4. Alexandre Morais da Rosa e o Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos
A teoria dos jogos é um ramo da matemática. Conforme explica Alecsandra Neri de Almeida, “A teoria dos jogos é a aplicação da lógica matemática no processo de tomada de decisões nos jogos, utilizada na economia, na política, na guerra e caracterizada, como nos jogos, por conflitos de interesses determinando a melhor estratégia para cada jogador”. Em acréscimo, a articulista detalha:
A teoria dos jogos tem a finalidade de prever os movimentos dos outros jogadores, sejam eles concorrentes ou aliados, através dessa teoria os jogadores se posicionam da melhor forma para obter o resultado desejado.
O objetivo da teoria dos jogos é entender a lógica na hora da decisão e ajudar a responder se é possível haver colaboração entre os jogadores, em quais circunstâncias o mais racional é não colaborar e quais estratégias devem ser adotadas para garantir a colaboração entre os jogadores.
A teoria dos jogos, por meio da matemática, equaciona os conflitos, onde o foco são as estratégias utilizadas pelos jogadores.[22]
O maior expoente da teoria dos jogos foi o matemático americano John Forbes Nash Junior, que teve sua vida retratada no filme Uma Mente Brilhante, dirigido por Ron Howard e protagonizado por Russel Crowe no ano de 2001. Em sua tese Jogos Não-Cooperativos, publicada em 1951, “Nash provou a existência de ao menos um ponto de equilíbrio em jogos de estratégias para múltiplos jogadores”, dizendo que “para que ocorra o equilíbrio é necessário que os jogadores se comportem racionalmente e não se comuniquem antes do jogo para evitar acordos”[23].
Em suma, a teoria dos jogos pode ser compreendida como um conjunto de estratégias que auxiliam os indivíduos (entendidos estes como jogadores) na tomada de suas decisões dentro de um contexto acadêmico, profissional, esportivo, etc., sendo que tais decisões, para serem bem sucedidas, devem necessariamente levar em conta também as decisões tomadas pelos outros jogadores. A palavra de ordem para desempenhar um bom papel no contexto da teoria dos jogos é estratégia e a chave para entender a teoria dos jogos é abandonar a lógica individualista, buscando sempre entender a melhor jogada a partir da interação com o outro, seja ele o aliado ou o oponente.
Alexandre Morais da Rosa, em obra editada recentemente, procura entender o processo penal a partir da teoria dos jogos. Segundo L.A. Becker, que prefacia o livro, “Assim como na guerra e no jogo, no processo cada um busca egoisticamente a vitória (desequilíbrio), não a ‘justiça’ (equilíbrio) – Huizinga”.[24] É como se o processo judicial, notadamente o penal, fosse realmente um jogo, no qual as partes em conflito buscam desesperadamente a vitória. Nessa toada, nem Ministério Público nem denunciado, nem querelante e querelado, querem justiça: eles querem convencer o julgador de que as suas razões são as mais corretas. Em suma, as partes antagônicas querem vencer o jogo!
De acordo com a teoria dos jogos, “esse comportamento egoístico produz um resultado pior para o conjunto de jogadores”[25]. Evidente, pois, quanto mais combativos e antagônicos os jogadores, mais as partes têm a perder com o jogo penal. Daí se afirmar que “Não se pode estudar isoladamente os jogadores e os julgadores. Somente na relação entre eles é que o jogo processual faz sentido”[26].
Com efeito, a teoria dos jogos aplicada ao processo penal tem por escopo auxiliar os jogadores a “moverem suas peças” adequadamente, de modo que não haja uma total disparidade entre as partes envolvidas na querela. É preciso que cada jogador tenha a exata noção do papel que desempenha dentro do processo penal. Nesse sentido, várias dicas são prescritas por Morais da Rosa:
No processo penal a sorte possui seu lugar e deve ser considerada na elaboração da estratégia e das táticas no decorrer da partida, mas guardam pertinência com a capacidade, experiência e atitude do jogador. A protagonista dos jogos processuais é sempre uma ação humana e daí a importância da teoria dos jogos.
Em texto clássico Calamandrei já afirmava que decorar as regras de xadrez não torna o sujeito um grande enxadrista, bem como saber as regras processuais não o capacita, por si, como grande jogador processual, mas sem saber as regras, todavia, não se joga. Compreender a dogmática crítica é pressuposto para quem quiser se tornar um grande jogador ou julgador.[27]
A teoria dos jogos aplicada ao processo penal afasta o mito da verdade real, pois delimita o campo de atuação dos jogadores (o que não está nos autos não está no mundo), de modo que o desempenho dos atores em cada movimentação processual será muito mais decisiva do que a utópica busca pela Justiça: “O julgamento depende da confluência de diversos fatores lançados no processo e somente se trabalha com expectativas, tendo-se aversão aos platônicos da Verdade Real”[28].
A verdade real é algo inatingível. Ou melhor, é algo que pode ser atingido apenas pelas partes envolvidas no fato criminoso no exato momento em que vivenciaram tal experiência. As versões dos fatos posteriormente contadas por vítima e réu ou querelante e querelado são necessariamente distorcidas e não podem ser tornadas absolutas (nem uma nem outra) pelo julgador.
No fim das contas, o que resta aos partícipes do processo é tão somente o jogo, a disputa pela vitória. Isso equivale a dizer que a peleja entre os jogadores em conflito na tentativa de convencer o julgador é a síntese do processo. A teoria dos jogos impõe que toda movimentação dentro das regras do jogo, toda movimentação legítima, é válida, sendo devida a vitória por aquele jogador que for mais esperto, astuto, estrategista e inteligente.
Em O Outro Gume da Faca, o jogo penal começa na montagem do crime perfeito cometido por Aldo e finda com a sua desconstrução pelo Delegado Amarante, culminando na criminalização do jovem Paulo Sérgio. O interessante é que a captura de um terceiro alheio ao fato criminoso não depõe contra o sistema, sobretudo porque é evidente que a desconstrução do crime perfeito jamais poderia redundar na captura do verdadeiro culpado – até porque, se isso fosse possível, o crime não seria perfeito. A conclusão não é das mais complexas, aliás é quase óbvia: se na lógica do jogo penal o que importa é a vitória processual, então pouco importa que a culpa recaia sobre alguém que não tenha nada a ver com o crime.
5. Considerações sobre a autoria no crime perfeito
Vulgarmente, diz-se que o crime perfeito é aquele que não deixa indícios de autoria. Nesse sentido, pode até haver arma do crime, corpo de delito e muito sangue no local de investigação; entretanto, mesmo que o crime seja descoberto em seus maiores detalhes, ele será perfeito se não houver nenhum suspeito ou, sob o ponto de vista do autor do crime, se a responsabilidade recair sob um terceiro.
Por outro lado, quando se analisa o processo penal a partir da teoria dos jogos, em que o objetivo das partes é vencer o processo e nada mais, a lógica se torna um pouco distinta, sendo quase possível afirmar que não existe crime perfeito. Diz-se “quase” porque há, em tese, uma única hipótese de crime perfeito: aquele que ninguém tem notícia. Fora isso, há amplas possibilidades para o jogo penal. Em uma palavra: se o autor do crime deixa abertura para uma investigação penal que, ao seu final, potencialmente incrimine alguém, então o crime não é perfeito.
Nessas ocasiões em que há o crime, mas não há suspeitos, geralmente se recorre à velha fórmula dos suspeitos usuais, tal como na cena do filme Casablanca (1941), em que o Major Strasser é baleado e o Capitão Renault, para proteger Rick – interpretado por Humphrey Bogart – ordena ao seu subordinado: “Procure entre os suspeitos de sempre”[29].
Mas quem seriam esses suspeitos de sempre? A quem se recorre quando não se encontra o verdadeiro autor do crime? Essa pergunta não é tão complicada de se responder quando se tem em mente a realidade social em que se vive.
Michel Foucault, filósofo francês que viveu entre os anos de 1926 e 1984, identificou em sociedades mais desenvolvidas do que a brasileira uma espécie de bode expiatório perfeito, o suspeito usual de todas as horas, que denominou de delinquente. De acordo com Foucault, o poder[30] exercido sobre os indivíduos criminalizados no interior das cadeias, além de torná-los “dóceis” e “úteis”, produz um saber sobre essas pessoas. É criada então uma espécie de “detento-modelo” ou “delinquente-modelo”, apto a disseminar a “delinquência” por toda a sociedade. Esse saber produzido nas prisões, combinado com o exercício de poder, auxilia, ainda, na seleção dos indivíduos na coletividade, de acordo com o perfil daqueles que já habitam as penitenciárias[31].
De igual modo, Francisco Bissoli Filho atenta para a situação do ex-presidiário dentro do contexto criminal brasileiro:
[...] o indivíduo selecionado e etiquetado, além de estigmatizado pela própria reação social, acaba, muitas vezes, sendo induzido a um desvio secundário, iniciando uma carreira criminal.[32]
O delinquente foucaultiano e o ex-presidiário do qual fala Bissoli filho são exemplos de bodes expiatórios clássicos. Mas há outros. Outra figura sempre pronta a responder ao chamado penal é o jovem problemático, rebelde, geralmente traficante e/ou usuário de drogas, bastante identificado com o conceito de marginalidade, que ajuda a criar e a difundir. Não por acaso, esse é o perfil de Paulo Sérgio, filho de Aldo, que assume a culpa mediante a confissão do crime que não cometeu. É emblemático que ele assuma a autoria do crime, porque a impressão que fica é que ele não assumiu a culpa apenas para inocentar e honrar o pai, mas também porque essa era a atitude que se esperava dele, do marginal.
Como dizia Foucault, o delinquente é útil porque dissemina a delinquência na sociedade, garantindo ao sistema penal material humano para criminalizar. Ou, para utilizar a imagem marcante de O Outro Gume da Faca, garantindo material humano que possibilite o jogo penal entre os atores do processo penal.
6. O jogo penal em O Outro Gume da Faca
O jogo penal em O Outro Gume da Faca inicia-se, obviamente, com o planejamento do crime e a criação do álibi por parte do personagem principal Aldo, conforme já detalhado no capítulo 3 do presente artigo.
Porém, os contornos do embate penal começam a se desenhar com a entrada em cena do Delegado Amarante e de suas desconfianças em relação a Aldo, que se iniciam a partir do resumo da noite anterior, tal qual relatado por seu auxiliar, o Comissário Penalva:
O pessoal de São Paulo continua no levantamento, mas por enquanto só apuraram isto – e passou a ler: – Confirmado: passageiro vôo 235, Rio-São Paulo, das 17 horas, chegada às 17 e 55 horas. Confirmado: registro no hotel às 18 e 30 horas, sob o nome Alto Tolentino, reserva pela MT Advogados Associados – firma do falecido, o senhor sabe: eles eram sócios.
– Continue – ordenou o delegado, derreado atrás de sua mesa, olhos fechados, como se cochilasse.
– Confirmado: testemunho do funcionário Indalécio de Souza, da recepção – pediu vistoria no aparelho de televisão, sendo imediatamente atendido. Confirmado: testemunho da telefonista Elza Vitória, do turno da noite – registro de ligação interurbana para o Rio, a cobrar, falou com a Dona Maria Lúcia – a falecida, não é? Confirmado: pedido do hóspede do apartamento 304 para ser chamado Às 21 e 30 horas e que não o incomodassem durante o jogo, atendido. Confirmado: às 23 e 35 horas o mesmo perguntou se alguém o havia chamado – negativo. Antecedentes – nada consta.
– Tem coisa confirmada demais nessa história – o delegado comentou, se erguendo: – Vamos receber o homem.[33]
No livro de Sabino, como de resto ocorre também no dia-a-dia da realidade penal, a atitude do jogador-investigador é sempre de desconfiança. Não é a inocência que se presume, mas, sim, a culpa. As confirmações sobre os passos de Aldo no dia anterior repassadas pelo Comissário Penalva não isentam Aldo da autoria do crime, mas, ao contrário, o consolidam como suspeito: para o Delegado Amarante, o álibi detalhado é indício de artificialidade, de embuste.
Posteriormente, na entrevista oficial entre o Delegado Amarante e Aldo as desconfianças do primeiro em relação ao segundo se afloram e o jogo penal se desenrola de maneira bastante explícita, por meio de um embate entre investigador e assassino. A conversa inicia assim:
– Sabe de uma coisa, Dr. Tolentino? Pode parecer estranho, mas o marido traído desperta mais desprezo que a mulher e o amante. A não ser que ele se vingue.
[...]
– Por causa disso, tem marido que mata, só para depois confessar que matou.
– Por causa disso o quê?
– Por causa da opinião dos outros. Para se resguardar, para recuperar sua auto-estima. Ou para lavar sua honra, como tem quem prefira dizer. São crimes praticados em legítima defesa da honra, reconhecida juridicamente, conforme o senhor sabe. Levam sempre à absolvição.[34]
O viés psicológico por trás da abordagem do Delegado Amarante é notório. Para ganhar o jogo penal, ele se dispõe a elogiar a conduta criminosa, na tentativa de encorajar seu adversário a realizar uma confissão. Mas o assassino permanece firme em seu desígnio de sair vencedor do embate e não cede às pressões de seu oponente.
O interrogatório prosseguiu com o Delegado Amarante perguntando que horas Aldo havia embarcado para São Paulo:
– Às cinco da tarde. Marco Túlio foi pessoalmente me levar ao Santos Dumont, aguardou até o momento em que o avião levantou vôo.
– Por quê?
A pergunta do delegado o surpreendeu:
– Por quê? Bem, talvez quisesse ter a certeza de que eu havia embarcado.
– Como é que o senhor sabia? Estava a par do que havia entre ele e sua esposa, então?
– Não, não estava. Fiquei sabendo agora. E neste instante é que isto me ocorreu.
Precisava tomar cuidado com aquele homem: qualquer descuido seria fatal. E, pelo começo, via-se que iria pôr muitas armadilhas em seu caminho.[35]
O jogo penal não é para iniciantes. Os jogadores são treinados para vencê-lo a qualquer custo. As artimanhas utilizadas por cada uma das partes têm por objetivo a resolução do quebra-cabeça penal, que pode levar à condenação ou à absolvição do indivíduo investigado. Por mais que o Delegado Amarante insistisse, Aldo era um advogado experiente e, nessa condição, insistiu em defender sua inocência, relatando ao Delegado Amarante os seus passos em São Paulo na noite anterior. A última cartada do jogador-investigador foi relativa ao jogo de futebol que Aldo alegava ter assistido:
– Assisti ao jogo aqui mesmo na delegacia.
– Aqui? – Aldo anteviu um ponto a favor, naquele jogo em que ambos agora francamente se empenhavam: – Foi no Rio, e ainda assim mostraram aqui, pela televisão?
– Pelo rádio – emendou o delegado, salvando-se no último momento. – Que é que o senhor achou?
Aldo procurava conter a emoção que o perturbava, manter a cabeça fria a cada novo lance:
– Que achei do jogo? Bem, do Botafogo hoje em dia não se pode achar grande coisa.
– Eu digo do gol.
Outra cilada? Esta era elementar demais. Ou o delegado de fato não sabia?
– Não houve gol: terminou zero a zero.
– Houve um gol anulado.
– Também não houve. Aquilo não foi gol: a bola não chegou a entrar.
O delegado riu:
– Na opinião de botafoguense...[36]
Nesse ponto do jogo, o Delegado Amarante percebe que suas possibilidades de vitória contra Aldo são mínimas. Não adiantaria insistir em outras armadilhas contra o entrevistado: o experiente advogado não cederia a elas. A declaração do jogador-investigador, então, vem em tom de resignação:
– Pode ir em paz, Dr. Tolentino. Contra o senhor, estou convencido de que não há absolutamente nada. Isto eu posso afirmar com segurança.
[...]
– Houve um momento em que o senhor duvidou de mim, não foi?
O delegado sorriu, constrangido:
– Bem, não é propriamente duvidar. O senhor custou muito a perguntar pelas crianças e achei estranho isso. Só depois é que vi que tinha elementos para imaginar que estariam bem. E não desistiu de ir ao enterro, embora eu sugerisse: outro marido qualquer teria preferido não se expor, em circunstâncias tão... constrangedoras, digamos assim. Na polícia a gente aprende a duvidar de tudo e de todos o tempo todo. Mas houve um momento sim... em que eu... Bem, agora posso revelar: a telefonista do hotel achou sua voz diferente ao acordá-lo. Cheguei a pensar que poderia ser outro homem, um cúmplice, imagine. A gente tem de pensar em tudo.[37]
Ao descartar Aldo de sua lista de suspeitos, o Delegado Amarante, na condição de jogador-investigador, tinha duas opções: ou aceitava a derrota (o que, como já ressaltado, não era realmente uma opção válida), ou buscava outro culpado. Buscou, então, outro culpado: assim é que Paulo Sérgio, o filho de Aldo, o qual os jornais da cidade retratavam como o “marginal que um dia até quisera possuir a madrasta”[38] e o jovem “atormentado por problemas, dado às drogas”, que haviam provocado “uma fixação sexual na esposa do próprio pai”[39], desde o início, se apresentou como uma opção viável.
Como já mencionado, Paulo Sérgio se enquadrava tão bem no perfil do assassino que nem mesmo a posterior confissão desesperada do pai, com riqueza de detalhes, foi suficiente para convencer o Delegado Amarante de que ele havia cometido um erro. Aliás, esse conceito de “erro” é bastante relativizado ao final da história, pois fica a sensação no leitor de que o Delegado Amarante, em verdade, cometeu um verdadeiro acerto ao voltar seus olhos para Paulo Sérgio, a ponto de ver garantida a seu favor a vitória no jogo penal.
Para Aldo, ficou a sensação de derrota no jogo penal e a opção do suicídio por ingestão de comprimidos na cena final. A novela mostra que de nada adianta tentar enganar o jogador-investigador por meio da execução de um crime perfeito, pois o sistema sempre acaba selecionando e capturando alguém para responder pelo ato criminoso. No caso de Aldo, sua atitude e sua derrota levaram o filho à cadeia e à morte.