I – INTRODUÇÃO
O objeto deste trabalho é a análise de uma norma estadual de índole protetiva difusa, que trata de matéria sujeita a regramentos oriundos de distintas entidades federativas, tema ainda pouco explorado em nossa doutrina. O estudo tópico é útil para emprestar realidade ao debate acerca das competências constitucionais, que enfrenta grandes dificuldades quando os Estados começam as exercer suas atribuições legislativas de forma mais ampla.
Em 24 de junho de 2002, o Presidente da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro promulgou a Lei n° 3871/2002, decorrente de rejeição ao veto do Executivo ao Projeto de Lei n° 2064/2001, de iniciativa parlamentar. Assim dispõe sua ementa:
"Proíbe o uso de palavras, expressões e ilustrações consideradas imorais em propagandas sobre a oferta de serviços sexuais e dá outras providências"
O art. 1°, da lei, repete a ementa (Fica proibido.. .); o 2°, estende as restrições às peças publicitárias sobre o funcionamento de "Casas Noturnas e Termas"; O 3°, estabelece uma pena entre mil e dez mil UFIRs para "as pessoas jurídicas responsáveis pela criação, confecção e distribuição das peças publicitárias" de conteúdo proibido; o 4°, determina que a reincidência "provocará o cancelamento do registro das respectivas firmas"; o 5°, estabelece a vigência imediata e revogação das disposições em contrário.
Houve forte dissenso entre as Comissões de ALERJ durante a tramitação do projeto, o que era de se esperar, pois o Parlamento é a caixa de ressonância dos anseios e sentimentos da população, freqüentemente conflitantes com as pretensões dos agentes econômicos. A Comissão de Constituição e Justiça considerou o projeto constitucional, tendo em vista que "carrega em seu bojo a preservação da moral e dos bons costumes." À mesma conclusão chegou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania. Entendeu que o projeto, "longe de criar algum mecanismo de censura, pretende apenas impor limites à oferta desses tipos de serviço." A Comissão de Economia, Indústria, Comércio e Turismo considerou o projeto inconstitucional, por ofender a competência privativa da União para legislar sobre propaganda comercial, prevista no art. 22, inciso XXIX, da Constituição Federal-CF. Já a Comissão de Emendas Constitucionais e Vetos, que atuou após o retorno do projeto vetado, entendeu que não versava sobre propaganda comercial propriamente dita, pois está voltado à proteção da infância e da juventude, sendo constitucional, com fulcro no art. 24, inciso XV, da CF. Afirmou, ainda, que ele objetivava impor limites à oferta de serviços sexuais.
II – A PONDERAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA LIVRE INICIATIVA, PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR, DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE
Mesmo que nem sempre expressamente pautadas em dispositivos constitucionais, bem andaram as Comissões que apoiaram o projeto, pois o Direito não é um aglomerado de competências e regras estanques, mas antes um sistema dinâmico, cujas normas, permanentemente, efetivam alguns princípios constitucionais enquanto comprimem outros. É o que se extrai dos ensinamentos de Karl Larenz, que sistematiza o problema da colisão de valores, princípios e regras, analisando a jurisprudência da Suprema Corte alemã. Sugere um enfoque em duas etapas.
"Trata-se, em primeiro lugar, de saber se, segundo a "ordem de valores" contida na Lei Fundamental, se pode estabelecer uma clara prevalência valorativa de um dos bens aqui em questão face ao outro. Haverá que dizer, sem vacilar, que à vida humana e, do mesmo modo, à dignidade humana, corresponde um escalão superior ao de outros bens, em especial os bens materiais... Finalmente, têm validade os princípios da proporcionalidade, do meio mais idôneo ou da menor restrição possível. Nestes termos, a lesão de um bem não deve ir além do que é necessário ou, pelo menos, é "defensável", em virtude de outro bem ou de um objetivo jurídico reconhecido como de grau superior." [1]
A leitura da Constituição não permite concluir que haja uma preferência valorativa da liberdade absoluta para propagandear produtos e serviços, decorrente dos princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência, previstos no inciso IV, do art. 1° e inciso IV, do art. 170, em detrimento dos difusos direitos: à proteção ao consumidor, previsto no inciso V, do mesmo artigo; ao respeito pelos valores éticos e sociais da pessoa e da família, versado no inciso IV, do art. 221; e à preservação da infância e da juventude, referido no inciso XV, do art. 24.
Cabe aos meios de comunicação colaborarem para a preservação dos valores da sociedade, pois existem a partir e para ela, nunca para sua deterioração. A mídia periódica impressa, nítido foco principal da lei, goza de imunidade tributária, prevista no art. 150, inciso VI, alínea d, da CF, exatamente porque deve servir à veiculação das informações socialmente úteis. Não faria sentido a manutenção de tão grande desigualdade tributária, porque ofensiva ao princípio da isonomia, se seus beneficiários pudessem agir voltados apenas ao lucro, como as empresas comerciais comuns.
O respeito e a colaboração com os valores constitucionais, a preservação da família entre eles, é a contrapartida natural do privilégio constitucional. Ao contrário das demais atividades econômicas, que contribuem para a manutenção da sociedade através de prestações pecuniárias compulsórias, dos jornais, periódicos e meios de comunicação em geral, foi exigido um retorno institucional e social. O "respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família" é um princípio expresso no art. 221, inciso IV, da Constituição, que deve ser utilizado para interpretar qualquer norma que verse sobre direitos e deveres dos beneficiários de privilégios constitucionais e detentores de meios de comunicação.
Acresça-se que a edição da lei estadual nem seria necessária se a mídia houvesse exercido o seu papel de intérprete da Constituição [2], ao qual ninguém pode ser furtar, e exercido um autocontrole sobre o teor dos anúncios que publica. As empresas possuem a responsabilidade de respeitar o bem comum decorrente de sua inserção social, gozem ou não de privilégios, princípio que está expresso no art. 154, da Lei n° 6.404/76 (S.A.), mas que aplica-se à qualquer forma de exercício empresarial de atividade econômica, por uma questão de isonomia.
A demonstração da plena constitucionalidade da lei faz-se através da ponderação entre os efeitos de sua incidência, tanto sobre os postulados [3] constitucionais que busca resguardar quanto sobre aqueles por ela afetados. A primeira pergunta deste procedimento de verificação é se a intervenção do legislador estadual era necessária a preservar ou restaurar a aplicação de algum princípio constitucional.
Embora a resposta esbarre em um juízo discricionário dos representantes da sociedade, acerca da gravidade do problema enfrentado e da dimensão aceitável da solução alvitrada, é patente que nosso Estado sofre com a crescente criminalidade e a deterioração do tecido social. Não se trata de moralismo, mas de proteção e respeito ao ser humano em formação. Os problemas decorrentes da desagregação da família são mais latentes em alguns Estados, tanto em razão de terem sido pólo atrativo de migração de mão-de-obra desqualificada quanto pelo seu acentuado perfil turístico, que gera maior demanda por atividades como a regulada na lei em questão.
A segunda pergunta é se a Lei em tela, que consubstancia o Poder de Polícia estadual sobre atividades que ocorrem em seu território, inviabiliza ou turba em excesso o exercício de algum direito constitucional. A resposta só pode ser negativa, pois a atividade de publicidade não fica obstada nem inviabilizada economicamente pela restrição ao seu conteúdo. A Lei estadual também não trouxe qualquer óbice à existência, freqüência, tamanho ou qualidade das inserções na mídia veiculadora, tendo apenas imposto a compatibilização de seu teor aos valores sociais.
A terceira questão a ser colocada é se a norma estadual colide com alguma lei federal, o que poderia comprometer a integralidade do sistema jurídico. Mais uma vez a resposta é negativa. Muito ao contrário, ao editar o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei n° 8069/90, o legislador federal já havia ponderado o princípio da livre iniciativa com os de proteção do consumidor, da criança e do adolescente, adotando uma postura claramente em prol destes últimos. Os arts. 78 e 81, do Estatuto, constituem algumas das normas gerais protetivas da criança e do adolescente, cuja edição compete à União, nos termos do § 1°, do art. 24, da CF. Cabe aos Estados suplementá-las, com fulcro no § 2°, do mesmo artigo, para garantir efetividade aos princípios constitucionais. Assim dispõem os referidos dispositivos do ECA:
"Art. 78. As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com advertência de seu conteúdo.
Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagens opacas."
"Art. 81. É proibida a venda à criança ou adolescente de:
(...)
V – revistas e publicações a que alude o art. 78."
A quarta, é se o meio escolhido é proporcional ao fim almejado. Haveria outro igualmente eficiente mas menos gravoso para as empresas sujeitas à norma? Igualmente negativa esta última resposta, pois a restrição quanto ao conteúdo de imagens e vocabulário é muito menos cerceadora do que as soluções estabelecidas nas leis federais, como a utilização de tarjas pretas ou embalagens opacas, pois preserva o acesso tanto à imagem quanto à mensagem escrita, embora as condicione, como já aduzido. A adequação do linguajar é plenamente proporcional ao fim escolhido, uma vez que a meta constitucional protetiva está sendo perseguida sem que seja obstado o pretenso direito a divulgar os serviços sexuais. Os princípios constitucionais foram adequadamente ponderados e a restrição à livre iniciativa restringiu-se ao mínimo necessário.
Ponderar é conduta interpretativa voltada a verificar a adequação da solução escolhida, seja pelo legislador, julgador ou administrador, às finalidades almejadas. A razoabilidade é a conclusão de um processo de ponderação, que é um método de interpretação e aplicação de princípios, nunca uma chave para qualificar sem justificar. Razoável, portanto, é a decisão justa, demonstrável pelas regras de ponderação.
Afirmar ser uma norma justa ou injusta apenas porque é razoável ou irrazoável, sem demonstrar que tal conclusão decorre da adequação ou colidência com princípios, importa em propor a substituição da vontade coletiva legítima, que sempre se presume ter buscado a solução mais razoável, pela individual de quem analisa a norma. Afastar a aplicação de normas sob a sucinta alegação de serem irrazoáveis é uma sedutora tentação a intérpretes e aplicadores do Direito, que importa em transformar um princípio interpretativo [4] em material.
A razoabilidade não permite uma análise apriorística, transparentemente sindicável. Exatamente por isso, sua utilização para a pronta aferição acerca da legitimidade das normas representa a introdução de amplíssima variável no processo de análise, equivalente a utilização de fórmulas vazias como o suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), tão bem criticadas por Kelsen por respaldarem qualquer opinião. [5] O que justifica a rejeição da norma, seja pelo Executivo ou pelo Judiciário, é a conclusão quanto a ser inconstitucional, sempre decorrente de uma demonstração pautada na ponderação com princípios constitucionais.
Em atenção à presunção de legitimidade da atuação do Poder Público, também não se pode afirmar inconstitucional uma lei restritiva apenas porque, intervém com o princípio da livre iniciativa, pois presume-se ser a restrição voltada à preservação de outros princípios constitucionais [6]. Esta conclusão decorre de uma confusão entre os conceitos de liberdade e anarquia, que é o efeito do exercício desrespeitoso da liberdade de alguns em detrimento da de outros.
A dignidade da pessoa humana, princípio central da Constituição, previsto no art. 1°, inciso III e preservado pela lei estadual, não é apenas das crianças, adolescentes, bem como consumidores/leitores desavisados em geral, que também têm direito a não serem ofendidos com expressões chulas. As próprias pessoas que trabalham nas atividades cuja publicidade está sendo regrada merecem que sejam respeitados os "valores sociais do trabalho", princípio sediado no mesmo dispositivo constitucional, art. 1°, inciso IV, que resguarda a livre iniciativa. Embora exerçam profissão não regulamentada e pouco respeitada, não precisam ter sua atividade associada a palavras e expressões imorais, mesmo que uma parcela delas concorde com isso [7].
A jurisprudência nacional vem respaldando a norma protetiva dos menores, como demonstra o acórdão unânime do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio do Janeiro, do qual extrai-se:
"Não obstante a brilhante argumentação da apelante, estou em que a capa de sua revista, objeto de apreensão e motivadora da autuação contra a qual se insurge, contém, sim, a mensagem obscena a que se refere o parágrafo único do artigo 78 do Estatuto da Criança e do Adolescente. (...) Assim, pouco importa estejam as bancas de jornais a exibir constantemente capas semelhantes e revistas congêneres. Se tal ocorre deve igualmente ser coibido, por força de lei que o determina. A ocorrência de crimes que restam impunes não justifica que se fechem os olhos ao cometimento de outros. (...) Observe-se bem, ademais, que o dispositivo legal dado como infringido pela Apelante fala em mensagem, não em fotografia ou imagem pornográfica ou obscena. Ora, a mensagem não se transmite apenas pela imagem, senão também pela palavra. (TJ-RJ, Ac. Unân. Do Conselho da Magistratura, pub. 26-06-2002, Proc. 972/2001, Rel. Des. José Lucas de Brito – Editora Peixes Ltda x Ministério Público).
O acórdão parece ter sido voltado à Lei n° 3.871/2002, publicada na véspera, que efetiva e dimensiona, em âmbito local, normas protetivas já há muito vigentes em nível federal. É importante ressaltar que as atividades cuja divulgação esta lei disciplina são tipificadas no Código Penal. A leitura dos arts. 229 e 230 evidencia o enquadramento penal do negócio implementado pelas termas, casas de massagem e congêneres, que importa em manter lugar para que outras pessoas realizem a prostituição. Dispõem os referidos artigos:
Casa de Prostituição
"Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente:
Pena – reclusão, de dois a cinco anos, e multa.
Rufianismo
Art. 230. Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça.
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Cabe ao Estado tolher e reprimir os crimes e não garantir sua ampla divulgação, o que foi adequadamente percebido quanto da elaboração da norma em questão, embora não diretamente expressado. A impunidade corrompe a formação educacional e moral, pois torna sem sentido agir bem. A educação é pautada em orientações, estímulos e sanções, assim como o Direito. Em uma época globalizada é muito mais difícil aos pais resistirem à invasão da mídia, que traz mensagens desvirtuadas (como aquelas cujo controle é objeto da lei) inseridas ao lado de informações jornalísticas verdadeiras, o que lhes empresta confiabilidade.
Não se pode ignorar a qualidade dos costumes vigentes, o que não quer dizer que a sociedade nada deva fazer para melhorá-los. É através da boa formação da infância e da juventude que isto é possível. O Constituinte deixou clara sua prioridade ao proclamar, através do art. 226, que "A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado." Sob o ponto de vista meramente civil, a família é um conjunto de pessoas agregadas por laços de afeto e/ou sangue, protegida por regras específicas do Código Civil. Para constituir a base da sociedade, no entanto, é também necessário que haja homogeneidade de valores sociais, o que só se consegue através da restrição às condutas que atentem contra eles. Vale trazer atualíssimo ensinamento de Montesquieu, que lembra o quanto é importante proteger as novas gerações de influências ruins:
"Somos geralmente senhores para incutir em nossos filhos nossos conhecimentos; somo-lo ainda mais para incutir nossas paixões.
Se isso não acontece é porque o que foi feito na casa paterna é destruído pelas impressões externas.
Não é a nova geração que se degenera; essa só se perde quando os homens maduros já estão corrompidos." [8]
III – COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS CONCORRENTES E PRIVATIVAS – AS ZONAS DE INTERSEÇÃO DECORRENTES DA PRESENÇA DE DIREITOS DIFUSOS A SEREM PRESERVADOS
O federalismo se constrói sobre a diferenciação local, orientada pela distinção entre os problemas e a valoração das soluções, peculiares a cada grupamento social. A renúncia a qualquer delineamento estadual das relações entre pessoas, identificadas ou não, colabora para o unitarismo disfarçado. Ensina Geraldo Ataliba:
"Parece de clara evidência e fácil aceitação que a extensão territorial dos Estados há de requerer, com maior ou menor intensidade, um tipo de regime político que melhor assegure a proximidade entre governantes e governados". [9]
A Constituição de 1988 estabeleceu uma repartição de competências, dividindo-as em privativas, concorrentes e comuns, sendo estas voltadas à atuação material, embora sempre pautada na legalidade. A mais difícil delimitação concerne às concorrentes e privativas, pois, usualmente, tratam de matérias que podem ser reguladas sob ângulos distintos, o que justifica competências também distintas, embora não inteiramente compartimentadas. É o que ocorre na norma em questão, que tanto pode ser vista sobre o enfoque puramente civil ou comercial quanto pelo viés protetivo. A leitura da Constituição, que trata do assunto em seu art. 24, incisos VIII e XV, auxilia o entendimento:
"Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)
VIII. responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
(...)
XV. proteção à infância e à juventude;"Grifos nossos
Em relação aos Direitos Tributário e Administrativo, a competência legislativa estadual está associada à sua necessária inclusão nas relações jurídicas por eles regidas. Já no que concerne às normas de caráter difuso, a justificativa de atribuição não é a inserção direta mas a função de curador dos interesses dispersos da coletividade. Relações jurídicas bilaterais puras entre administrados, mesmo que consecutivas e em grande número, não são passíveis de serem reguladas pelos Estados, por estarem incluídas no âmbito dos Direitos Civil e Comercial, de competência privativa da União, nos termos do art. 22, inciso I, da CF. Também não poderiam adentrar nas relações individuais entre os clientes e as agências de propaganda ou entre estas e os meios de publicidade.
Um bom exemplo de aplicação da regra de repartição de competências proveio da tentativa de impedir os Shoppings Centers de cobrarem pelo uso do seu estacionamento, através da Lei Estadual n° 2.050/92. Foi, liminarmente, declarada inconstitucional pelo STF, por ter invadido a competência privativa da União para legislar sobre relações entre sujeitos específicos e identificados [10]. O legislador estadual não levou em conta que o preço é a essência do negócio, devendo ser livremente tratado em um regime de livre iniciativa. Por ser a prestação voltada ao agente econômico, não pode ser estabelecida por normas de proteção difusa, salvo se presente alguma patologia a ser erradicada, como especulação em épocas de grande carência de produtos essenciais. Em princípio, normas de tal natureza devem ser focadas nas condutas opostas, provindas das empresas em direção ao público, pois este é o objeto da proteção, sejam elas antecedentes, concomitantes ou posteriores à efetivação do negócio. [11]
Situação oposta à acima referida seria a de uma lei estadual que regulasse parcela das relações jurídicas dos mesmos Shoppings Centers com seus consumidores em geral, desde que versasse sobre relações difusas cuja tutela também coubesse aos Estados. Assim, se norma estadual vedasse a publicidade pornográfica ou de produtos proibidos em áreas comuns abertas ao público ou delas visualizável, onde circulassem menores de idade, não estaria invadindo competência da União, pois tal restrição não incidiria sobre as relações objetivas e delineadas entre comerciantes e clientes. Constituiria mais uma forma de garantir efetividade aos princípios constitucionais expressos na CF e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
O que justifica a competência dos Estados é a presença de relações jurídicas difusas, caracterizadas pela ausência de destinatários específicos, embora interessem a todos, o que acarreta uma maior necessidade de proteção pelo Poder Público [12]. Daí a convocação feita pelo Constituinte para que atuem, pois a padronizada normatização genérica da União tende a não contemplar as diferenciadas realidades sociais locais.
O Código de Defesa do Consumidor-CDC [13], através de seu art. 81, parágrafo único, inciso I, define interesses ou direitos difusos como os "transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato". Ada Pellegrini, em seu trabalho sobre as Novas tendências na tutela jurisdicional dos interesses difusos, assim os conceitua:
"O outro grupo de interesses metaindividuais, o dos interesses difusos propriamente ditos, compreende interesses que não encontram apoio em uma relação-base bem definida, reduzindo-se o vínculo entre as pessoas a fatores conjunturais ou extremamente genéricos, a dados de fato freqüentemente acidentais e mutáveis: habitar a mesma região, consumir o mesmo produto. (...)
Completa, afirmando que "a satisfação de um interessado implica, necessariamente, a satisfação de todos, ao mesmo tempo em que a lesão de um indica a lesão de toda a coletividade." [14]
A chamada 3ª geração ou camada de direitos, para os que entendem haver uma gradual sedimentação, usualmente identificada com o surgimento dos direitos difusos, representa, na realidade, um patamar mais elevado dos direitos já tradicionais estabelecidos. Decorreu de uma lenta e permanente evolução, não tendo surgido a partir de revoluções, como a francesa que lutava pela liberdade e igualdade formal, ou a russa, que pretendia garantir o exercício de direitos sociais de forma isonômica. O direito individual à vida não mais é satisfeito com a mera inércia do Estado ou a atuação policial em relação aos demais cidadãos, sendo essenciais à sua configuração contemporânea a disponibilização de meios para que os cidadãos vivam bem, em um ambiente livre de elementos poluentes que afetem a vida; a estruturação do sistema público de saúde de forma satisfatória; a regulamentação pública sobre situações de periculosidade e insalubridade no ambiente de trabalho, etc.
Também o exercício do direito à livre circulação de informações e manifestação do pensamento assume contornos mais amplos nos dias de hoje, deixando de ser satisfeito com a mera ausência de censura formal. Para que seja adequadamente garantido deve o Estado proporcionar amplo acesso à alfabetização e educação em geral, para que a população possa identificar e apreender as informações cuja livre circulação é garantida constitucionalmente. Igualmente importante é o acesso aos meios de comunicação a custo baixo, pois neles estão concentradas as informações mais relevantes e atuais, sob pena de ser incompleto o exercício de tal direito. Outra face da evolução deste direito está voltada à democracia na circulação de informações, que depende da ausência de controle ou monopólio sobre a mídia.
Essa ampliação do espectro dos direitos, que ocasionou a criação da expressão 3ª geração, potencializa o surgimento de pontos de atrito e superposição entre os círculos de direitos que cercam os indivíduos. Isso gera uma natural interseção entre os direitos individuais e os coletivos. As pretensões dos cidadãos esbarram nas intenções dos que detém os meios de respeitar ou não seus direitos, cuja atuação é, freqüentemente, pautada na mesma descrição constitucional de direitos. Assim, o direito a obter informações, mas que não agridam os valores da família, seja quanto ao conteúdo ou a forma, colide com a pretensão de exercer o direito a informar da maneira mais lucrativa possível, pautada nos princípios da livre iniciativa e livre concorrência, através da exploração de desejos cuja satisfação costuma ser comercialmente explorada.
Aduza-se que a utilização do mesmo princípio constitucional para a defesa de pretensões opostas inabilita a solução usual dos conflitos, apenas decorrente da ponderação direta de princípios. Resta o caminho da aplicação de outros princípios associados àquele, na defesa de ambas as teses, um dos objetivos deste trabalho. A resposta quanto à preponderância virá da ponderação entre os produtos destas associações de princípios, e variará em razão da intensidade da carência de proteção de alguns e da suportabilidade de compressão dos outros.
Os direitos difusos são intermediários entre os direitos meramente contratuais e os decorrentes da própria titularidade coletiva sobre os agentes econômicos, modelo que sucumbiu por ser o estímulo individual insubstituível pela planificação pública, pois a associação entre o esforço despendido e o crescimento pessoal é inerente ao homem. A sociedade é originalmente pautada pelas relações entre as pessoas, cabendo ao Estado garantir a todos as necessidades que não conseguem suprir, além de buscar o constante aprimoramento da qualidade destas relações. Elas devem evoluir para acompanhar o incremento das necessidades humanas, de forma estimulada ou coativa, sem que o Poder Público tenha que assumir um dos pólos da relação, solução que revelou-se por demais custosa.
Tais direitos são representados pela grande área de interseção entre os direitos dos indivíduos, voltados tanto às condutas dos demais quanto aos agentes que detenham meios de atingi-los, públicos ou privados. Representam o delineamento dos direitos constitucionalmente consagrados e estabelecidos independentemente de existência de relações jurídicas prévias, sejam individuais ou coletivas, o que não quer dizer que não possam qualificá-las. Toda a sociedade possui o direito a que não sejam comercializados medicamentos nocivos à saúde, o que atentaria contra o básico direito à vida. Tanto pode ser cobrado pelo Estado, que representa a sociedade politicamente organizada, quanto pelo Ministério Público, que é o curador institucional de seus interesses, independentemente da existência de qualquer relação jurídica entre pessoas previamente estabelecidas.
Também justifica a edição de legislação protetiva a grande dificuldade, e até inviabilidade, de defesa individualizada contra a ampla lesão perpetrada, que afeta todos, indistintamente. A dificuldade de assegurar o respeito aos seus direitos pode surgir em razão de lesões espraiadas, como a poluição, ou pela aquisição de produtos ou serviços amplamente disponibilizados. Esta última é típica das relações de consumo, em que o consumidor não pode previamente identificar que o conteúdo do bem vendido lhe causará alguma espécie de lesão ou incômodo.
Além de funcionarem como qualificação de relações jurídicas individualizáveis, os direitos difusos correspondem a deveres decorrentes do uso direto do espaço público, do acesso ao público ou da atuação voltada ao público em geral. O Estado, em suas diferentes esferas, personifica o conjunto das pessoas e titulariza o espaço público, condomínio de todos, daí sua competência protetiva difusa, que é voltada aos seus próprios elementos componentes. Cabe às entidades estatais expedirem normas garantidoras do justo uso do espaço que transcende ao estritamente privado, pois sempre que este é ultrapassado surge a área condominial pública, a ser por elas preservada. A delimitação e proteção das esferas pública e privada é uma das justificativas de existência do Estado.
O direito subjetivo público à proteção difusa é uma conquista social contemporânea e justifica a competência concorrente dos Estados, em matérias já, de alguma forma, reguladas pela União. O bem jurídico a ser protegido é muito importante para que sua defesa fique ao sabor de normas voltadas, preponderantemente, a regular relações individuais, como os Códigos Civil e Comercial, em relação às quais é viável uma defesa individualizada e renunciável, sem que a sociedade seja afetada por esta conduta.
A família, por exemplo, constitui uma unidade de proteção que demanda a atuação das diferentes entidades. O bem protegido é o mesmo mas a forma de preservação é distinta, em razão da competência para atuar. Não poderiam os Estados legislarem sobre a perda de guarda pelos pais que submetem os filhos à mendicância. Se o fizessem, estariam regulando situações que ocorrem entre indivíduos determinados, tratadas pelo Direito Civil, matéria de competência privativa da União, nos termos do art. 22, inciso I, da CF. No entanto, podem legislar sobre o exercício de tal atividade no espaço público, como os cruzamentos e calçadas. Não se trata de invasão de relação individual, mas, apenas do estabelecimento de parâmetros de utilização do espaço público. Os meios de comunicação, cuja atuação é objeto da lei em tela, constituem formas de transmitir idéias e informações a todos, servindo como espaço de acesso ao público, em seu sentido mais amplo, o que importa em utilização consentânea com o sentimento público prevalente de moral.
A utilização do espaço público atrai a atuação protetiva de mais de uma entidade, voltada tanto a preservá-lo quanto a proteger as pessoas que por seu uso são afetadas. É o que ocorre com as praias, que são bens da União nos termos do art. 20, inciso IV, da CF, mas são vigiadas e têm o seu uso ordenado tanto por órgãos estaduais, como o Corpo de Bombeiros, quanto pelos Municípios. O mesmo se dá em matéria de trânsito. Embora seja competência normativa privativa da União, em atenção ao disposto no inciso XI, do art. 22, igualmente atuam os Municípios e Estados, pautados em suas competências para regular o uso das vias públicas que lhes pertencem e tratar de assuntos de interesse local. Também respaldados no Código de Trânsito Brasileiro, Lei n° 9.503/97, legislam sobre estacionamento, direção de trânsito, rodízio de veículos, limites de poluição por eles causados, regras para veículos de carga, alguns aspectos de habilitação e licenciamento, etc.
A exploração dos limites da competência normativa é fundamental ao delineamento de uma federação, principalmente quando apenas a competência privativa da União é listada, ao lado das concorrentes. Como aduz José Afonso da Silva, o sistema constitucional brasileiro de repartição de competências acolheu uma forma de composição complexa, que inclui "áreas comuns em que se prevêem atuações paralelas." [15]
A jurisprudência do STF é importante para traçar os limites das competências estaduais e municipais, pois este tribunal vem validando normas que interferem com as relações entre pessoas, tradicionalmente apenas regidas pelo Direito Privado, e que incidem de forma concomitante com legislação federal específica. Em relação ao comércio, por exemplo, o Supremo entende que "Os Municípios têm autonomia para regular o horário do comércio local, desde que não infrinjam leis estaduais ou federais válidas, pois a Constituição Federal lhes confere competência para legislar sobre assuntos de interesse local." [16]
A decisão considera constitucional a Lei paulistana n° 8.794/78, que proíbe a abertura de farmácias fora do plantão com o fim de "evitando a dominação de mercado por oligopólio", possibilitar ao pequeno comerciante, estabelecido em área mais carente, garantir a sua sobrevivência, que seria ameaçada pelo deslocamento de muitos de seus clientes para as lojas das grandes cadeias, naturalmente melhor localizadas. O fechamento do pequeno comércio dificultaria o atendimento noturno das pessoas com dificuldade de deslocamento ou que sofram com uma urgência maior.
Outro exemplo foi fornecido pela Lei n° 12.420/99, do Estado do Paraná, que garante aos consumidores o direito a obter informações sobre a natureza, procedência e qualidade dos produtos combustíveis, comercializados nos postos revendedores. A norma qualificou relações comerciais entre destinatários individualizados, em razão da grande dificuldade que sofrem estes consumidores tanto de identificação quanto de comprovação acerca da origem de eventuais lesões. A liminar solicitada na ADIn proposta foi unanimemente indeferida [17]. O acórdão prolatado ratificou a competência concorrente dos Estados e a divisão prevista no art. 55, do Código de Defesa do Consumidor. Esta norma importou em uma precisa interpretação federal acerca da competência constitucional da União, que não é passível de regulamentação formal. O artigo traz disposição sobre o exercício de competências protetivas, concorrentes, privativas e até comuns, dispondo:
"Art. 55. A União, os Estados e o Distrito Federal, em caráter concorrente e nas suas respectivas áreas de atuação administrativa, baixarão normas relativas à produção, industrialização, distribuição e consumo de produtos e serviços.
§ 1°. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios fiscalizarão e controlarão a produção, industrialização, distribuição e publicidade de produtos e serviços e o mercado de consumo, no interesse da preservação da vida, da saúde, da segurança, da informação e do bem estar do consumidor, baixando as normas que se fizerem necessárias." Grifos nossos
Da leitura conjunta do caput e parágrafo primeiro, do art. 55, conclui-se que o legislador ordinário estimulou uma atuação normativa pautada na ponderação entre os princípios e valores a serem preservados a que se referiu, como a vida, saúde, livre concorrência ou o respeito ao consumidor. As competências para normatizar a proteção a tais postulados estão previstas no artigo sobre competência comum, o 23, e nos referentes às competências privativas e concorrentes, 22 e 24. A da União para legislar sobre propaganda, prevista no art. 22, inciso XXIX, não impede que os Estados regulem as relações entre as empresas de comunicação e os consumidores, principalmente em veículos acessíveis à crianças e adolescentes, respaldados em princípios constitucionais e na sua competência para protegê-los.
É fundamental examinar todas as regras e princípios que tratam das competências, pois constituem as descrições das atribuições estatais para proteção de direitos. Quando a própria Constituição determina que alguns direitos, os dos consumidores, da infância e da juventude entre eles, devam ser protegidos por diversas entidades públicas componentes da Federação, torna-se incompatível com a mens legis constitucional tolher a atuação estadual em razão da competência privativa da União para legislar sobre uma espécie de relação jurídica comercial – a propaganda.
Cabe ao ente maior regular a essência da atividade econômica, como as condições contratuais e responsabilização das partes. No entanto, quando o produto da atividade de propaganda atravessa os limites de direitos humanos a serem preservados, como os voltados à sadia formação moral da criança e do adolescente, já não mais é possível focá-la sob o ponto de vista meramente negocial, sob pena de por em segundo plano tais fundamentais direitos [18].