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O jogo penal em 'O Outro Gume da Faca'

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Agenda 20/09/2016 às 15:28

7. Conclusão

Em O Outro Gume da Faca, Fernando Sabino parece ter desvendado aquilo que Alexandre Morais da Rosa chamaria muitos anos mais tarde de Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, na medida em que concluiu sua novela demonstrando que filosoficamente não há espaço para um crime perfeito, isto é, não há lugar para um crime que passe impune pela investigação estatal. A lógica do jogo penal faz com que o Estado, por meio de seus diversos agentes, necessite incriminar ou criminalizar alguém, mesmo que esse alguém seja inocente.

Assim, embora Aldo tenha eliminado Maria Lúcia, a esposa adúltera, e seu amante Marco Túlio sem deixar qualquer rastro que ligasse o crime à sua pessoa, o Delegado Amarante, o jogador-investigador, não aceitou facilmente a derrota, por meio da conclusão do inquérito penal sem a indicação de um suspeito. Na falta de provas mais robustas, ou mesmo indícios que conduzissem ao verdadeiro autor do crime, a Autoridade Policial recorreu a subterfúgios jurídicos (e aos próprios preconceitos disseminados pela imprensa) para identificar em Paulo Sérgio, filho de Aldo, o perfil do criminoso e, com ele, a possibilidade de vitória no jogo penal. Não é despropositado sublinhar que Paulo Sérgio era considerado um jovem rebelde e problemático, sobretudo por ser usuário de drogas – perfil que se encaixa perfeitamente no conceito de delinquente trabalhado por Foucault e pelos criminólogos em geral.

Sem sombra de dúvida, o que chama mais a atenção na leitura dessa novela policial de Fernando Sabino é que, ao final, ressoa evidente como o jogador-investigador não visa a reconstituição dos fatos, a busca da verdade real ou a promoção da Justiça, mas, sim, o desempenho pleno de sua função no jogo penal, que é o de investir alguém na condição de suspeito/culpado. Descartado Aldo como autor do crime, o Delegado Amarante viu a necessidade de voltar suas atenções para outra pessoa, mesmo sem nenhuma prova contundente. Bem entendido: o Delegado Amarante não é um agente público simplório ou de duvidosa inteligência, ele é um jogador de ataque e, como tal, sua função é encontrar a qualquer custo o suspeito/culpado do crime investigado.

Ser bem sucedido no jogo penal significa vitória sobre alguém ou imputação de culpa a alguém, mesmo que à custa de um erro de julgamento. Esse “erro”, como visto, converte-se em acerto no momento em que o sistema penal consegue selecionar um de seus “suspeitos usuais” para responder pelo crime em investigação, dando fôlego à manutenção do status quo criminal.

A conclusão final, ao que parece, é que a condenação de um tipo específico de cidadãos, de indivíduos previamente rotulados, não enfraquece a lógica por trás do aparelho penal, mas legitima o jogo jogado entre as partes. A confissão de Paulo Sérgio, em última análise, acaba resolvendo o crime cometido por Aldo e isso faz com que, no final das contas, a máquina penal tenha funcionado.


Referências

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FOUCAULT, Michel. Omnes et Singulatim: para uma crítica da razão política. Tradução de Selvino J. Assman. Florianópolis: Edições Nephelibata, 2006.

________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 27. ed. Petrópolis, Vozes, 2003.

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LANI, Adriano Ramon. A Literatura da Cultura de Massa. Disponível em:  http://monografias.brasilescola.com/educacao/a-literatura-cultura-massa.htm.

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ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca. 3. ed. São Paulo: Ática, 1999.

SANT’ANA, Raquel Vieira Parrine. Contradições do detetive: a literatura policial como problema para a teoria literária em obras de Machado de Assis, Jorge Luis Borges e Roberto Bolaño. 2012. 141 p. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo.

STRECK, Lenio Luiz e TRINDADE, André Karam (Orgs). Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013.


NOTAS

[1] De acordo com Michel Foucault, “Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a responsabilidade de um delito, revela-se o caráter delinqüente cuja lenta formação transparece na investigação biográfica. A introdução do ‘biográfico’ é importante na história da penalidade. Porque ele faz existir o ‘criminoso’ antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste. [...] O delinqüente se distingue também do infrator pelo fato de não somente ser o autor de seu ato (autor responsável em função de certos critérios da vontade livre e consciente), mas também de estar amarrado a seu delito por um feixe de fios complexos (instintos, pulsões, tendências, temperamento). A técnica penitenciária se exerce não sobre a relação de autoria mas sobre a afinidade do criminoso com seu crime” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 27. ed. Petrópolis, Vozes, 2003, p. 211).

[2] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 293.

[3] Importante ressalvar que, com a sua obra, Alexandre Morais da Rosa tem o nítido propósito de melhorar (ou democratizar) o processo penal utilizando-se da teoria dos jogos. Parece-me que a intenção do autor não seja propriamente defender que o processo penal deva ser necessariamente entendido como jogo, mas, já que assim o é, o autor advoga que os partícipes da relação se preparem para tanto, inclusive dando dicas.

[4] RÊGO, Eduardo de Carvalho. Culpa e punição dos irmãos parricidas: o romance de Dostoiévski sob a perspectiva da pesquisa em Direito e Literatura. In.: OLIVO, Luis Carlos Cancellier de (Org.). Dostoiévski e a Filosofia do Direito: o discurso jurídico dos irmãos Karamázov. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012, p. 81-112.

[5] Cf. STRECK, Lenio Luiz e TRINDADE, André Karam (Orgs). Direito e Literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013.

[6] LANI, Adriano Ramon. A Literatura da Cultura de Massa. Disponível em:  <http://monografias.brasilescola. com/educacao/a-literatura-cultura-massa.htm>.

[7] GUIMARÃES, J.C. O romance policial é subliteratura? Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br /posts/opcao-cultural/o-romance-policial-e-subliteratura>.

[8] LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 73.

[9] Idem, ibidem.

[10] SANT’ANA, Raquel Vieira Parrine. Contradições do detetive: a literatura policial como problema para a teoria literária em obras de Machado de Assis, Jorge Luis Borges e Roberto Bolaño. 2012. 141 p. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo.

[11] Em entrevista intitulada Para Além do Crime, constante na 3ª edição de O Outro Gume da Faca, Fernando Sabino esclarece que o referido texto “É uma novela, muito embora hoje em dia a designação nem sempre se refere a um gênero literário entre o conto e o romance, confundida pelo grande público com novelas de televisão. Junto com O bom ladrão e Martini seco, já lançadas pela Editora Ática, compõe uma trilogia do amor, intriga e mistério sob o título A faca de dois gumes” (SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca. 3. ed. São Paulo: Ática, 1999, p. 5).

[12] Idem, ibidem, p. 9.

[13] Idem, ibidem, p. 19.

[14] SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca..., p. 22.

[15] Idem, ibidem, p. 24-25.

[16] SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca..., p. 42.

[17] Idem, ibidem, p. 44.

[18] Idem, ibidem, p. 51.

[19] SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca..., p. 79-80.

[20] Idem, ibidem, p. 88.

[21] Idem, ibidem, p. 101.

[22] ALMEIDA, Alecsandra Neri de. Teoria dos Jogos: as origens e os fundamentos da Teoria dos Jogos. Disponível em: <http://www.gilmaths.mat.br/Artigos/Teoria%20dos%20Jogos.pdf>.

[23] Idem, ibidem.

[24] ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 1.

[25] ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos..., p. 1.

[26] Idem, ibidem, p. 7.

[27] Idem, ibidem, p. 15-16.

[28] Idem, ibidem, p. 11.

[29] Tradução livre de “Round up the usual suspects”.

[30] Segundo Foucault, “O poder não é senão um tipo particular de relações entre os indivíduos. E tais relações são específicas: por outras palavras, elas nada têm a ver com a troca, a produção e a comunicação, mesmo que lhes estejam associadas. O traço distintivo do poder é o de que determinados homens podem, mais ou menos, determinar inteiramente a conduta de outros homens – mas jamais de modo exaustivo e coercitivo. Um homem acorrentado e espancado é submetido à força que se exerce sobre ele. Não ao poder. Mas se for possível levá-lo a falar, quando seu último recurso teria podido ser o de segurar sua língua, preferindo a morte, é porque foi impelido a comportar-se de um determinado modo. Sua liberdade foi sujeitada ao poder. Ele foi submetido ao governo. Se um indivíduo pode permanecer livre, por mais limitada que possa ser sua liberdade, o poder pode sujeitá-lo ao governo. Não há poder sem recusa ou revolta em potência” (FOUCAULT, Michel. Omnes et Singulatim: para uma crítica da razão política. Tradução de Selvino J. Assman. Florianópolis: Edições Nephelibata, 2006, p. 67).

[31] Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir..., p. 232.

[32] BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmas da criminalização: dos antecedentes à reincidência criminal. Florianópolis: Obra Jurídica, 1998, p. 24.

[33] SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca..., p. 49-50.

[34] Idem, ibidem, p. 66-67.

[35] Idem, ibidem, p. 69.

[36] SABINO, Fernando. O Outro Gume da Faca..., p. 71-72.

[37] Idem, ibidem, p. 75-76.

[38] Idem, ibidem, p. 86.

[39] Idem, ibidem, p. 86.

Sobre o autor
Eduardo de Carvalho Rêgo

Advogado. Doutor em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL; Professor de Filosofia do Direito e de Ética Profissional no Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina - CESUSC; ex-Assessor Jurídico do Centro de Apoio Operacional do Controle de Constitucionalidade CECCON, do Ministério Público do Estado de Santa Catarina; ex-Chefe de Gabinete da Conselheira Substituta Sabrina Nunes Iocken, do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RÊGO, Eduardo Carvalho. O jogo penal em 'O Outro Gume da Faca'. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4829, 20 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44807. Acesso em: 5 nov. 2024.

Mais informações

Texto submetido ao III Colóquio Internacional de Direito e Literatura, promovido pelo Kathársis (Centro de Estudos em Direito e Literatura - IMED). Publicado também no site emporiododireito.com.br em novembro de 2015.

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