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O jogo penal em 'O Outro Gume da Faca'

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Agenda 20/09/2016 às 15:28

Partindo da compreensão de que o processo penal é um jogo (Alexandre Rosa), pode-se analisar a novela de Sabino como uma disputa entre os personagens Aldo (assassino) e o Delegado Amarante (investigador).

1. Introdução

Ensina-se, nas faculdades de Direito, não sem um certo cinismo, que a persecutio criminis tem por escopo principal a promoção da Justiça. Diz-se que o combate ao ilícito penal é a própria razão de ser do Estado, estatuído com o objetivo de promover a convivência pacífica e a consequente paz social, dando-se a cada um o que é seu.

Sem dúvida, o discurso oficial utiliza-se de propósitos aparentemente bastante nobres para convencer (e convence!) o cidadão comum, o homem médio (e também o cidadão extraordinário e o homem acima da média) de que o Direito Penal é a chave para a resolução dos conflitos individuais e sociais.

Porém, o que se verifica na prática é que o aparelho penal funciona numa outra lógica, distanciada da nobreza proclamada no discurso: em vez de buscar a promoção da Justiça, o processo penal visa, na verdade, manter a máquina penal funcionando, custe o que custar, porque é o crime que lhe dá vida e lhe confere utilidade. O filósofo francês Michel Foucault já alertava para a lógica penal distanciada do discurso quando demonstrou que ela opera a partir da construção do conceito de delinquente pelo aparelho penal[1]. Vera Regina Pereira de Andrade, por sua vez, há tempos chamava a atenção para a eficácia às avessas do sistema penal, ao dizer que “Mais do que uma trajetória de ineficácia, o que acaba por se desenhar é uma trajetória de eficácia invertida, na qual se inscreve não apenas o fracasso do projeto penal declarado mas, por dentro dele, o êxito do não projetado”[2].

Com efeito, em sociedades capitalistas e mercantilistas como a nossa, o processo penal, como tantas outras coisas, vira um negócio. E, como todo negócio, só anda bem se tiver matéria prima (seres humanos), demanda (crimes) e lucro (financeiro ou não). Cabe a pergunta: o que seria do Ministério Público, da Advocacia e do Poder Judiciário se não houvesse crimes para denunciar, defender e julgar? Assim é que o Promotor, o Advogado e o Juiz precisam do crime para dar sentido às suas existências. Em certo sentido, o desejam.

A grande contribuição da Literatura para o Direito é, de certa forma, denunciar essa lógica nada nobre e completamente descompassada com o discurso oficial que opera no dia-a-dia, ou seja, na vida real dos processos penais. A partir da Literatura pode-se compreender, sem os tecnicismos inerentes à linguagem jurídica, o modus operandi de criminosos, juízes, delegados, promotores, advogados, etc.

A escolha pela novela policial de Fernando Sabino se deu por duas razões: (i) os romances ou novelas policiais não têm sido abordados como fonte de inspiração para os principais estudos em Direito e Literatura no Brasil, talvez por alguma espécie de preconceito em relação ao gênero; e (ii) O Outro Gume da Faca conseguiu antecipar em muitos anos aquela lógica trabalhada por Alexandre Morais da Rosa em seu Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, no sentido de que as partes envolvidas num processo penal ou num inquérito policial não visam buscar a promoção da Justiça, mas, sim, ganhar o jogo penal[3].

Relativamente ao segundo aspecto, importa mencionar, desde já, que, numa primeira leitura, a trama parece girar indubitavelmente em torno de temas como traição, assassinato e culpa. Não obstante, numa leitura mais atenta, o que se percebe é que o pequeno livro trata, sobretudo, da difícil tarefa de investigar o crime perfeito, isto é, aquele crime que não deixa sequer rastros de autoria, tal qual o duplo homicídio cometido por Aldo Tolentino em O Outro Gume da Faca. Nesse sentido, é preciso atentar para a atuação do Delegado Amarante, o jogador-investigador. É ele quem, sempre desconfiado, dá fôlego ao inquérito policial, chamando a atenção para elementos que parecem secundários, mas que, repentinamente, vão aos poucos mudando os rumos da investigação. Se não há dúvidas de que Aldo é o protagonista da novela, o Delegado Amarante é, dentro da lógica dos jogos, o “jogador a ser batido”.

Em suma, o que se pretende neste texto é demonstrar como a investigação criminal conduzida pelo Delegado Amarante na novela de Sabino revela a lógica dos jogos, a ponto de, em resposta ao crime perfeito cometido por Aldo, o jogador-investigador utilizar-se de artifícios jurídicos para incriminar um terceiro – não por acaso o filho “problemático” e “drogado” do verdadeiro assassino –, consagrando-se o vencedor daquele jogo penal.


2. Direito e Literatura nos romances policiais

Em outra oportunidade, ponderei que “Realizar uma pesquisa em Direito e Literatura deve ser mais do que simplesmente procurar o Direito em uma obra literária ou utilizar um romance, por exemplo, como mera ilustração para uma determinada teoria jurídica”. Disse ainda que

A verdadeira importância de um estudo dessa envergadura está, salvo melhor juízo, no pensar o Direito a partir da Literatura; interpretar como ele funciona em relação aos personagens envolvidos na trama e como a história narrada modifica ou aprimora o entendimento do leitor no que se refere ao papel desempenhado pelo Direito nas próprias relações sociais[4].

A preocupação, externada em nítido tom de censura, tinha por trás a desconfiança em relação à profusão de estudos apresentados à comunidade jurídica sem maiores reflexões ou rigores científicos, utilizando muitas vezes a Literatura como mero instrumento de divulgação ou crítica de institutos jurídicos específicos, num determinado lugar e tempo.

Evidente que essa confusão teórica não ocorria por oportunismo ou má-fé daqueles poucos acadêmicos que, resolutos, resolviam dedicar seu precioso tempo a pensar o Direito a partir da Literatura. Ao contrário, parece-me que esse cenário se construiu justamente pela incipiência do Direito e Literatura no Brasil.

Embora em tempo recorde – pois passaram-se apenas dois anos da publicação do texto acima mencionado – a perspectiva dos estudos em Direito e Literatura modificou-se. Com a criação da Rede Brasileira de Direito e Literatura (RDL) em 2014 e com a consolidação do Colóquio Internacional de Direito e Literatura (CIDIL), que já está em sua terceira edição, o nível dos trabalhos apresentados e publicados em nosso país tem crescido naturalmente.

Penso que esse crescimento tenha a ver também, e sobretudo, com a escolha dos textos literários a serem abordados sob o viés do Direito: quando se pensa o Direito a partir de Sófocles, Fiódor Dostoiévski, Franz Kafka, Herman Melville, Albert Camus, Eça de Queirós ou Machado de Assis, por exemplo, as possibilidades são naturalmente múltiplas, admitindo-se uma pluralidade de interpretações distintas, porém igualmente interessantes e válidas.

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Assim é que os melhores trabalhos atualmente disponíveis no mercado são análises de obras literárias clássicas. A título de exemplo, menciona-se que, no ano de 2013, Lenio Luiz Streck e André Karam Trindade organizaram obra intitulada Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade, na qual reuniram textos com análises sobre as obras de Franz Kafka, Honoré de Balzac, Daniel Defoe, Ulisses, entre outras grandes escritores da Literatura mundial[5].

Não obstante o satisfatório rumo que a pesquisa em Direito e Literatura está tomando no Brasil, penso que já seja hora de incluir em seu contexto o mais popular – e talvez por isso mesmo o mais criticado – dos gêneros literários: o romance ou a novela policial.

Pode-se conceituar o romance policial como aquela literatura de suspense na qual a trama gira em torno do cometimento de um ou vários crimes e de sua respectiva apuração. Geralmente, há um profundo antagonismo entre o criminoso (mau) e aquele agente, geralmente policial (bom), designado para desvendar o crime cometido. Nas palavras de Adriano Ramon Lani,

[...] no romance policial, o que está quase sempre em jogo é identificar e punir alguém que rompeu o ordenamento jurídico, ameaçando a ordem social. O relato vai, assim, pôr em cena um personagem heróico (mito) que, munido de conhecimentos técnico científicos, oferecerá soluções (ideológicas), identificação e punição do culpado.[6]

A julgar pela sua conceituação, a princípio não haveria qualquer razão que justificasse possível preconceito dos envolvidos com Direito e Literatura em relação ao romance ou novela policial, tendo em vista que as temáticas usualmente trabalhadas nessa espécie de gênero literário são muito afetas ao universo jurídico: crime, investigação, inquérito, processo, julgamento, punição, etc.

Ocorre que, justamente por utilizar-se de categorias tão intimamente ligadas ao Direito Penal, não necessariamente com o rigor técnico que um bom profissional do Direito utilizaria, o romance policial acaba muitas vezes se tornando um prato cheio para simplificações – tanto por parte do autor quanto por parte de seus leitores.

Dentre os especialistas em Literatura, o romance policial também não é unanimidade. Inclusive, muitos o rotulam de “subliteratura”. Veja-se o comentário de J.C. Guimarães:

Apesar do sucesso estrondoso, inclusive entre escritores do nível de um Borges, um Bioy Casares, o romance policial é normalmente tido pela crítica, em especial a norte-americana, como subliteratura. Razões não faltam para explicar a severidade desse julgamento. O gênero quase sempre carece do fundamental, aquilo que Carpeaux, em “História da Literatura Ocidental”, chamou de “verdade moral e psicológica”, tão apreciada e indispensável ao gênio de um Dostoiévski, de uma Virginia Woolf ou de um Machado de Assis. A ausência desse elemento axiológico – espécie de lei pétrea do grande romance clássico – deve-se possivelmente ao fato de a ação ser mais importante do que a densidade para a finalidade da trama. E mais: o quebra-cabeças que encerra corresponde de fato a um jogo de peças pré-moldadas, baseado num “a priori” que vem a ser a existência de um crime, um detetive e um assassino. É uma convenção, com a chatice de todas as convenções e enquadramentos.[7]

De igual modo, para Georg Lukács o romance policial não seria um romance legítimo, mas apenas uma caricatura. Chamando o romance policial de “leitura de entretenimento”, o autor ponderou:

[...] o romance possui uma caricatura que lhe é quase idêntica em todos os aspectos inessenciais da forma: a leitura de entretenimento, que indica todas as características exteriores do romance, mas que em sua essência não se vincula a nada e em nada se baseia, carecendo com isso de todo o sentido.[8]

J.C. Guimarães arremata, dizendo que “O romance policial, gênero que não se enquadra nas categorias modernista e de vanguarda, é fértil em escritores de talento inferior”[9].

Não se pretende aqui combater as críticas, e nem dizer se elas são justas ou injustas, mas o fato é que existem escritores bons e escritores ruins em todos os gêneros literários. Provavelmente os maus escritores de romances policiais vencem em números absolutos os bons escritores. Porém, um gênero que conta com nomes como o de Edgar Alan Poe, Arthur Conan Doyle, Agatha Christie e Fernando Sabino não pode ser simplesmente descartado: compete àqueles que pretendem trabalhá-lo selecionar os escritos relevantes, descartando os irrelevantes, como, de resto, se faz com tudo na vida.

De certo modo apaziguando a polêmica, Raquel Vieira Parrina Sant’Ana identificou, em sua dissertação de mestrado, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, boas qualidades no que chamou de “literatura policial”:

O fato é que a literatura policial representa um dos gêneros mais bem-sucedidos de todos os tempos. Poucos estilos foram capazes de florescer em lugares tão diferentes – desde os Estados Unidos à adaptação perfeita à cultura britânica, o giallo italiano, o polar francês, o suirishousetsu japonês, etc. – e influenciar tão massivamente a evolução de outras artes, como o cinema, e ainda o teatro, o rádio e a televisão. Suas origens já foram apontadas em lugares tão diferentes quanto no Oedipus Rex, no Zadig, ou em As mil e uma noites. Muitos outros gêneros se originaram dele, como a ficção científica, o drama de tribunal, além de suas próprias subdivisões, como o policial duro, o filosófico, o analítico... Talvez seja o único gênero literário a se tornar um jogo de tabuleiro[10].

O que se pretende defender neste artigo é que é possível pensar o Direito a partir da literatura policial de boa qualidade. E, para tanto, é preciso que o jurista se desarme de preconceitos e deixe de torcer o nariz, principalmente quando se deparar com eventual falta de técnica, linguagem coloquial ou maneirismos desenvolvidos pelos literatos em estudo. Pouco importa se o autor do romance policial sabia ou não a diferença entre denúncia e queixa-crime, agravo e recurso em sentido estrito ou pronúncia e condenação. O que importa é que sua trama seja capaz de despertar o leitor interessado para as situações que ocorrem no cenário jurídico e que acabam influenciando o próprio dia-a-dia dos indivíduos. Em suma: desde que o romance ou novela policial problematize de forma séria a realidade jurídica do tempo em que se vive, poderá constituir material desejável para o campo de estudo Direito e Literatura.

Tendo isso em vista, a escolha de O Outro Gume da Faca, de Fernando Sabino, parece acertada, pois, além de ser um autor respeitado e de qualidade, conseguiu trazer em sua novela diversos assuntos interessantes para serem discutidos pelos profissionais do Direito. Se, como ponderado por Raquel Sant’Ana, o romance policial é o único gênero literário a se tornar um jogo de tabuleiro, talvez não haja obra melhor para dar ensejo à análise do processo penal conforme a teoria dos jogos, tal como desenvolvido pelo jurista Alexandre Morais da Rosa em seu Guia Compacto.


3. Síntese da novela de Fernando Sabino

A novela[11] O Outro Gume da Faca, do escritor brasileiro Fernando Sabino, conta a história do modesto advogado Aldo Tolentino, cinquenta anos, pai de três filhos – dois dos quais teve com Maria Lúcia, sua segunda e atual esposa.

A trama se desenrola a partir das desconfianças de Aldo em relação ao agir de Maria Lúcia. Relata o narrador que, quando percebeu o comportamento estranho de sua esposa, consubstanciado numa repentina agressividade e num súbito desejo sexual nunca antes demonstrado, o personagem principal da novela armou um cenário perfeito para investigar os passos da esposa durante sua ausência em casa, no expediente do escritório de advocacia que dividia com o amigo Marco Túlio:

Alegando que, na sua ausência, as crianças entravam à vontade no escritório [de casa] e mexiam em tudo, Aldo Tolentino ultimamente dera para trancar a porta à chave ao sair para o trabalho.

Naquela manhã, todavia, teve antes o cuidado de soltar o trinco da janela que dava para a varanda, deixando-a apenas encostada.[12]

O plano de Aldo era afastar-se do seu local de trabalho no horário do expediente, sob a escusa de compromissos no Fórum, e retornar imediatamente à sua residência, instalando-se secretamente no escritório que havia deixado destrancado, onde havia uma extensão do telefone que poderia ser acionada no momento em que a esposa fizesse menção de realizar ligações:

A princípio pensou simplesmente em segui-la. Abandonou logo a idéia, era um risco que não podia correr: se ela por acaso percebesse, estaria desmoralizado. Então optou pelo plano que agora punha em prática. E ali estava, à espera. Esperaria o dia inteiro, se fosse preciso. Sentia remorso pelo que fazia, mas não tinha alternativa: era para o bem de ambos, para salvar aquele casamento.

Não se passaram nem vinte minutos, e ouviu o ruído do telefone. Alguém discava lá em cima, no quarto. Tirou com cuidado o fone da extensão, ficou à escuta.[13]

Mas a ligação que revelou o segredo buscado por Aldo só foi recebida por Maria Lúcia muitas horas depois do momento em que havia se instalado em segredo no escritório de casa, quando o envelhecido advogado “já não podia mais de impaciência, arrependido daquele plano louco”:

Foi quando o telefone tocou.

Esperou ansioso que ela atendesse lá em cima. A campainha soou várias vezes e parou. Então ele retirou com cuidado o fone do gancho.

– Desculpe, eu estou saindo do banho – era Maria Lúcia, mas com uma voz diferente, mais grave e sensual: – Pensei que você não ia telefonar nunca mais, não agüentava esperar. Então fui tomar meu banho.

Respondeu uma voz de homem – ele reconheceu imediatamente a voz de Marco Túlio. Por um instante, desnorteado, chegou a achar que o colega queria falar com ele. Logo entendeu tudo, e a emoção foi tão forte que começou a tremer. Teve de afastar um instante o fone, para que a respiração descontrolada não o denunciasse. Conseguiu se dominar e voltou a ouvir.[14]

Na conversa entre os amantes, Marco Túlio revelou à Maria Lúcia um plano para passarem alguns dias juntos: tendo em vista à viagem da esposa Sônia à Petrópolis, dera um jeito de mandar Aldo numa viagem de negócios a São Paulo:

– Tudo arranjado. É esta a surpresa: vai a São Paulo amanhã. Desencavei uma reunião lá para ele. A reunião pode se prolongar por uns três dias. Depende de Sônia ir ficando por lá. Que tal?

– Ele ainda não voltou do foro?

– Ainda não. Está lá desde manhã.

– Então por que você não telefonou antes? Me deixou esse tempo todo esperando.

– Porque eu próprio tive um dia ocupadíssimo. Foram mil providências para ter o resto da semana livre. Você precisava ver como ele ficou com a idéia da viagem. Rindo à toa. Se sentido importantíssimo. E foi para o foro pôr em dia os processinhos dele para poder viajar sossegado.

– Neste caso, você pode vir para cá amanhã – lembrou ela: – Ficamos aqui mesmo, vai ser ótimo.

– E as crianças?

– Já estarão dormindo quando você chegar. O quarto delas é lá no fundo, não tomam nem conhecimento. E o estafermo está viajando.

– Quem?

– Paulo Sérgio, o filho dele. Por falar nas crianças, vou ter de desligar, elas daqui a pouco estão chegando do colégio e invadindo meu quarto.

– Você está falando de onde? Do quarto?

– Eu não contei que ele é tão esquisito que deu para trancar o escritório e levar a chave? Diz que é por causa dos meninos. Veja se alguém pode agüentar um homem desses.

Trêmulo, a respiração opressa, Aldo mal podia segurar o fone.[15]

Traído pela esposa e pelo colega de escritório de advocacia, Aldo então pôs em prática o plano que possibilitou pegar os dois em flagrante: não obstante tenha ido a São Paulo na viagem de negócios, resolveu tomar um avião de volta ao Rio de Janeiro naquela mesma noite, utilizando-se da carteira de identidade que havia secretamente tomado do office boy que trabalhava consigo no escritório de advocacia. Era o plano perfeito: informara à recepcionista do hotel que assistiria ao jogo de futebol no quarto e que, nesse ínterim, não gostaria de ser incomodado por ninguém. Solicitou até uma ligação no início do jogo, certificando-se de que não iria perdê-lo por estar dormindo, deixando programado um gravador com a resposta de agradecimento.

Enquanto todos pensavam que estava assistindo ao jogo na televisão, Aldo dirigiu-se à sua residência no Rio de Janeiro:

Pretendia apenas surpreendê-los, não era isso mesmo? Já não sabia bem o que pretendia. Não pensava em matar, mas também não pensava em morrer. O plano era para o que desse e viesse: tinha que se defender. Se alguma coisa acontecesse de pior, a culpa não seria sua: para todos os efeitos ele estava em São Paulo. Não foi para lá que Marco Túlio o mandou?[16]

Chegando em casa, viu o automóvel de Marco Túlio estacionado na rua em frente e logo se lembrou de uma pistola que o amigo sempre carregava consigo. Ficou imaginando se na noite de hoje a teria levado à sua residência. Ao adentrar e aproximar-se de seu quarto, ouvia cada vez mais fortes as vozes da esposa e do amante. Avistou a pistola, pegou-a, “no exato momento em que eles, a rir, voltavam para o quarto”:

Girou sobre si mesmo e deu com os dois, o riso por uma fração de segundo ainda estampado no rosto, estatelados de terror à porta do banheiro – ele com uma toalha em torno da cintura, ela inteiramente nua. Não teve tempo de dizer nada: ela fez menção de se virar para voltar ao banheiro, ele em desespero avançou instintivamente em sua direção. O primeiro tiro a atingiu no pescoço, o segundo o alcançou no peito – viu, siderado, ambos tombarem ao mesmo tempo, ela de lado, ele de frente, braços estendidos quase roçando seus pés.[17]

Embora consternado, Aldo tomou um táxi em direção ao aeroporto e embarcou de volta a São Paulo a tempo de retornar ao hotel nos minutos finais do jogo entre Santos e Botafogo. Adentrou ao seu quarto e só saiu no dia seguinte, com destino à reunião de negócios que havia sido arranjada por Marco Túlio.

Mais tarde, a Secretária do Escritório de Advocacia, Dona Mirtes, entrou em contato com Aldo, solicitando o seu retorno ao Rio de Janeiro, tendo em vista o acontecimento de “Um acidente com o Dr. Marco Túlio e Dona Maria Lúcia”[18].

Foi então que o assassino travou conhecimento com o Delegado Amarante. Embora o Chefe de Polícia tenha inicialmente desconfiado de Aldo, o homem logo se convenceu de que o advogado carioca era inocente. Assim sendo, conduziu Aldo ao funeral da esposa e prosseguiu com a investigação, em que o maior suspeito era Paulo Sérgio, filho mais velho de Aldo, que havia voltado de viagem no mesmo dia em que o pai cometera o crime contra Maria Lúcia e Marco Túlio.

Paulo Sérgio havia chegado de sua viagem pouco depois do crime. Seu quarto era nos fundos, no andar térreo, mas subiu ao andar de cima ao ver a luz acesa, e deu com que os jornais chamavam de cena macabra, sinistra, horripilante. Cometeu a leviandade de apanhar no chão a pistola, acreditando que o assassino ainda podia estar no interior da casa e, assim armado, pudesse dominá-lo. Percorreu a casa inteira, e não descobrindo ninguém, além das crianças que dormiam, as empregadas estando ausentes, de folga – telefonou para a polícia, que o encontrou completamente desarvorado, de arma ainda na mão.[19]

Vendo que o filho seria responsabilizado pelo crime que não havia cometido, Aldo resolveu contar a verdade ao Delegado Amarante. Entretanto, o assassinato havia sido tão bem planejado, o crime cometido havia sido tão perfeito, que a autoridade policial não acreditou na versão. Para ele, tratava-se do pai querendo assumir a culpa do filho:

– Respeito a sua atitude, Dr. Tolentino. E não tenho vergonha de confessar que ela me enche de admiração pelo senhor. Também sou pai, e espero que Deus me poupe de jamais estar em situação semelhante à sua. Mas, sinceramente, eu não sei se, em seu lugar, seria capaz de fazer o mesmo.[20]

Provavelmente presumindo a culpa do pai traído, o filho confessou a autoria do crime e se recusou a aceitar a ajuda de Aldo, que não teve tempo de pôr em prática os planos de assumir a defesa técnica do filho, impetrando imediatamente um habeas corpus para que Paulo Sérgio pudesse responder o processo em liberdade: logo após deixar a delegacia, recebeu a ligação comunicando o suicídio:

– Alô, Dr. Tolentino?

Custou a reconhecer a voz do delegado, e mais ainda a entender o que ele queria dizer, cheio de cuidados e rodeios.

– Diga logo – resmungou.

O delegado informou que Paulo Sérgio havia se enforcado com a camiseta em sua cela.

– Vou já para aí.[21]

Contudo, a narrativa termina com Aldo se dirigindo até a copa de sua casa, pegando um vidro de remédios e tomando todos os comprimidos. De volta ao escritório em que havia descoberto a traição de sua mulher, pôs-se a dormir.

Sobre o autor
Eduardo de Carvalho Rêgo

Advogado. Doutor em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL; Professor de Filosofia do Direito e de Ética Profissional no Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina - CESUSC; ex-Assessor Jurídico do Centro de Apoio Operacional do Controle de Constitucionalidade CECCON, do Ministério Público do Estado de Santa Catarina; ex-Chefe de Gabinete da Conselheira Substituta Sabrina Nunes Iocken, do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÊGO, Eduardo Carvalho. O jogo penal em 'O Outro Gume da Faca'. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4829, 20 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44807. Acesso em: 25 nov. 2024.

Mais informações

Texto submetido ao III Colóquio Internacional de Direito e Literatura, promovido pelo Kathársis (Centro de Estudos em Direito e Literatura - IMED). Publicado também no site emporiododireito.com.br em novembro de 2015.

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