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A defesa do consumidor em juízo

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Agenda 17/11/2003 às 00:00

CAPÍTULO III

1 INTERESSES METAINDIVIDUAIS

Como anota Washington de Barros Monteiro o direito objetivo subdivide-se em direito público e direito privado. Toda regra de direito "enquadra-se forçosamente num ou noutro ramo do direito".

Essa distinção formulada pelos romanos, segundo o saudoso civilista, refere-se a um direito "destinado a disciplinar os interesses gerais da coletividade (publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat)" e a um direito privado, que por seu turno, "é o conjunto de preceitos reguladores das relações dos indivíduos entre si (privatum, quod ad singulorum utilitatem)".

No entanto, adverte Hugo Nigro Mazzilli, o "interesse público consiste na contraposição do interesse do Estado ao interesse do indivíduo (como ocorre no Direito Penal), enquanto o interesse privado contrapõe os indivíduos em seu inter-relacionamento (como no Direito Civil).

Contudo, comenta Alberto Trabucchi, a distinção entre direito público e direito privado não resulta, contudo, de linha separativa precisa; é sujeita a alterar-se no tempo e no espaço, segundo as tendências sociais e políticas, conforme o idealismo que anime as nações.

Exatamente entre esses dois interesses (público e privado), como destaca Mazzilli sob o foco da lição de Cappelletti, é que se situam os denominados interesses metaindividuais ou coletivos, "referentes a um grupo de pessoas (como condôminos de um edifício, os sócios de uma empresa, os membros de uma equipe esportiva, os empregados do mesmo patrão). São interesses que excedam o âmbito estritamente individual mas não chegam a constituir interesse público".

Pondera, entretanto, o próprio autor, que o Código do Consumidor passou a disguí-los segundo sua origem: "a) se o que une interessados determináveis é a mesma situação de fato (por exemplo, os consumidores que adquirem produtos fabricantes em série com defeito), temos interesses individuais homogêneos; b) se o que une interessados determináveis é a circunstância de compartilharem a mesma relação jurídica (como os consorciados que sofrem o mesmo aumento ilegal das prestações), temos interesses coletivos em sentido estrito; c) se o que une interessados indetermináveis é a mesma situação de fato (por exemplo, os que assistem pela televisão à mesma propaganda enganosa), temos interesses difusos".

Enuncia-se, pois, como interesses ou direitos metaindividuais os difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Ainda sobre o tema, registra Aluísio Gonçalves de Castro Mendes que a palavra "interesse", no plano comum ou técnico, tem variado de significação. Mas na acepção jurídica, o termo dispõe de conceito bem mais amplo, ora mostrando a intimidade de relações entre a pessoa e as coisas, ora a pretensão que se baseia ou pode basear-se em direito.

Sem querer alavancar outra discussão, o certo é que os incisos I e II, do parágrafo único, do artigo 81 do Código do Consumidor estampam as definições de interesses ou direitos difusos e interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código; a) "os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; b) "os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica".

Constatada, assim, a transindividualidade e a natureza indivisível do objeto, "estar-se-á diante de interesses essencialmente coletivos, mas que poderão ser classificados como difusos ou coletivos em sentido estrito".

2 INTERESSES DIFUSOS

Conceitua o Código do Consumidor como difusos os direitos "transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato" (artigo 81, parágrafo único, inciso I).

É difuso, portanto, o Direito caracterizado, no aspecto subjetivo, pela indivisibilidade de seu objeto, que é compartilhado por um número indeterminável de pessoas; no aspecto objetivo, pela ausência de relação jurídica base entre esses titulares.

Expõe o ilustre José Carlos Barbosa Moreira que os interesses difusos "não pertencem a uma pessoa isolada, nem a um grupo nitidamente delimitado de pessoas (ao contrário do que se dá em situações clássicas como a do condomínio ou a da pluralidade de credores numa única obrigação), mas a uma série indeterminada – e, ao menos para efeitos práticos, de difícil ou impossível determinação, cujos membros não se ligam necessariamente pôr vínculo jurídico definido. Pode tratar-se, por exemplo, dos habitantes de determinada região, dos consumidores de certo produto, das pessoas que viviam sob tais ou quais condições socioeconômicas, ou que se sujeitam às conseqüências deste ou daquele empreendimento público ou privado".

A demanda que tem por objetivo interesses difusos, como por exemplo a relativa à propaganda enganosa veiculada pela televisão, busca, em última análise, a tutela jurisdicional em benefício de todos os consumidores atingidos, uma vez que, além de ser o bem jurídico tutelado indivisível, é também incalculável o número de pessoas atingidas.

Assim, decidida a lide em favor dos consumidores lesados, a sentença faz coisa julgada erga omnes, evitando-se, com isso, a contradição de julgados (artigo 103, inciso I).

Adverte Aluísio Castro Mendes, por outro lado, que a correta distinção entre interesses difusos e interesses coletivos se faz necessária, "na medida que as duas categorias estão submetidas a regime diverso em termos de coisa julgada. A sentença proferida em relação aos inrteresses difusos produzirá efeitos erga omnes, enquanto nas soluções dos conflitos envolvendo interesses coletivos, a eficácia estará adstrita ao grupo, categoria ou classe".

A diferenciação entre essas duas espécies (direitos difusos e direitos coletivos) deverá levar em conta, como sublinha Aluísio Mendes, "se as pessoas são ou não determinadas e se estão ligadas por meras circunstâncias de fato ou por vínculo jurídico relevante para o caso".

3 INTERESSES COLETIVOS

Os interesses ou direitos coletivos são conceituados como sendo os "transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base" (inciso II).

Diferem, pois, dos interesses difusos, exatamente porque a relação jurídica base naqueles é preexistente à lesão a interesses de grupos, categorias ou classes de pessoas. Nos interesses difusos, ao revés, a relação jurídica nasce em razão da lesão ou da ameaça de lesão.

Segundo Hugo Mazzilli, "tanto os interesses difusos como coletivos são indivisíveis, mas distingue-se pela origem: os difusos supõem titulares indetermináveis, ligados por circunstâncias de fato, enquanto os coletivos dizem respeito a grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou indetermináveis, ligadas pela mesma relação jurídica básica".

Apesar de terem um ponto de contato (já que reúnem grupo, categoria ou classe de pessoas determináveis), os interesses coletivos e os interesses individuais homogêneos também se distinguem de forma clara: "só os interesses individuais homogêneos são divisíveis e supõem origem de fato comum".

Daí resulta que, nas ações coletivas, a sentença proferida fará, nos termos do inciso II do artigo 103 do CDC, coisa julgada ultrapartes, ou seja, beneficiará limitadamente ao grupo, categoria ou classe.

Exemplificando: proposta ação coletiva por determinada associação que congrega membros de uma mesma categoria, a decisão favorável beneficiará, além de seus filiados, todos os demais membros da mesma categoria, independentemente de estarem ou não filiados. O interesse, por ser indivisível, a todos irá beneficiar.

4 INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

São interesses ou direitos individuais homogêneos "os decorrentes de origem comum", de que são titulares grupos, categorias ou classes de pessoas determinadas ou determináveis, que sejam divisíveis e decorram das mesmas circunstâncias de fato (inciso III).

Esses interesses São essencialmente individuais e apenas acidentalmente coletivos. Para serem qualificados como homogêneos, "precisam envolver uma pluralidade de pessoas e decorrer de origem comum, situação esta que "não significa, necessariamente, uma unidade factual e temporal"".

A defesa coletiva de direitos individuais, além de atender ao princípio de economia processual – desafogando o Poder Judiciário, para que este cumpra tempo hábil e qualidade suas funções constitucionais -, facilita o acesso do cidadão comum à Justiça, salvaguardando o princípio da igualdade da lei.

Daí concluir-se que, como mais uma vez adverte Hugo Mazzilli, "tanto os interesses individuais homogêneos como os difusos originam-se de circunstâncias de fato comuns; entretanto, são indetermináveis os titulares de interesses difusos, e o objeto do seu interesse é indivisível; já nos interesses individuais homogêneos, os titulares são determinados ou determináveis, e o dano ou a responsabilidade se caracterizam por sua extensão divisível ou individualmente variável".

Exemplificando: "as vítimas de uma publicidade enganosa veiculada por vários órgãos de imprensa e em repetidos dias ou de um produto nocivo à saúde adquiridos por vários consumidores num largo espaço de tempo e em várias regiões têm, como causa de seus danos, fatos com hemogeneidade tal que os tornam a ‘origem comum de todos eles".

5 JURISPRUDÊNCIA

"PROCESSO CIVIL. AÇÃO COLETIVA. CUMULAÇÃO DE DEMANDAS. NULIDADE DE CLÁUSULA DE INSTRUMENTO DE COMPRA-E-VENDA DE IMÓVEIS. JUROS. INDENIZAÇÃO DOS CONSUMIDORES QUE JÁ ADERIRAM AOS REFERIDOS CONTRATOS. OBRIGAÇÃO DE NÃO-FAZER DA CONSTRUTURA. PROIBIÇÃO DE FAZER CONSTAR NOS CONTRATOS FUTUROS. DIREITO COLETIVOS. INDIVIDUAIS HOMOGÊNEO E DIFUSOS, MINISTÉRIO PUBLICO. LEGITIMIDADE, DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. RECURSO PROVIDO. I – O Ministério Público é parte legítima para ajuizar ação coletiva de proteção ao consumidor, em cumulação de demandas, visando: a) a nulidade de cláusula contratual inquinada de multas (juros Mensais); b) a indenização pelos consumidores que lá firmaram contratos em que constava tal cláusula.; c) a obrigação de não mais inserir contratos futuros a referida cláusula. II – Como já assinalado anteriormente (Resp. 34.155-MG), na sociedade contemporânea, marcadamente de massa, e sob os influxos de uma noca atmosfera cultural, o processo civil, vinculado estritamente aos princípios constitucionais e dando-lhes efetividade, encontra no Ministëior Público uma instituição de extraordinário valor na defesa da cidadania. III – Direitos (ou interesses) difusos e coletivos se caracterizam como direitos transindividuais, de natureza indivisível. Os primeiros dizem respeito a pessoas indeterminadas que se encontram ligadas por circunstâncias de fato; os segundo, a um grupo de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária através de uma única relação jurídica. IV – Direitos individuais homogêneos são aqueles que tem a mesma origem no tocante aos fatos geradores de tais direitos, origem idêntica essa que recomenda a defesa de todos a um só tempo. V Embargos acolhidos". (STJ, REsp. 141491/SC, EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL, Corte Especial, Rel. Min. WALDEMAR SVEITER, Dj 01.08.2000 - p. 182).

"PROCESSUAL CIVIL. PARA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI E DEFENDER DIREITOS DIVISÍVEIS. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA FIGURAR NO PÓLO ATIVO. EXTINÇÃO DO PROCESSO. O Ministério Público tem legitimidade para figurar no pólo ativo de ação civil pública, quando na defesa de interesse difuso ou coletivo, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (artigo 81, parágrafo único, incisos I e II da lei n.º 8.078/90) de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. O pedido de suspensão de pagamento de tributo e a respectiva repetição de indébito não se inserem na categoria de interesses difusos ou coletivos, porquanto, são divisíveis e individualizáveis. Interesse coletivo, na dicção da lei, não se confunde com interesse público ou da coletividade, pois, aquele (interesse público) não entende como sendo uma simples realidade quantitativa, dependente do número de indivíduos que o partilha. O pedido de sustação de pagamento de tributo, cumulado com repetição de indébito, não tem conteúdo de interesse público, a ser protegido pela ação civil pública, que não pode substituir a de repetição de indébito, pois, se cuida de direito individual, determinado, quantificado, eis que, cada contribuinte efetua pagamento de quantia certa, em período considerado. Os contribuintes não são consumidores, não havendo como se vislumbrar sua equiparação aos portadores de direitos difusos ou coletivos (Lei n.º 7.343, artigo 1.º, inciso IV). Em se tratando, in casu, de direitos individuais homogêneos, identificáveis e divisíveis, titularidades e quantificáveis, devem ser postulados, na esfera jurisdicional, pelos seus próprios titulares, já que, na sistemática do nosso direito, salvo exceção legal, ninguém poderá pleitear, nome próprio, direito alheio. Recurso improvido. Decisão unânime". (STJ, REsp. 175.888, 1.ª Turma, Rel. Min. DEMÓCRITO REINALDO, Dj 03.05.1999 - p. 101).

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6 A TUTELA DOS INTERESSES DIFUSOS NOS DIREITOS NORTE-AMERICANO, FRANCÊS, ITALIANO E BRASILEIRO

Foi nos Estados Unidos que se iniciou a discussão sobre a possibilidade de tutela jurisdicional dos interesses difusos. E tal se deu em razão da especial importância dada ao meio ambiente.

A particular natureza dos problemas da tutela dos interesses difusos, em particular do ambiente, e a documentada exigência de garantir uma resposta efetiva às exigências sociais de controle das atividades poluidoras, oferecem argumento determinantes aos que militam a favor do alargamento dos poderes judiciais, desde que não existia um limite expressamente previsto pelas normas estatutárias. Entretanto, essa ampliação denotará um controle judicial sobre os poderes administrativos, temendo alguns que os tribunais passem a interpretar o seu papel como se fossem autorizados a interferir nas decisões macroeconômicas, sem ter em conta que existem outros poderes institucionais a quem competem as funções de direção política. Porém, efetivou-se o entendimento de que a jurisprudência delineia-se de forma pluralística, em um sistema de governo aberto, que consente aos juizes e aos cidadãos a participação em um espaço institucional impensável no passado.

Na verdade, o direito francês não tem bem definida a distinção entre interesse coletivo e o interesse pessoal. Entretanto, é claro ao exigir, no mínimo, um interesse pessoal e atual como condição para instauração de qualquer pleito.

Quanto aos limites, a decisão administrativa deve ter uma incidência sobre a situação pessoal do autor. O interesse lesado pode ser de ordem material ou moral e pertencer a uma pessoa física, cuja natureza do interesse seja individual e privada, ou a uma pessoa jurídica, cujo interesse tenha natureza pública se se tratar de entes públicos, ou coletiva se se tratar de associações privadas.

A tutela dos interesses difusos no direito italiano também goza de critérios da jurisprudência administrativa.

O conceito do direito difuso foi desenvolvido pela jurisprudência, que criou a oportunidade de conciliar as exigências de tutela com os caracteres de um processo informado por critérios de tipo subjetivo e com uma tradição rigorosa em admitir em juízo situações não exclusivamente individuais nas limitadas hipóteses expressas de ação popular.

Por fim, cumpre salientar que o direito brasileiro, antes da Lei n.º 7.347, de 24.07.85, não dispunha de muitas fórmulas para defesa global, em juízo, desses interesses metaindividuais, mas apenas:

a) a ação popular, ajuizada pelo cidadão;

b) algumas ações civis públicas já cometidas ao MP (ação reparatória de danos ao meio ambiente);

c)a autorização a entidades de classe para postular interesses coletivos em juízo.

Assim, mister se tornava encontrar fórmula que, dentro da tradição do Direito Pátrio, desse melhor acesso ao Judiciário quando de conflitos a propósito de interesses difusos ou coletivos.

E foi a Carta Magna de 1988 que não só ampliou o rol dos legitimados ativos para a defesa dos interesses transindividuais, mas também inovou com outras espécies de demandas coletivas nominadas.

Dentro das alterações trazidas pela Constituição da República Federal do Brasil de 1988 estão:

- as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente;

- o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político, organização sindical, entidade de classe ou associação;

- a ampliação do objeto da ação popular;

- cometimento ao sindicato da defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria;

- a ampliação do rol dos legitimados ativos para a ação de inconstitucionalidade;

- a ampla legitimação concedida ao Ministério Público para as ações civis públicas para defesa de interesses coletivos e difusos;

- a legitimação ativa conferida aos índios, suas comunidades e organizações, para ações em defesa de seus interesses.

Não resta dúvida que a Lei da Ação Civil Pública (Lei n.º 7.347/85), por permitir a propositura de inúmeras ações e servir de base para novas leis que ampliaram sua abrangência, marcou época.

Reportando-se a ela sobrevieram a Lei n.º 7.853, de 24.10.89, que cuidou da ação civil pública em defesa das pessoas portadoras de deficiência, a Lei n.º 7.913, de 07.12.89, que dispõe sobre a ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários, a Lei n.º 8.069, de 13.07.90, Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei n.º 8.078/90, de 11.09.90, Código de Defesa do Consumidor e a Lei n.º 8.864, de 11.06.94, que instituiu a ação de responsabilidade por danos causados por infração da ordem econômica.

7 DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A Constituição Federal de 1988 conferiu ao Ministério Público atribuições que o tornaram instrumento essencial do Estado Democrático de Direito. Seu perfil constitucional permite chamá-lo de guardião da sociedade e de seus interesses constitucionalmente assegurados, de forma que a amplitude do campo de atuação do parquet e a sua independência são fatores diretamente proporcionais à consecução do bem-comum, objetivo final do Estado. Assim, a definição das atribuições do Ministério Público de forma a garantir o cumprimento de seu papel institucional e sua instrumentalização devem ser privilegiadas pelo Estado, considerado em tese, e por qualquer governo que se pretenda democrático.

Em seu art. 127, caput, a Constituição Federal de 1988 classifica o Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional de Estado e elege como suas incumbências a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Suas funções institucionais estão enumeradas no art. 129, cujo exame revela a dimensão que o legislador constituinte pretendeu conferir ao Ministério Público, pois, além de sua atuação no inquérito policial e no processo penal, o parquet atuará como guardião dos direitos constitucionalmente assegurados, inclusive quando atacados pelos próprios poderes públicos (inciso II); do patrimônio público e social (III); da constitucionalidade dos atos normativos (IV); dos direitos e interesses das populações indígenas (V); dos interesses difusos e coletivos (III); entre outras atribuições.

Ressalte-se que o rol do art. 129 é meramente exemplificativo, nos termos do inciso IX (exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade). Portanto, o legislador constituinte originário não considerou a melhor solução restringir a função do Ministério Público àquelas hipóteses expressamente previstas na Constituição Federal. Ponderou que, em face da relevância de sua atuação, deveria deixar clara, antes que algumas vozes sustentassem o contrário, a possibilidade de extensão da atividade do parquet a outros casos que escapassem à sua previsão naquele momento. O legislador, portanto, permite o exercício de outras funções, desde que compatíveis com sua finalidade. Nem assim, conforme se demonstrará adiante, o Ministério Público ficou protegido contra investidas que buscassem restringir sua atuação.

Para fins deste estudo, deve-se destacar a Lei Complementar 75 de 1993, que confere ao parquet competência para promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de "interesses individuais indisponíveis, homogêneos, sociais, difusos e coletivos"(art. 6º, VII, d) e para "propor ação civil coletiva para a defesa de interesses individuais homogêneos"(art. 6º, XII).

8 O PRINCÍPIO DA EFETIVIDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Como é sabido, no Brasil o direito de acesso à Justiça e à efetividade da tutela jurisdicional é garantido pela Constituição Federal, em seu art. 5º, XXXV.

Na Constituição da República Portuguesa tal direito é assegurado pelo artigo 20, n.º 1, que dispõe que "A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos."

Na Constituição Espanhola o direito é garantido no artigo 24, n.º 1, estatuindo que "Todas las personas tienen derecho a obtener la tutela efectiva de los jueces y tribunales en el ejercicio de sus derechos e interesses legítimos, sin que, en ningún caso, pueda producirse indefensión."

Nos Estados Unidos da América o acesso ao Judiciário também é amplo e vem disciplinado pelo artigo 3.º da Constituição Federal e pela Emenda XI.

Assim, também na França o acesso à justiça é considerado direito fundamental dos cidadãos.

Assim, podemos notar que o direito à tutela judicial efetiva, passa, portanto, no final do século XX a ser encarado como direito e garantia fundamental dos sistemas jurídicos que pretendem ser modernos e igualitários e que pretendam garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.

Podemos ressaltar que este direito à efetividade decorre tanto do direito constitucional de ação como do devido processo legal. Isto porque quando a Constituição assegura amplo poder de acesso ao Judiciário, estabelece também o meio para tirar a jurisdição de sua inércia, sendo este meio o processo.

9 O DESENVOLVIMENTO DA LITIGIOSIDADE E A BUSCA DA EFETIVIDADE DO PROCESSO. A EXPERIÊNCIA DE OUTROS PAÍSES

Após a segunda metade do século XX, começaram a surgir novas idéias no campo do direito processual civil no mundo. Passou-se a encará-lo mais como um serviço que se presta à população (como tantos outros: transporte, educação, saúde, segurança pública) do que um campo dominado por processualistas insensíveis à realidade.

A partir dessa idéia central, procurou-se encontrar os principais entraves ao bom desempenho do aparelho judiciário e descobriu-se que eles estavam localizados em pontos essenciais e muitas vezes comuns em diversos sistemas jurídicos.

Numa análise preliminar, constatou-se que o acontecimento processual marcante deste último meio século foi sem dúvida o considerável aumento da massa litigiosa. As demandas apresentadas aos tribunais multiplicam-se em condições inquietantes. Isto resultou da evolução rápida da sociedade, onde as leis sucedem-se em ritmo acelerado e fatalmente geram um contencioso mais abundante. Por outro lado, o pessoal judiciário praticamente não aumentou em número e portanto o resultado mais claro de semelhante situação consiste em que os tribunais não conseguem deter essa maré e consequentemente só podem proferir seus julgamentos ao fim de muitos meses, quando não de muitos anos.

Esse primeiro fenômeno é notavelmente agravado pelo fato de que o volume de litígios não se limitou a aumentar em quantidade, pois também se modificou em nível qualitativo fundamentalmente.

No século XIX, os litígios versavam em geral sobre direitos individuais. Atualmente é diferente o contexto. A grande maioria dos processos envolve questões que impregnam nossa vida cotidiana e sociologicamente o processo deslocou-se na direção das camadas populacionais de condições mais modestas, o que fez surgir a preocupação do acesso dessas pessoas à tutela jurisdicional.

Antigamente, quando os processos giravam em torno de questões que atingiam camadas relativamente abastadas da população, o acesso à Justiça quase não suscitava problema: contratava-se um advogado e provia-se facilmente as despesas judiciais. Em nossos dias, muitos hesitam em aventurar-se a um processo do qual se ignora quanto custará.

Com relação a este problema a França viu-se necessitada de instituir um sistema de assistência judiciária, compatível um pouco a sua Seguridade Social, no tocante à Saúde Pública. Assim, em 1991, editou-se uma lei que propiciasse àqueles desprovidos de recursos financeiros, o acesso gratuito á justiça.

Também em decorrência da evolução qualitativa das lides, teve origem a chamada onda renovatória do excessivo individualismo que impregna o processo civil.

O processo de origem romano-germânica, que influenciou os ordenamentos da Espanha, Portugal e França, ainda possui como tradição a concepção do processo de duas partes, com uma rígida concepção para determina a legitimidade de partes. Até há pouco esse padrão atendia bem às necessidades para o qual foi criado; quase inexistiam conflitos com contornos sociais. O máximo que poderia ocorrer eram processos com número bem elevado de litisconsortes, mas para esses casos o modelo tradicional ainda servia.

A situação, no entanto, complica-se de maneira acentuada á medida que cada vez mais as relações de direito material tornam-se complexas e passam a envolver uma quantidade enorme de pessoas. No esquema tradicional, os sujeitos da relação jurídica de direito material, normalmente, são os legitimados para estarem no processo na qualidade de partes. Mas para hipóteses em que a lei prevê um fato envolvendo milhares ou até milhões de pessoas, como utilizar-se do processo montado no princípio da dualidade de partes, caso esse fato hipotético ocorra na realidade e se queira resolver a situação litigiosa judicialmente?

A solução para diversos países veio pela importação de um instituto existente no direito norte-americano, a class action, na qual qualquer membro da classe pode agir em nome próprio para vindicar direitos ou defender interesses de todo o grupo.

No direito francês chamou-se esse tipo de ação de action collective.

A segunda preocupação decorrente dos aumentos quantitativo e qualitativo do processo concerne á duração dos processos. No início do século passado a lentidão dos processos era talvez algo de irritante, mas se acabava por se resignar a ela, atribuindo a responsabilidade ao formalismo judicial, a cujo respeito ocasionalmente se pilheirava. Hoje, levada em conta a natureza dos litígios, já não é possível conformar-se: uma pensão alimentar, uma indenização por despedida ou destinada a ressarcir um dano não pode esperar meses. Eis porque a celeridade se converteu num dos primeiros imperativos da Justiça moderna.

Como solução para o problema, na grande maioria das nações, há uma tendência de se privilegiar a oralidade nos procedimentos, a rapidez na fase de cognição judicial, a liberdade dos atos processuais e a atribuição de maior autoridade ao juiz no comando do processo.

A razão por essa preferência está na percepção de que o processo, para melhor acompanhar a evolução de sua época, deve ser mais dinâmico; ser operado de modo que a providência a ser nele emitida venha o mais breve possível.

Sob este aspecto, na França a reforma se iniciou a partir de 1981. Essa reforma caracterizou-se antes de tudo pela notável ampliação dos poderes do juiz. Ela também se caracterizou pela instituição de um juiz encarregado da instrução, pela instituição de medidas provisórias, pela inversão do contraditório e pelo favorecimento da chamada solução alternativa dos litígios, isto é, praticamente, a conciliação e a mediação.

Não se deve olvidar também da instituição da execução provisória, que permite executar de imediato a sentença de primeiro grau, embora impugnada por apelação.

Para traçarmos experiência norte-americana sobre a efetividade do processo, devemos principiar pela contraposição que se costuma estabelecer entre os ordenamentos anglo-saxônicos e os da família romano-germânica, no que respeita aos papéis desempenhados pelo órgão judicial, de um lado, e pelas partes, de outro, em aspectos importantes do funcionamento do mecanismo processual. Os expositores do direito dos Estados Unidos se preocupam em caracterizá-lo pela primazia reconhecida às partes não só na iniciativa de instaurar o processo e de fixar-lhe o objeto – traço comum dos sistemas jurídicos ocidentais – senão também na determinação da marcha do feito, em suas etapas iniciais, e na colheita das provas em que se há de fundar o julgamento da causa. Para designar tal modelo, emprega-se corretamente a expressão "adversarial system" e por imposição a ele qualifica-se de "inquisitorial" o modelo adotado na Europa continental e no resto do mundo sujeito á sua influência, onde as mencionadas atividades ficariam de preferência confiadas ao juiz.

No entanto a opção pela concessão de maior autoridade ao juiz vem permeando também o ordenamento jurídico norte-americano. Não há de se estranhar, portanto, que os ordenamentos anglo-saxônicos admitam várias exceções à regra do predomínio das partes e, em determinados setores, reservem espaço maior que o costumeiro à intervenção do juiz.

Vale ressaltar também que nos Estados Unidos, a duração de um processo que percorra todas as etapas previstas é bastante longa. Daí a propensão, largamente difundida, a encerrar com maior brevidade, mediante um settlement, o combate forense. Até existirão casos em que a propositura da ação civil, ao invés de possuir o intuito de ver julgada a lide, serve como simples instrumento de pressão para obter acordo em condições favoráveis. O extraordinário florescimento dos chamados "meios alternativos de resolução de litígios" (ADR, na conhecida expressão inglesa) se deve às dificuldades normalmente encontradas por quem vai a juízo.

A admiração generalizada pelo cinema americano, por sua vez, pode fazer supor que a máquina judiciária daquele país funcione de modo completo e fulminante, como nos filmes policiais. Não obstante, os dados que se colhem acerca da duração dos seus processos surpreendem.

Em muitos lugares, um feito civil de itinerário completo (isto é, que chegue ao trial ) dura comumente, no primeiro grau de jurisdição, nada menos que de três a cinco anos.

Também o excessivo custo do processo caracteriza-se como entrave ao mundo anglo-saxônico. Os sistemas de assistência judiciária não se mostram capazes de ministrar remédio bastante. É por sinal a crescente preocupação com o problema (e com o da exagerada duração os pleitos) que vai começando a produzir alto número de mudanças importantes no ordenamento processual dos EUA.

10 A BUSCA PELA EFETIVIDADE DO PROCESSO NO BRASIL

Como já mencionado retro, a Constituição Federal de 1988 passou a assegurar como direito fundamental de caráter individual e coletivo, o acesso ao judiciário para se buscar tutela dos direitos lesados ou ameaçados (art. 5.º, XXXV da CF).

Neste sentido, devemos atualmente fazer uma releitura do art. 75 do Código Civil de 1916 (Súmula 150 do STF), uma vez que este artigo é hoje interpretado sem que se veja nele um resquício da teoria imamentista da ação, entendendo-se que a afirmação de que "a todo direito corresponde uma ação, que o assegura " tem o sentido de afirmar que a toda posição jurídica de vantagem corresponde um remédio processual capaz de tutelá-lo.

No que diz respeito ao âmbito de atuação do processo, o excesso de individualismo do Direito Processual Civil brasileiro começou a ser abrandado pela Lei da Ação Popular (Lei n.º 4.717/65). De acordo com este diploma legal qualquer cidadão é legitimado a propor "ação popular". Posteriormente surgiram inúmeros novos diplomas legais que consagraram regras capazes de estabelecer legitimidade extraordinária para demandar em juízo na defesa de interesses metaindividuais. Antes de qualquer outra, há que se fazer referência à Lei da Ação Civil Pública, Lei n.º 7.347/85. Dispõe o art. 5.º deste diploma que são legitimados a propor "ação civil pública" o Ministério público, a União, os Estados, os Município, e ainda pelas autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista, quando estas estiverem constituídas há pelo menos um ano e incluírem entre suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, ou ao patrimônio artístico, histórico, estético, turístico e paisagístico.

Pouco tempo depois da Lei da Ação Civil Pública, a constituição de 1988 ampliou o leque de casos em que se atribui legitimidade para a defesa em juízo dos interesses individuais e coletivos: consagrou outros remédios de tutela dos interesses metaindividuais, como o mandado de segurança coletivo (art. 5.º, LXX); e a ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, "a", e art. 103).

Após a Constituição de 1988, outros diplomas legislativos vieram a ampliar este leque, sendo de menção obrigatória o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90), que estabelece em seu art. 201, V, a legitimidade do Ministério Público para propor "ação civil pública" para a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência, e o Código de proteção e Defesa do consumidor (Lei n.º 8.078/90), que consagrou o instituto da "ação coletiva para a tutela de interesses de consumidores". (art. 91).

Diante de um tão grande número de remédios processuais colocados à disposição da sociedade e destinados à tutela de interesses metaindividuais, em suas duas espécies – coletivos e difusos -, além dos interesses individuais homogêneos, que também são alcançados por aqueles instrumentos, não resta outra alternativa senão afirmar, como o faz a mais abalizada doutrina pátria, que o Brasil é hoje, o país mais rico do mundo quando se trata de tutela destes interesses tão valorizados pela sociedade moderna.

Quanto à problemática da instrução probatória, podemos afirmar que os entraves não são tanto da legislação que apresenta menos defeitos que o mau uso dos poderes instrutórios do juiz fazem parecer.

De qualquer maneira, pode-se afirmar que nossa legislação processual confere ao magistrado os meios capazes de dirigir a atividade de produção de provas, sendo-lhes mesmo lícito a determinação, ex officio, da produção dos meios de prova que se façam necessários para a formação de seu convencimento.

No que se refere ao gozo pleno do resultado do processo a que tem direito a parte vitoriosa, temos que o processo de conhecimento de cunho declaratório e constitutivo continuam, como sempre, capazes de satisfazer integralmente os titulares de posições jurídicas de vantagem. Já a tutela jurisdicional condenatória executiva permanece, muitas vezes, a prejudicar a plena efetividade do processo, posto que a demora do processo de conhecimento de procedimento ordinário, somado às mazelas do processo executivo, é capaz de provocar situações em que o direito material seja alvo de um dano grave, de difícil ou impossível reparação.

Para se solucionar este problema sempre se utilizou o processo cautelar, o qual acabou transformado em técnica de sumarização da cognição, permitindo a prestação de uma tutela jurisdicional satisfativa com base em juízos de probabilidade. A recente reforma por que passou o Código de Processo Civil brasileiro, porém, deu ao processo cautelar a sua devida destinação, qual seja a de proteção do processo, servindo de meio capaz de assegurar que o provimento jurisdicional satisfativo seja verdadeiramente efetivo, afastando-se com isso o periculum in mora.

A tutela preventiva não-cautelar, de outro lado, foi também consagrada com a previsão do art. 273 do Código de Processo Civil, do instituto da tutela antecipada. Trata-se de forma de tutela jurisdicional satisfativa através da qual se permite – com base em juízo de probabilidade – a imediata satisfação do direito material

Além da tutela antecipada, outros instrumentos destinados a assegurar ao titular de uma posição jurídica de vantagem exatamente aquilo a que faça jus são agora conhecidos do direito brasileiro. Assim, entre outros, podemos referir a tutela jurisdicional específica das obrigações de fazer e de não fazer, consagrada no art. 84 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor e, posteriormente no art. 461 do Código de Processo Civil. Além deste exemplo, não se poderia deixar de fazer referência á tutela inibitória, espécie de tutela jurisdicional de caráter preventivo (mas, também aqui, não cautelar), através da qual se busca impedir a prática de atos ilícitos, assegurando-se assim proteção efetiva ao titular da posição jurídica de vantagem mediante a prevenção do ilícito.

Por fim, devemos ter também como cânon da efetividade do processo, o princípio da economia processual, de acordo com o qual o processo deve assegurar o máximo de resultado com o mínimo de dispêndio de tempo e energias, pois a demora na entrega da prestação jurisdicional é um elemento capaz de afastar qualquer esperança de efetividade do processo.

Por outro lado não podemos nos olvidar de que um processo extremamente rápido mas sem nenhuma segurança é tão inadequado quanto um processo extremamente seguro mas excessivamente lento. Há portanto que se garantir um processo que, tão rápido quanto possível, estabeleça a maior segurança que se possa obter através dos provimentos jurisdicionais.

A este respeito, o artigo 331 do Código de Processo Civil, criou a audiência para conciliação, especificação e justificação de provas, oportunidade em que tentada a conciliação, sendo esta infrutífera, as partes estabelecem os pontos controvertidos da demanda e protestam pelas provas que pretende utilizar para demonstrar sua razão. Neste momento, o juiz também já dá o despacho saneador, praticando assim uma economia de meses na duração do processo.

11 TUTELAS DIFERENCIAIS

A longa histórica da civilização, que veio desaguar nas idéias liberais que fomentaram a Revolução Francesa, acabou, no Século XIX, dando ao Estado uma figura mínima e à vontade individual a dimensão maior no plano dos regramentos jurídicos. Para romper com o velho regime aristocrático, não havia valor a prestigiar que fosse maior do que a liberdade cujo caráter quase absoluto passou a dominar a teoria dos negócios jurídicos.

Porque todos eram livres para enunciar suas vontades e, assim, dispor de seus bens e contrair obrigações, o regime contratual encontrou seu apogeu na consagração do pacta sunt servanda. O contrato, oriundo da vontade livre do contratante, era lei a ser respeitada e cumprida, sem resistência.

Como, todavia, o indivíduo era o centro de toda a normatização jurídica, mesmo quando descumprisse o contrato, não poderia, de forma alguma, ser pessoalmente compelido a executar a prestação prometida ao credor. Toda a sanção legal destinada a garantir o cumprimento da obrigação teria de recair sobre seu patrimônio, porque, tal como proclamava o art. 2.092 do Código Napoleão, o princípio dominante era no sentido de que todo aquele que se obriga pessoalmente fica sujeito a sofrer as conseqüências de sua obrigação sobre todos os seus bens presentes e futuros.

Quando as obrigações eram de dar, a execução forçada proporcionada pela tutela estatal cumpria-se in natura, porque fácil era alcançar o bem devido sem necessitar de coagir o devedor pessoalmente. Bastava que os agentes do poder apreendessem ditos bens e os entregassem ao credor. Mas, quando a prestação estivesse intimamente ligada a uma ação pessoal do devedor - a um facere ou um non facere - esbarrava a concepção liberalista numa barreira intransponível. Ninguém poderia, na ótica de então, ser compelido, contra a sua vontade, a adotar qualquer tipo de comportamento pessoal. Logo, ninguém poderia ser levado pela execução forçada a praticar prestações típicas das obrigações de fazer e não fazer. Da antiga regra romana - nemo ad factum potest cogi - o direito francês do Século IX exportou para todo o mundo ocidental o preceito de que "toute obligation de faire ou de ne pas faire se résout en dommages et intérêts en cas d’inexécution de la part du débiteur".

Na plenitude do liberalismo, então, não havia lugar, em princípio, para a execução específica das prestações de fazer e não fazer. Por ser intocável o devedor em sua liberdade pessoal, uma vez recalcitrasse em não cumprir esse tipo de obrigação, outro caminho não restava ao credor senão conformar-se com as perdas e danos. Teria de apelar para a execução substitutiva ou indireta.

O direito processual, praticamente inexistente como técnica ou ciência autônoma, apresentava-se como mero apêndice do direito material. Nada acrescentava em termos de medidas criativas para dar maior eficácia aos preceitos da ordem substancial. Era, aliás, o próprio direito material que predeterminava os expedientes instrumentais que correspondiam aos direitos subjetivos de fundo quando descumpridos ou violados. Não cabia, assim, ao Poder Judiciário maior flexibilidade no uso dos remédios do processo.

Havia um processo ordinário ou comum a ser observado no julgamento das lides e que teria de servir, às causas em geral, e as ações especiais eram rigorosamente destinados a casos típicos que não poderiam ser dirimidos na sistemática do procedimento comum. Não havia maleabilidade alguma no terreno do processo.

Foi com o desvio do foco do indivíduo para a sociedade que se conseguiu divisar na passagem para o Século XX, a existência de interesses sociais que estavam a reclamar a atenção do ordenamento jurídico, forçando, assim, a ampliar seus domínios além do milenar binômio direito público - direito privado.

O Século XX pôde impor esse modo de ver na medida em que o Estado Liberal foi suplantado, politicamente, pelo Estado Social. Nessa concepção do Estado Democrático, a organização da máquina estatal deixou de ser mera declaradora de direitos fundamentais para transformar-se em agente realizador desses mesmos direitos.

Em nome de tais concepções, o Estado assumiu a intervenção na vida econômica e social para proclamar e fazer respeitar os direitos coletivos e difusos e, para tanto, não podia continuar a se valer apenas dos procedimentos judiciais forjados no Século XIX, sob o predomínio das idéias liberais puras.

Aos poucos foram surgindo ações de feitio coletivo para instrumentalizar direitos até então nem sequer conhecidos da ordem jurídica tradicional, como os direitos indivisíveis da comunidade, isto é, da sociedade como um todo, ou de grandes parcelas da sociedade. Ao mesmo tempo ampliava-se a ordem jurídica material para agasalhar os direitos transindividuais ou coletivos, e concebiam-se novos procedimentos judiciais que pudessem lhes dar cobertura quando necessário fossem discuti-los em juízo.

Essa abertura para o social não só fomentou a preocupação com os problemas gerados pela convicção da necessidade de tutelar adequadamente os novos direitos sociais, como também impôs aos operadores do direito processual a conscientização de que o processo, em si mesmo, ainda que não cogitando de ações coletivas, era sempre um instrumento tutelar da cidadania. O direito de ação não mais se via como simples meio de o indivíduo reagir contra a violação de algum direito subjetivo. Era, isto sim, o direito cívico de acesso à Justiça, como uma das garantias fundamentais do moderno Estado Democrático de Direito. Era ele mesmo a expressão de uma das maiores garantias da paz social e da realização política dos ideais da nação agasalhados em sua ordem constitucional.

Passou-se a divisar no processo, desde então, metas que iam além da simples composição dos litígios e que se comprometiam com as aspirações do devido processo legal, tanto no plano formal como no material. A missão do judiciário a ser cumprida por meio do processo, a partir de então, vinculou-se à preocupação de efetividade, ou seja, à perseguição de resultados que correspondessem à melhor e mais justa composição dos litígios.

Foi, à luz dessa nova constatação, desse novo posicionamento institucional que se insinuou e se fez prevalecer a teoria das tutelas diferenciadas.

Não era mais aceitável sujeitar os litigantes a poucos e inflexíveis procedimentos, um apenas para cada tipo de ação ou pretensão, que muitas vezes se apresentavam inconvenientes e incômodos como verdadeiras camisas-de-força para partes e juízes.

A principal preocupação dessa nova visão da tutela jurisdicional era não só a de criar novos procedimentos como abrir, sempre que possível, um leque de opções que permitisse, conforme as conveniências da parte e de seu caso, contar com mais de uma via processual à sua disposição; e dentro de um mesmo procedimento, fosse possível inserir-lhe expedientes de aceleração e reforço de eficácia, tendentes a proporcionar ao direito material da parte a mais plena tutela conforme particularidades de cada caso.

Nesse sentido, as tutelas diferenciadas se prestam a valorizar o moderno processo de resultados, onde o compromisso maior da jurisdição é com a efetividade da prestação posta à disposição do litigante.

A essência do pensamento de Chiovenda, que se apresenta como o grande idealizador da efetividade processual, consiste justamente na afirmativa de que o processo, para ser efetivo, deverá apoiar-se num sistema que assegure a quem tem razão uma situação jurídica igual à que deveria ter se derivado do cumprimento normal e tempestivo da obrigação. "E, na medida em que se evidencie a possibilidade de dano ou perigo de perecimento do direito, essa situação deve ser, desde logo e especificamente, protegida, o que é, precisamente, a hipótese do art. 461 (do CPC brasileiro), no que diz respeito às obrigações de fazer e não fazer".

No dizer de Arruda Alvim, não prevalece a autonomia do processo e do direito material em sua plenitude quando se trata das chamadas tutelas diferenciadas, pois o que se dá é a adaptação ou a submissão da disciplina processual a uma ou várias situações materiais. "Vale dizer, a tutela diferenciada deve ser compreendida a partir de uma reaproximação entre direito e processo. Ou ainda, configura-se o instituto processual especificamente em função de dada situação de direito material".

12 NO DIREITO BRASILEIRO

O direito brasileiro anteriormente à Lei n.º 8.078/90, que introduziu de forma conceitual dentro do direito positivo brasileiro, em noção tripartite os interesses metaindividuais, apenas elencava matérias que definia como possível a sua tutela coletiva, o que dentro de nossa categorização seria impossível definir-se previamente, até mesmo por isso a doutrina já construía a percepção que os elementos caracteizados no artigo 1.º da Lei n.º 4.737/85, eram apenas exemplificativos.

De fato, com a Lei n.º 8.078/90, artigo 81, incisos I, II e III, foram introduzidos as estruturas de acoplamento que permitem a inclusão de forma aberta destes interesses dentro do sistema, tornando-os passíveis de uma práxis decisória de forma mais estável, caracterizados como difusos, coletivos e individuais homogêneos.

a) Interesses difusos

Os interesses difusos são espécie do gênero interesses metaindividuais - interesses coletivos latu sensu - e ocupam o topo da escala de indivisibilidade e falta de atributividade a um determinado indivíduo ou grupo determinado, sendo a mais ampla síntese dos interesses de uma coletividade, verdadeiro amálgama de interesses em torno de um bem da vida.A conceituação normativa dos interesses difusos foi introduzida no direito positivo brasileiro através da Lei n.º 8.078/90, artigo 81, parágrafo único, inciso I, que os definiu como os interesses ou direitos "transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato".

b) Interesses coletivos( stricto sensu )

O interesse coletivo é a espécie de interesse metaindividual referente a um grupo ou coletividade como veículo para sua exteriorização e todo grupo pressupõe um mínimo de organização, sendo que o caráter organizativo é traço básico distintivo desta espécie de interesse, como se verifica da leitura do art. 81, inciso II da Lei n.º 8.078/90, que os define como "os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica".

c) Interesses Individuais Homogêneos

Cumpre, preliminarmente, dizer que compreendemos os interesses individuais homogêneos como espécie de interesse metaindividual muito próximo dos interesses coletivos, a que se refere o artigo 81, inciso II do CDC, uma vez que a doutrina, em geral, considera esta espécie de interesse metaindividual apenas como um interesse individual exercido de forma coletiva.

Sobre o autor
Antônio Carlos Tadeu Borges dos Reis

advogado processualista, pós-graduado em Direito do Consumidor pela EMERJ/UNESA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Antônio Carlos Tadeu Borges. A defesa do consumidor em juízo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 134, 17 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4489. Acesso em: 20 dez. 2024.

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