a teor do enunciado da Súmula nº 347 do Supremo Tribunal Federal. Fazem-no, contudo, sem caráter de conclusividade e sob a eventual censura do Poder Judiciário, no âmbito do controle judicial difuso da constitucionalidade das normas jurídicas". [11]

Entendemos que a expressão "apreciar a constitucionalidade das leis", dita pelo professor Carlos Roberto Siqueira Castro, deva ser entendida como, atribuir os devidos efeitos financeiros (sem retirar a norma do sistema!), suprimindo parte de sua eficácia, ou pré-excluindo a sua incidência, com base em juízo de legalidade, legitimidade e economicidade ex vi do art. 70 da Constituição Federal. Cabe ainda, aos Tribunais de Contas, ao exercerem o controle de legalidade na forma do 70 da Constituição Federal, representar ao órgão competente (art. 71, XI da CF) para dizer da constitucionalidade ou não do instrumento jurídico.

Aliás, mutatis mutandis, sem bem pensarmos, o funcionário público em geral (já tratamos de um exceção acima) não pode deixar de cumprir lei validamente inserida no sistema. Oportuna, parece-nos a doutrina do procurador do Estado do Rio de Janeiro, Dr. Humberto Ribeiro Soares [12] quando veda a possibilidade de o Executivo deixar de cumprir lei que ele, Executivo — sem julgamento ou antes de julgamento do Poder Judiciário no caso concreto da lei em questão — julgue, por si, inconstitucional. Se o fizesse, aliás, praticaria dupla interferência na partilha de competências constitucionalmente estabelecida, o Executivo sustando um ato do Legislativo, e, ao mesmo tempo, usurpando competência do Judiciário, a quem a Constituição concedeu a competência do controle de constitucionalidade sucessivo, seja pela via da exceção, concreta, difusa, seja pela via da ação, abstrata, concentrada, não a havendo concedido ao Executivo.

Humberto Ribeiro Soares [13] leciona que desde o ano de 1966, a maioria do Supremo Tribunal Federal adotava a tese de que não é possível o Presidente descumprir a lei por entendê-la, ele — sem pronunciamento hábil do Judiciário — que seria inconstitucional, sobretudo diante dos recursos do controle abstrato ensejados no ordenamento constitucional.

Mais recentemente, o Ministro Moreira Alves em julgado de 29 de março de 1990, publicado na RTJ 151/133, assim se pronunciou, verbis:

"Sucede, que, no Brasil, o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos em vigor é atribuição exclusiva do Poder Judiciário, à semelhança de países como, por exemplo, os Estados Unidos da América do Norte, a Argentina, a Itália, a Alemanha, em que só se admite o controle judiciário dessa constitucionalidade. (…) Os Poderes Executivo e Legislativo podem declarar nulos, por ilegalidade ou por inconstitucionalidade, atos administrativos seus, e não leis ou atos com força de lei, e quando declaram a nulidade desses atos administrativos ficam sujeitos ao controle do Poder Judiciário, e poderão ser responsabilizados pelos prejuízos advenientes dessa declaração se este entender que inexiste a pretendida ilegalidade ou inconstitucionalidade.".

Tal decisão acima citada há que ser interpretada no contexto do que vimos de escrever, isto é, muito embora, o Tribunal de Contas, na condição e exercício de Tribunal Administrativo auxiliar dos Poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário (art. 71 caput da CF), não detenha competência para retirar lei validamente inserida no sistema jurídico conforme bem anota a decisão acima transcrita, pode e deve a Corte de Contas, no exercício de sua competência fiscalizadora e aplicadora do direito, ao examinar a lei introduzida pelo ente administrativo municipal (no caso do exemplo dado), pode sob a perspectiva de atribuição de efeitos financeiros, reduzir o campo eficacial da norma municipal sob exame financeiro, com base em juízo de legalidade, legitimidade, e economicidade com fulcro no art. 70 da Constituição Federal, e negar a sua eficácia naquilo em que sobejar aos ditames constitucionais, neste sentido, julgando, inclusive, irregular as contas do administrador, que em última instância poderá recorrer ao Judiciário.


Notas

01. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro. Renovar. 2000. p. 358.

02. Apud, José Maurício Conti, Direito Financeiro na Constituição de 1998. São Paulo. Oliveira Mendes. 1998. p.21.

03. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário op. cit. p. 359.

04. Cf. Régis Fernandes de Oliveira, Manual de Direito Financeiro. 4ª ed. São Paulo. RT. p. 139-140.

05. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. Op. cit. 377-378.

06. Cf. Célio Borja. Competência Constitucional dos Tribunais de Contas. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. nº 40. abr/jun 1998, p. 29-31.

07. Instituições de Direito Eleitoral. 4ª ed. Belo Horizonte. Del Rey. 2000. p. 71.

08. Direito Tributário - Fundamentos jurídico da incidência. São Paulo. Saraiva. 1998. p. 56.

09. Os Tribunais administrativos e a não aplicação de lei sob a alegação de sua incompatibilidade com a Constituição. Tributário.NET. Disponível em: www. tributário.net/ler_texto.asp?id=25584. 7/7/2003.

10. A atuação do Tribunal de Contas em face da separação de poderes do Estado, Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. nº 38. ou/dez 1997, p. 45.

11. "A atuação do Tribunal de Contas em face da separação de poderes do Estado". in Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. nº 38. Rio de Janeiro. out/dez 1997. p. 47

12. Cf. Humberto Ribeiro Soares, "Pode o executivo deixar de cumprir uma lei que ele próprio considere inconstitucional ?" Revista de Direito da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, Volume nº 50.

13. Humberto Ribeiro Soares, op. cit. p. 28.

Sobre o autor
Roberto Wagner Lima Nogueira

mestre em Direito Tributário, professor do Departamento de Direito Público das Universidades Católica de Petrópolis (UCP) , procurador do Município de Areal (RJ), membro do Conselho Científico da Associação Paulista de Direito Tributário (APET) é autor dos livros "Fundamentos do Dever Tributário", Belo Horizonte, Del Rey, 2003, e "Direito Financeiro e Justiça Tributária", Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004; co-autor dos livros "ISS - LC 116/2003" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto e Ives Gandra da Silva Martins), Curitiba, Juruá, 2004; e "Planejamento Tributário" (coord. Marcelo Magalhães Peixoto), São Paulo, Quartier Latim, 2004.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Tribunais de Contas e o poder de julgar sob a ótica do Direito Financeiro e Tributário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 131, 14 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4470. Acesso em: 22 dez. 2024.

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